A história da Sony que parece um filme será mesmo baseada em factos reais?

Coreia do Norte nega responsabilidade e exige papel na investigação ao ataque informático à Sony Pictures. Debate volta-se para teses alternativas da origem de hackers e o impacto criativo do caso.

Fotogaleria
Kim Jong-un retratado em The Interview" DR
Fotogaleria
ROBYN BECK/AFP
Fotogaleria
Obama falou sexta-feira sobre o caso

Um dia depois de Barack Obama e o FBI terem apontado o governo norte-coreano como responsável directo do ataque que há um mês fustiga a Sony Pictures, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte negou qualquer responsabilidade. “Calúnia”, disse a diplomacia de Pyongyang, que exigiu que os EUA aceitem uma “investigação conjunta” porque senão “vão enfrentar sérias consequências”.

O porta-voz do MNE norte-coreano disse ainda à agência estatal norte-coreana KCNA: “Temos uma forma de provar que nada temos a ver com o caso e sem recorrer a tortura, como faz a CIA”, ironizou.

É mais um capítulo num mês de instabilidade no sector cinematográfico norte-americano, uma das mais valiosas exportações do país e uma indústria que valia em 2011, segundo o U.S. Bureau of Economic Analysis e o National Endowment for the Arts, cerca de 47 mil milhões de dólares. Além de potenciadora de influência cultural, é aquela que no sector criativo mais contribui para o PIB americano. Desde 24 de Novembro que um grupo de hackers identificado como Guardians of Peace (GOP) tem a Sony Pictures sob ameaça.

No que será um ataque motivado por uma sátira escrita por Seth Rogen e Evan Goldberg, ligados à comédia stoner de piadas explícitas, alguma marijuana e grupos de amigos, o filme The Interview sobre dois jornalistas americanos (Rogen e James Franco) contratados pela CIA para matar Kim Jong-un, o líder norte-coreano, foi suspenso. Houve ameaças que evocavam o 11 de Setembro para os espectadores que fossem ver The Interview na estreia, no dia de Natal, as salas recusaram mostrar o filme e um incidente internacional começou a fermentar.

O caso do hack da Sony passou de uma história sobre cerca de cem terabytes de informação surripiada pelos hackers, que libertaram na Internet e-mails internos com opiniões sobre filmes, actores ou realizadores, dados financeiros da empresa e dados privados de empregados, além de filmes por estrear, para se tornar numa crise diplomática entre dois países de relações já por si tensas. Mas as ligações a Kim Jong-un não são a única tese sobre o que está por trás deste ataque sem precedentes a uma empresa.

Uma carta do embaixador de Pyongyang enviada em Junho ao secretário-geral da ONU que diz que o filme “sobre o assassinato de um chefe em funções de um Estado soberano deve ser encarado como o mais não-disfarçado patrocínio de terrorismo, bem como um acto de guerra” marca o início da associação do país ao caso dos hackers. Uma espécie de primeira salva numa guerra cultural que, depois de a 24 de Novembro os computadores do estúdio terem congelado e a informação ter começado a gotejar, se tornou aparentemente indissociável do hermético país comunista.

Mas, como detalha a revista Wired, a primeira declaração pública dos responsáveis pelo ataque, bem como o e-mail enviado aos directores do estúdio dias antes, nunca referiam nem a Coreia do Norte nem o filme. Pediam dinheiro – “compensação monetária queremos”, lia-se na mensagem escrita em mau inglês. E a revista lembra que um alegado porta-voz dos GOP (que não era o nome inicial nas ameaças à Sony Pictures, mas sim God’sApstls) disse ao site de gestão de segurança CSO: “O nosso objectivo não é o filme The Interview como a Sony Pictures sugere”. Contudo, o entrevistado rematava: “A Sony Pictures produziu o filme danificando a paz e a segurança regional e violando direitos humanos por dinheiro”. A primeira referência ao filme nas mensagens dos hackers surge a 8 de Dezembro.

A revista de tecnologia escreve ainda que este tipo de ataque de larga escala não costuma ser tão espalhafatoso em termos mediáticos. Alguns métodos de divulgação da informação deste ataque sugere outros autores – foram partilhados dados no Pastebin, um repositório de texto online usado por piratas informáticos mais associados a grupos hacktivistas como o Anonymous.

