Os museus também têm sentimentos de culpa

A pergunta foi feita para inquietar: “Podemos descolonizar os museus?” Num congresso com portugueses, espanhóis e latino-americanos, a resposta foi óbvia. Mas como é que isso se faz? Com uma estratégia de proximidade, criando museus em que a jóia de um rei é tão importante como um pneu velho ou a fotografia de um avô que poucos conhecem e foi morto pela ditadura.

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A Vitória de Samotrácia é uma das principais atracções do Museu do Louvre Loic Venance/AFP

O museu, continuou este ensaísta com formação em Filosofia e Estudos Culturais que hoje dirige o Programa Gulbenkian Próximo Futuro, começou por ser a instituição que “materializava a ocupação colonial do resto do mundo e a sua posse”, “arquivo ilustrado do poder” e “lugar de estabilidade das classificações e hierarquizações disciplinadas das raças e das espécies e dos cânones artísticos”, mas hoje precisa de se reinventar. “Podemos descolonizar os museus?”, perguntou, para responder em seguida: “Podemos. Devemos.” Mas como? E de que descolonização falamos? Da que se refere apenas aos impérios europeus?

“Descolonizar” aqui passa, sobretudo, pela releitura dos acervos dos museus ocidentais, muitos deles constituídos quando o mundo estava ainda dividido em impérios coloniais centenários, mas também pela abertura às comunidades onde estão instalados, tenham ou não uma ambição nacional.

Na sala, a ouvir Pinto Ribeiro, esteve Javier Royer Rezzano, coordenador do Sistema Nacional de Museus do Uruguai, que entende o termo num sentido lato. Para Rezzano, “descolonizar” passa pela libertação da perspectiva imperial dos acervos, mas também por uma versão de luta de classes dentro do museu, para o tornar mais inclusivo e o aproximar das comunidades que serve.

“Não podemos continuar a construir museus, na América Latina ou em qualquer outro lugar, com base nas colecções reunidas pelas elites económicas, políticas e culturais. Porque o museu, mesmo resultando de um processo histórico em que essas elites tiveram um papel importante, não pode ignorar as outras classes nem deixar de tentar falar com toda a gente.” Como exemplo de uma visão eurocêntrica e de um modelo desactualizado e sem preocupações inclusivas, Rezzano cita o Museu Histórico Nacional do Uruguai, em Montevideu, criação de uma junta militar, no qual não estão representados nem os trabalhadores, nem as mulheres, nem as comunidades indígenas. “É preciso mudar isto”, diz, se queremos que os museus continuem a reclamar um papel social, a ser construtores de identidade.”

Mas esta mudança não se faz sem a consciência de que o museu é também um território de conflito, em que se vão cruzar visões díspares em resposta a perguntas fundamentais: O que é uma obra de arte? A que nos referimos quando falamos de história nacional? Como se mostra o extermínio dos povos indígenas? E como é que se trabalha um período de subjugação a um poder colonial ou a uma ditadura? Estas e outras perguntas, garante Rezzano, vão expor as clivagens que existem dentro do próprio país: “A colonização não vem apenas de fora, é feita também a partir de dentro, é como a divisão Norte/Sul, que não é só global, existe na nossa própria casa”, observa. “O museu tem de falar de todos e com todos – ricos e pobres, dominantes e dominados, elites e excluídos –, porque, quer queira quer não, é um espaço político.”

Rezzano não defende o regresso a um “passado indígena” como projecto museológico, algo que “não faria qualquer sentido”, mas acha que sem a “descolonização” do modelo do museu-elite ou do museu-espectáculo estas instituições não podem continuar a reclamar relevância social na América Latina.

Alan Trampe, director das bibliotecas, arquivos e museus do Chile, e o brasileiro Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, curador e presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), concordam com Rezzano. Para o chileno, a fase que vivemos é de transição no que diz respeito à própria ideia de museu. “Hoje convivem museus tradicionais – mausoléus para guardar coisas, mais ou menos actualizados – com museus mais experimentais, a que no Chile chamamos sociais.” Estes últimos, explica, são feitos a partir das comunidades e, muitas vezes, recorrendo aos objectos, documentos e outros testemunhos que as populações trazem das suas casas.

“O museu ocidental, colonial, não nos serve, nem serve aos outros países da América Latina, porque continuamos a ter comunidades vivas ligadas ao património que queremos mostrar.” Trampe acredita numa premissa aparentemente simples: “Se queres aproximar o museu das pessoas, faz com que conte a história delas.”

