Os miúdos estão mais ou menos bem
Para combater o desconhecimento do que é a vida em rede dos adolescentes, danah boyd transformou aquilo que era uma tese académica num livro acessível e importante.
Como grande parte dos medos, também este assenta no pilar fundamental do desconhecimento. Foi precisamente para combater esse desconhecimento do que é a vida em rede dos adolescentes que danah boyd decidiu transformar aquilo que era uma tese académica num livro mais acessível ao grande público: É Complicado: as vidas sociais dos adolescentes em rede. A investigadora do Centro de Pesquisa da Microsoft, com trabalho feito na área da relação entre a tecnologia e a sociedade, defende ao longo do livro uma tese muito simples: “De um modo geral, os miúdos estão bem.”
Esta afirmação é feita logo no Prefácio e os sete capítulos que se lhe seguem visam desconstruir uma série de mitos sobre privacidade, predação sexual, bullying, desigualdade, entre outros. Daí emerge também o principal defeito do livro de boyd: as suas conclusões, ainda que suportadas por um trabalho de campo entre 2005 e 2012, em dezoito estados norte-americanos, e 166 entrevistas, parecem existir antes do estudo – isto é, o estudo parece direccionado a provar as suas ideias, mais do que serem as ideias a emergir do mesmo.
Isto não quer dizer que as conclusões a que boyd chega não sejam verdadeiras, ou que sejam manipuladas, quer dizer apenas que parece faltar uma análise mais detalhada ao outro lado da moeda. Quando, no final do livro, é citado Vint Cerf, que afirma que “A Internet é um reflexo da nossa sociedade e esse espelho vai refletir o que vemos”, boyd perde uma excelente oportunidade para aprofundar tudo o que está errado no comportamento dos jovens em rede, que é precisamente tudo o que está errado com a sociedade em geral.
Afirmar que “serviços de media sociais como o Facebook e o Twitter estão a proporcionar aos adolescentes novas oportunidades de participação na vida pública” é uma conclusão generalista e benevolente, sobretudo quando temos em conta que a referência de “vida pública” que a maioria dos adolescentes tem são as estrelas pop e as “Internet celebrities” e afins. Não quer isto dizer que a maioria dos adolescentes esteja empenhada em comportamentos desviantes para chegar à desejada popularidade, nem sequer que a maioria dos adolescentes deseje a popularidade (pelo menos a uma escala que ultrapasse os seus círculos sociais), mas é uma questão que fica por aprofundar no livro: de que forma é que essa “vida pública”, e o facto de as referências que os adolescentes têm se terem tornado muito mais omnipresentes e próximas na era da Internet, afecta os seus comportamentos e o que é que mudou em relação aos adolescentes pré-Internet.
Noutros pontos, todavia, as conclusões da autora são bastante válidas e bem fundamentadas. A dependência da Internet que alguns adultos apontam aos jovens, conclui boyd, não é mais do que uma resposta às limitações impostas por esses mesmos adultos, que autorizam cada vez menos tempo de convívio não mediado aos adolescentes. Assim, como demonstram as entrevistas realizadas, os jovens utilizam a Internet sobretudo para comunicarem com os amigos que já conhecem e porque não têm mais oportunidades de estarem juntos fora da escola.
Logo, o muito difundido medo dos predadores sexuais e dos desconhecidos em geral, defende a autora, não é mais do que um alarmismo exponencialmente aumentado pelos meios de comunicação social. Não quer isto dizer que nunca aconteça, nem que não possa acontecer, mas a percentagem de casos de abusos, rapto e afins com origem na Internet é ínfima. Como provam as estatísticas, os perpetradores são, na maioria dos casos, pessoas próximas das vítimas (familiares, vizinhos, amigos). Mesmo nos raros casos de abusos com origem na Internet, um estudo realizado nos Estados Unidos descobriu que 18% “envolviam membros da família das vítimas ou pessoas conhecidas offline como amigos da família e vizinhos”.
Do mesmo modo, a questão do cyberbullying é mais um produto largamente fabricado pelos media tradicionais. Tal como no caso dos abusos sexuais, o bullyingcontinua a ocorrer maioritariamente offline, neste caso nas escolas. A autora levanta, ainda, a questão pertinente da definição de bullying, que conclui ser muito mais abrangente para os adultos do que para os jovens. Sugere-se, assim, que a reacção exagerada dos adultos se prende essencialmente com uma noção errónea do que é o bullying, tratando todo e qualquer acto isolado de provocação entre adolescentes como problemático. E mais importante ainda, boyd alerta para algo de que raramente se fala: os bullies são, na grande maioria dos casos, adolescentes com problemas profundos a nível pessoal e familiar, que são disciplinados e punidos sem que haja qualquer tentativa de compreensão dos seus contextos e do que os leva a tomar as atitudes ofensivas para com os outros.
O livro termina com dois capítulos mais virados para uma crítica social do que para uma análise dos comportamentos adolescentes: a desigualdade e a literacia digital. No penúltimo, boyd refuta a ideia que emergiu nos primórdios da Internet, e que não foi totalmente abandonada, de que esta ferramenta ajudaria muito na dissolução das desigualdades sociais, quando se limita a replicá-las. No último, refuta a ideia de que os jovens de hoje em dia sejam “nativos digitais” pelo simples facto de terem crescido com a tecnologia. Muitos são, na verdade, utilizadores com conhecimentos muito básicos sobre as aplicações e sites que utilizam.
Focado na realidade dos Estados Unidos da América, É Complicado consegue atingir a universalidade em muitas questões, embora haja sempre a necessidade de relativizar certos aspectos, como a cultura do medo nascida de certos programas de pretensa reality TV. O objectivo nobre de chamar a atenção dos adultos para o facto de os adolescentes não serem tão incompreensíveis quanto muitas vezes os consideramos é conseguido; mas falta um contraditório mais convincente em alguns temas. Acima de tudo, é um livro importante, que merece não existir apenas enquanto tese académica, embora a tradução portuguesa seja bastante fraca e lhe roube o tom mais descontraído que a autora se esforçou por imprimir.
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