Falemos do filisteu — uma figura fascinante agraciada com a unção das reminiscências bíblicas. Não da sua versão clássica (a que deu origem à palavra “filistinismo”, que o escritor alemão Clemens von Brentano, no início do século XIX, utilizou pela primeira vez como conceito para designar uma atitude intelectual de desprezo pela cultura e pela arte, em nome do pragmatismo e da utilidade imediata), mas de uma versão moderna, típica da época da cultura de massa, a que Hannah Arendt chamou “filisteu cultivado”. O filisteu cultivado não despreza os objectos culturais. Pelo contrário, na boa sociedade cultivada sente-se como peixe na água. Para ele, a cultura é mesmo uma moral e, por conseguinte, uma prescrição: a prescrição da transparência, da homogeneidade, dos discursos bem oleados em que tudo corre sobre rodas. O filisteu cultivado ama a cultura, habita-a como casa sua, mas na condição de ela estar bem limpa e isenta de tudo o que provoca atrito. Vive em estado de plenitude cultural e acha que tudo o que lhe escapa — e é muito — pura e simplesmente não tem sentido. A nostalgia do sentido é o sentimento mais comum do filisteu cultivado. Podemos confirmá-lo através do exemplo de um escritor, cronista, blogger e muito mais que se chama Luís Miguel Rainha. Na sua página do Facebook (a que só tive acesso através de um amigo porque ainda não fixei morada nesse lugar universal), reage ele assim a uma passagem da minha crónica da semana passada, onde falava da “dívida infinita” da Grécia: “Alguém me explique, por favor, onde se encontra um só grama de sentido nesta frase: ‘Recordemos que, para a teologia cristã, existe uma única instituição legal que não conhece interrupção nem fim: o inferno’”. Com enorme solicitude, passarei a explicar, não apenas ao reclamante, mas também a quem aproveitou (gente igualmente culta, dessa espécie de filisteus cultivados, entre eles um escritor, Bruno Vieira Amaral, e uma editora, Bárbara Bulhosa) para dar o seu assentimento, através de likes, à declaração de que nem um grama de sentido pesava esta frase. Mas, então, nunca leram A Divina Comédia? Não sabem como é que Dante descreveu os nove círculos do Inferno? Não sabem que este é caracterizado como um “mundo de desesperação sem fim”, onde os tormentos são perpétuos? Leram, certamente, ou pelo menos ouviram falar. Mas, para os filisteus cultivados, Dante é Dante, o Inferno é o Inferno, a dívida, finita ou infinita, é a dívida, e tudo o que não respeite as fronteiras onde eles são guardas não tem sentido. O filisteu cultivado gosta da objectividade e nem lhe passa pela cabeça que eu use o Inferno de Dante para falar da dívida grega, informado, aliás, por um famoso ensaio de Erich Auerbach (1892-1957) Dante, Poeta do Mundo Terreno, onde esse importantíssimo romanista analisa a questão da eternidade e imutabilidade das penas, à luz da doutrina teológica e filosófica cristã e incidindo na afirmação de S. Tomás de Aquino, na sua Suma Teológica, de que “o fogo do Inferno é eterno” e os tormentos são perpétuos. E, em O Reino e a Glória, o filósofo italiano Giorgio Agamben escreve: “O princípio segundo o qual o governo do mundo cessará com o Juízo Final conhece, na teologia cristã, uma única excepção: o Inferno”. E a seguir refere-se à doutrina de S. Tomás segundo a qual, enquanto no Paraíso, depois do Juízo Final, os anjos abandonam toda a função de governo, no Inferno os executores das penas infernais continuam a desempenhar a sua função judiciária. Mas nisto não há um grama de sentido, sentenciam os filisteus cultivados, carnífices de serviço no tribunal popular.
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