Este movimento de aproximação às populações é feito tanto em pequena escala, com unidades museológicas locais, como à escala nacional, com projectos ambiciosos em que se enfrentam momentos dramáticos da história recente, como no caso do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile, lembra Pinto Ribeiro, “um exemplar claramente anticolonial”. Este museu, explica Alan Trampe, foi feito para incluir “memórias físicas de pessoas anónimas”, muitas vítimas da ditadura, por elas guardadas ou pelos seus familiares: “Se eu vou ao museu e encontro lá a fotografia do meu avô, que quase ninguém conhece, não posso ficar indiferente, não posso deixar de pensar que também sou eu que ali estou.”

Neste processo, nota Pinto Ribeiro, dá-se visibilidade à história de cada um. “Seria uma grande demagogia defender que os povos e as comunidades podem criar sozinhos os seus museus, mas devem participar nessa criação. A ditadura no Chile foi, como noutros países, uma forma de colonização do espírito. Abrir o museu às vítimas e aos que ficaram é uma forma de descolonização.” O Chile, garante, tal como a Colômbia, está a fazer um “esforço notável” na revisão da própria história de arte, pondo em confronto aquilo que se entende por universal com o que de mais genuíno há na produção local. “Esta revisão obriga-nos”, diz, “a deslocar o olhar e a nossa forma de pensar”.

O lugar do objecto
Deslocar o olhar em grandes museus que se tornaram referência – como o Louvre (Paris), o Pergamon (Berlim) ou o Britânico (Londres) – e que têm entre as estrelas das suas colecções peças que diplomatas, arqueólogos ou caçadores de antiguidades retiraram há décadas de territórios agora independentes (basta pensar, só para dar exemplos destes três, na Vitória de Samotrácia, no altar de Pérgamo ou nos mármores do Pártenon), não é uma tarefa fácil, “mas é urgente”.

“É claro que é preciso avaliar as implicações,  e que ninguém quer ver destruído um Louvre, mas é preciso problematizar as colecções”, alerta Pinto Ribeiro. Por um lado, defende, há que reflectir sobre a possibilidade de devolver às ex-colónias os artefactos que de lá foram trazidos; por outro, há que fazer uma revisão das narrativas da própria História da Arte, como têm vindo a fazer alguns países latino-americanos. “Por princípio, defendo que os objectos devem ser restituídos aos seus países de origem, desde que estes os queiram e tenham condições para os salvaguardar e expor”, diz. “Mas devolver não chega. O que fica também deve ser sujeito a uma releitura porque está marcado por um olhar hegemónico, porque a perspectiva da história que nos conta não é apenas científica ou pedagógica, é também, e às vezes sobretudo, ideológica.”

Os grandes museus nacionais do ocidente têm resistido às mudanças de fundo, embora continuem a adaptar-se às novas tecnologias e a renovar instalações e museografias, defende, alertando para o facto de uma “nostalgia colonial” dos acervos se perpetuar, também, nos territórios que fizeram parte de impérios e que são há muito independentes. Como? Com o surgimento de réplicas dos museus europeus na América Latina logo após a descolonização, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, o Museu da República no Rio de Janeiro ou o Museu Nacional do Peru. “São as elites económicas e culturais destes países que repetem os modelos ocidentais, que assimilam a matriz do colonizador. Mas as coisas estão a mudar.”

No Brasil de Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, a mudança tem vindo a fazer-se com uma certa informalidade, através dos “pontos de cultura e de memória”, pequenas estruturas de comunidade, explica, em que os artefactos do dia-a-dia podem adquirir outro estatuto, em que “o pneu do favelado é exposto como, noutros lugares, a jóia da aristocracia”.

O brasileiro acredita que “só um museu voltado para a sua comunidade, a sua aldeia, faz sentido". Os grandes museus continuam a ser importantes, reconhece, “mas não podem ser o único modelo aceite, assim como as experiências dos museus-favela [há um na Maré, uma das maiores do Rio de Janeiro], não podem ser fetichizadas”, alerta. Difícil é encontrar um meio-termo que permita ao “desejo de memória das comunidades” co-existir com a “espectacularização cada vez maior dos museus de matriz ocidental”.

Essa espectacularização, diz, faz-se através dos edifícios entregues aos arquitectos-estrela. “Quem quer saber o que está mostrando o Guggenheim de Bilbau [projecto de Frank Gehry] ou o Quai Branly [Jean Nouvel]? Estes museus são, sobretudo, lugares onde é preciso ir numa sociedade que é, cada vez mais, performática.”