A penetração e padrão do ataque sugerem que alguém dentro da Sony teria de estar envolvido; as provas citadas pelo FBI são circunstanciais ou pouco claras – é possível disfarçar moradas IP, por exemplo, dizem os críticos sobre um dos elos encontrados pela agência para confirmar a ligação a Pyongyang; um responsável dos serviços de informação dos EUA disse ao New York Times na quarta-feira que o ataque teve “uma sofisticação que há um ano diríamos que estava além das capacidades” da Coreia do Norte. São estas algumas das dúvidas levantadas não só na comunidade hacker mas também nas redes sociais e nos média. E sendo este um dos países mais pobres do mundo, onde apenas um grupo limitado tem acesso autorizado à Internet, a falta de uma infra-estrutura própria dificultaria a preparação de um ataque desta escala, duvida-se na imprensa.

Auto-censura como preocupação
“A narrativa Coreia do Norte/The Interview é reconfortante de várias maneiras. Alimenta a tendência de atribuir capacidades quase divinas a um adversário, especialmente um adversário sigiloso; é um cenário favorecido por Hollywood”, escreve o prémio Pulitzer Michael Hiltzik, jornalista de economia e tecnologia do Los Angeles Times. Esse fascínio pela invencibilidade do hacker, do denunciante, do herói ou do vilão no século que celebrizou as figuras reais de Edward Snowden ou Chelsea Manning e a ficção de Lisbeth Salander nos best-sellers de Stieg Larsson alimenta agora o apetite em torno da história da Sony Pictures.

“Temos um longo historial de atacar outras culturas através dos filmes”, disse ao Los Angeles Times Wheeler Winston Dixon, professor e historiador de cinema na University of Nebraska-Lincoln. São muitos os filmes recentes, de Team America a 007 Morre Noutro Dia, com vilões norte-coreanos. Como na década de 1980 o inimigo era russo. Team America, um filme com marionetas e animação, ou Borat, que escarnecia do Cazaquistão, não geraram uma reacção tão extrema quanto a que estará ligada a este ataque. Com o cancelamento de um filme baseado na novela gráfica Pyongyang realizado por Gore Verbinski pela Fox na sequência deste hack e a suspensão de The Interview a ser vista como uma derrota da liberdade de expressão, o risco de auto-censura por parte de produtores e autores é a nova preocupação.

Os EUA são o maior mercado mundial de cinema em termos de receitas de bilheteira e a Sony Pictures é um dos seus grandes produtores. Há meses que The Interview preocupava - de forma rara nas relações entre a empresa-mãe Sony Corp. e a sua subsidiária dedicada ao cinema e à TV – o CEO da Sony, Kazuo Hirai, que pediu uma alteração fulcral. Que o final fosse menos sangrento. “Tirámos três das quatro brasas na cara, reduzimos o queimar do cabelo em 50% e escurecemos significativamente os nacos da cabeça de Kim [Jong-un]”, escreveu Seth Rogen em Setembro à co-presidente do estúdio, Amy Pascal, num dos e-mails divulgados no hack. O estúdio de Homem-Aranha abana por causa de um filme satírico que já foi mostrado a críticos e à plateia na sua estreia oficial dia 11 em Los Angeles, antes de ser suspenso. “Tendo-o visto”, escreve Mike Hale no New York Times, “o único mistério é como é que algo tão banal pode ter causado tanta agitação”.

Não no Japão. A Sony Pictures representa 10% das vendas do gigante multinacional Sony com sede em Tóquio. Uma gota de água de Hollywood num mar de negócios financeiros, de electrónica, videojogos ou música e duas empresas com vidas distantes – no Japão, o tema está a passar quase despercebido na imprensa. Porém, a Sony poderá perder bem mais do que os perto de 70 milhões de euros que custou a produzir e a promover The Interview. “500 milhões de dólares” são os custos potenciais do ataque, disse à AFP o fundador da consultora de segurança informática SSPBlue.

Recuperar todo o sistema informático, os custos da paralisação parcial da empresa nos primeiros dias do ataque, os processos de ex-trabalhadores que viram os seus dados pessoais violados – o caso terá um impacto financeiro “muito, muito importante”, disse o director da Sony Pictures, Michael Lynton, à CNN. 

Sexta-feira, depois da conferência de imprensa de Obama em que este considerou que a suspensão de The Interview foi um “erro”, o director da Sony Pictures disse que o estúdio está à procura de alternativas para o exibir e quer que “o público veja este filme”, que em Portugal se chamaria Uma Entrevista de Loucos e se estrearia a 29 de Janeiro. Este sábado o New York Times divulgou que a administração Obama sondou a China para que ajudasse a bloquear a capacidade da Coreia do Norte de lançar ciberataques e que a China ainda não deu uma resposta. 

Sugerir correcção
Ler 5 comentários