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Os nossos queridos Bouvard e Pécuchet

A transmissão dos depoimentos e dos inquéritos, na Assembleia da República (AR), aos primos Espírito Santo foi o nosso Eichmann em Jerusalém. Não é que eles tenham entrado na AR como sujeitos de um “mal radical” e saído com o ónus da “banalidade do mal”. Acrescente-se, aliás, que a injunção moral investida na crítica e na caricatura dos capitalistas é um dos maiores erros que a Esquerda comunista sempre praticou, na medida em que a moral sempre esteve no centro daquilo que o capitalismo quis encarnar. E, uma vez desafiado para o jogo da moralidade, nunca lhe foi muito difícil provar que é, entre todos os sistemas económicos, o mais moral (veja-se, aliás, como a crise financeira que atravessámos desde 2008 suscitou um coro de apelos à “ética do capitalismo”, sendo tal ética não exactamente o que Weber designou na sua análise da ascese calvinista do capitalismo, mas algo muito mais simples: a moral). Mas avancemos. Queríamos escutar as narrações e os argumentos dos dois homens ricos, sumptuosamente ricos, e o que ouvimos foi uns pobres homens: um podia chamar-se Bouvard e o outro Pécuchet. E, tal como os dois homenzinhos de Flaubert, estes também foram vítimas de um espírito enciclopédico e coleccionador, mas de um novo tipo: coleccionaram palavras do jargão financeiro, construíram com elas um sistema que ruiu por todos os lados, mas continuam a debitá-las de maneira incontinente, a mostrar que não conhecem outras. Bouvard e Pécuchet eram uma paródia do Enciclopedismo; Ricardo e Zé Maria mostraram-se como uma paródia do capitalismo. Nesse aspecto, podem mais propriamente ser comparados com uma personagem de uma novela de Balzac, o usurário Gobseck, que dá o nome à novela. Também ele é um pobre homem que, perante o jurista, faz um imenso balanço metafísico que começa assim: “Je vais vous faire le décompte de ma vie”. Fazer o décompte não é contar, no sentido de narrar. Tal termo pertence ao cálculo financeiro e refere-se ao que está em dívida, uma vez abatido o que já foi pago. E o que Gobseck ensina, na sua argumentação, é uma dúvida hiperbólica: para ele, nenhuma verdade é fixa porque neste mundo “só há convenções que se modificam conforme os climas”. Também nós, que os vimos e ouvimos, mesmo depois de fazer a décompte da estratégia de defesa, continuávamos a ter pela frente a banalidade granítica de dois pobre homens, Bouvard e Pécuchet, desavindos antes de se retirarem, personagens principais de uma comédia grotesca de poderes, traições e famílias. Foi desta matéria que se fez o romance realista do século XIX. Lemos na novela de Balzac, acima citada: “E sempre a fortuna é o móbil das intrigas que se elaboram, dos planos que se formam, das tramas que são urdidas”. Mas porque fomos tão permeáveis àquela banalidade, se ela só é diferente da nossa banalidade quotidiana pelos seus traços grotescos? Porque, de repente, estávamos perante uma situação completamente nova: podíamos objectivar aqueles dois homens, sem ser de uma maneira abstracta, chamar-lhes Ricardo e Zé Maria como quem diz Bouvard e Pécuchet. E objectivar — Bourdieu disse-o com insistência — é exercer um poder. Ora, isso raramente acontece. Mesmo a objectivação de tipo científico, a das ciências sociais, não se move da mesma maneira nem entra com a mesma frequência em todos os territórios. Por isso é que há uma sociologia da pobreza (inaugurada por Georg Simmel) muito mais desenvolvida do que a sociologia da riqueza, se é que tal coisa existe.

 

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