O Museu do Quai Branly, com o nome formal de Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas,  é um exemplo perfeito das oportunidades que a Europa tem perdido no sentido de alterar a sua atitude hegemónica, defende Pinto Ribeiro. Grande projecto cultural da presidência de Jacques Chirac, apresentado como território de reconciliação com os povos não-europeus, acaba por reflectir “uma concepção anestesiante de uma certa Europa”, transformado em “lugar de exposição dos troféus da ocupação”. Tudo porque os objectos são mostrados de forma descontextualizada, como se fossem mercadorias de luxo numa “boutique sofisticada”. As peças, diz, “estão ali pelo prazer estetizante que desencadeiam, e a ninguém é dito qual era a sua função pragmática, ritualística ou simbólica. Os contextos foram apagados e, sem eles, perderam-se as tensões que lhes dão significado.”

Para Araújo Santos, o museu parisiense de Nouvel, que no ano passado teve 1,3 milhões de visitantes (ainda longe dos mais de oito milhões do Louvre), cedeu às “imposições neo-liberalistas” que fazem dos museus motores do desenvolvimento económico e rejeitou o seu papel como “instrumento de ruptura”. Admite que “é um belo lugar, onde é muito visível a sedução pelo objecto”, mas argumenta que “temos de sair de uma certa pasteurização da cultura: o museu tem de fazer a pessoa ver e essa visão não se pode limitar ao objecto em frente.”

Nova hegemonia
Joaquim Pais de Brito é o director do Museu Nacional de Etnologia (MNE), instituição que conserva orgulhosamente o nome com que nasceu, em meados da década de 1960, quando muitos dos seus congéneres europeus abandonaram as palavras “etnologia” ou “antropologia” para se transformarem em museus de “cultura”, na tentativa de se libertarem de uma conotação tida como negativa num cenário pós-independências africanas.

Para este antropólogo, o debate sobre a descolonização dos museus começou há 25 anos e decorre do facto de grande parte dos museus ter nascido de uma “atitude hegemónica”, inquinada por um paradoxo: “Num império, o olhar que lançamos sobre um povo dominado não é um olhar sobre o outro, é sobre nós mesmos, porque o território pode ser vasto mas, politicamente, é só um.”

Nos últimos dez anos, o debate intensificou-se, diz Pais de Brito, porque os museus foram ultrapassados pelas universidades na construção do conhecimento científico. E veio juntar-se a isso, acrescenta, “o peso de uma memória de ocupação, coisa desconfortável”, e a perda do valor do silêncio e da contemplação no espaço do museu, transformado em arena de espectáculos por políticos e grandes arquitectos. “Com esta espectacularização, os sentimentos de culpa dos museus tornam-se ainda mais evidentes. Culpa pela colonização, pelos objectos retirados aos outros povos, pelos artefactos que perdem sentido quando saem das mãos de quem os usa.” É assim no MNE?

Sem colonização, o museu não teria as colecções que hoje tem, particularmente significativas na arte africana, mas é preciso ver, sublinha, que ele nasce já num contexto de guerra colonial e é feito com um “forte pendor científico” e de “forma muito moderna”, com a preocupação de manter “arquivos poderosos em texto e imagem” sobre os povos tratados e de rejeitar uma exposição permanente que facilmente poderia cristalizar-se ou ser sujeita a aproveitamentos ideológicos.

Também há “máculas e pecados”, porque as colecções “trazem esse passado de ocupação”, mas ele não se pode apagar, defende Pais de Brito, sob pena de sermos acusados de tentar apagar a história. “Podemos mostrar as colecções de outra maneira, mas não podemos esquecer que estivemos lá. Nem aqui nem no Quai Branly. E esse passado traz muitas vezes culpa, violência, traz roubo, imposição e vergonha. Não precisamos de gostar dele, mas temos de o aceitar.”

“Antes os museus eram sítios onde pouco se pensava e tudo estava bem desde que se limpasse o pó”, diz, mas “aqui nunca foi assim porque a equipa que o criou [Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Ernesto Veiga de Oliveira, Ernesto de Sousa, Jorge e Margot Dias] nunca tratou estes objectos como sagrados, sempre os viu como coisas com vida e instrumentos de conhecimento.”

Talvez por isso, Pais de Brito e a sua equipa tenham decidido que nenhuma das peças do acervo devia constar da lista dos tesouros nacionais (é o único museu nacional sem “tesouros”): “Aqui gostamos de pensar que todos os objectos estão ao mesmo nível. Se deixamos que um sobressaia damos espaço à espectacularidade que hoje, e cada vez mais, parece ser uma nova forma de hegemonia dos museus.”

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