Os calos pisados do Secretário de Estado da Cultura e um museu espezinhado
No próximo dia 15 de Julho, ficarei à porta do ex-Governo Civil e recusar-me-ei a participar na inauguração da tão ansiada ampliação do Museu do Chiado.
Estas decisões foram reiteradas mais tarde, através de sucessivos protocolos. A situação manteve-se mesmo quando, sob a direcção de Vicente Todolí, o Museu de Serralves, sucessor do MNAM, definiu a sua orientação programática: Museu de Arte Contemporânea (desde 1968) e não de Arte Moderna (desde 1900) vocacionado para o contexto internacional, abrindo uma inédita dimensão de coleccionismo em Portugal. Por isso, a Col. SEC raramente foi utilizada nas actividades centrais de Serralves e muitas das suas obras, entre elas algumas da maior relevância, encontram-se em gabinetes no Palácio da Ajuda e na Presidência do Conselho de Ministros. Serralves não tem espaço para as acolher e a nenhum director, do passado e do presente, elas interessaram, a não ser excepcionalmente.
Entretanto o MNAC - Museu do Chiado, reinaugurado em 1994, foi reafirmando a missão que o criara em 1911 (“representar os artistas vivos”). Mediante o apoio de artistas e coleccionadores, os acervos foram sendo completados até 1960, e adquiriram-se obras de artistas em actividade desde 1990. Mas a grande lacuna, para que o Museu represente a arte portuguesa dos séculos XIX a XXI, manteve-se em relação às décadas de 1960 a 1980, exactamente aquelas que a Col. SEC melhor representa.
Sintetizando: a Col. SEC nunca chegou a ser componente fundamental das estratégias coleccionistas da Fundação de Serralves – em que a arte portuguesa é integrada em contextos internacionais – e tornou-se decisiva para o âmbito nacional do Museu do Chiado. Este é o entendimento dos especialistas e de direcções sucessivas dos dois museus e fundamenta o Despacho de Fevereiro de 2014, do actual Secretário de Estado da Cultura, determinando a afectação da Col. SEC à Direcção Geral do Património Cultural com incorporação no Museu do Chiado, embora mantendo em vigor os protocolos de depósito. A partir de então, os organismos e serviços que dispõem de peças da Col. SEC passaram a reportar ao Museu do Chiado. Assim aconteceu com o Museu de Serralves no que respeita a empréstimos e exposições, mesmo as internas, ou a necessidades de conservação e restauro. Estas questões são tratadas com cordialidade pelos respectivos serviços, a mesma que existiu no início da preparação da exposição com que o Director do Museu do Chiado, David Santos, propôs ao SEC inaugurar o novo espaço do Museu, em instalações anexas do ex-Governo Civil de Lisboa: exactamente uma exposição de mais de 100 obras da Col. SEC, de relevantes artistas da segunda metade do século XX, para clarificar, junto dos públicos interessados, quanto aquela Colecção permite ampliar as narrativas sobre a arte portuguesa. O SEC aprovou e apoiou, mesmo quando o Conselho de Administração (CA) de Serralves pretendeu que os protocolos antes celebrados impediam a cedência das obras ao Museu do Chiado por mais de seis meses e, sobretudo, que a Colecção SEC fosse referenciada pela sua nova tutela. Foi-se de cedência em cedência até que, a oito dias da inauguração da exposição, o Director do Museu recebeu ordens para retirar qualquer menção ao Despacho de 2014 e, portanto, à incorporação da Colecção no Museu do Chiado, mesmo nos textos que, no catálogo, explicitam o porquê da opção da Exposição no novo espaço. Simultaneamente o SEC declarava que iria alterar o Despacho que assinara em 2014 e fundamentara o programa do Museu para o seu espaço de ampliação.
Conhece-se o resultado: David Santos demitiu-se, a co-curadora Adelaide Ginga recusou continuar a montagem, perante a censura sobre as opções curatoriais, o Museu está a ser gerido por um subdirector da DGPC e vieram dois técnicos de Serralves que infelizmente aceitaram fazer uma exposição em instituição alheia sem que tivessem sido convidados.
Urge perguntar o essencial: como justifica o SEC que o Despacho que assinou em 2014 seja agora substituído, embora constituindo a razão de ser da exposição que o Museu preparou com seu pleno conhecimento e anuência?
Quanto ao Presidente do CA de Serralves, saberá ele que a Col. SEC nunca foi, não é, nem será uma componente significativa do programa de actividades do Museu? Porquê insistir num direito de posse, justificando-se com protocolos que, como tudo na vida, devem actualizar-se? Ou entende ele que os quadros que só queria emprestar ao Chiado durante seis meses, devem permanecer nos corredores e gabinetes do Palácio da Ajuda ou na residência do Primeiro-Ministro, como acontece hoje com Paula(s) Rego, Jorge Martins, Cabrita Reis e bastantes mais, alguns com problemas de conservação?
Finalmente: que governantes são estes que retiram o apoio a um Director que antes nomearam, a meio da sua comissão legal, desempenhada com reconhecimento dos pares e dos públicos do museu, e, no dia em que aceitam a sua demissão, dão ordens à segurança do Museu para lhe vedarem o acesso ao seu gabinete?
Bem longe da cordialidade que caracterizou sucessivos CA de Serralves, o actual Presidente disse ao Público que “não gosta que lhe pisem os calos”. Por isso telefonou a Passos Coelho que ordenou obediência ao SEC. Há sempre quem goste e consinta que lhe pisem os calos.
Pessoalmente, vou assumir o direito à indignação: no próximo dia 15 de Julho, ficarei à porta do ex-Governo Civil e recusar-me-ei a participar na inauguração da tão ansiada ampliação do Museu do Chiado. Espero que muitos façam o mesmo, especialmente os artistas da Col. SEC que terão, naquele espaço, uma representação permanente. Mas para que tal corra bem é preciso que seja o Museu do Chiado a fazê-la, com a sua excelente equipa, e não técnicos de museu alheio, submetidos a obediência sem direito a fala.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Representante das Universidades no Conselho Nacional de Cultura – Secção Museus