Os apátridas da língua que nos governam
Uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade. É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar.
Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez mais abastardada.
Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade. Para além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.
Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.
É um problema da nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim. Não é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a história. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
Mas estamos em 2015 e hoje o português de Portugal está sitiado e numa situação defensiva. Não é no Brasil que o português está em risco, nem em Angola, Cabo Verde, Moçambique ou Timor. Aí os riscos do português são os riscos de sempre e vêm da extensão da colonização, da sua relação com as línguas autóctones, dos crioulos que gerou, e do modo como penetrou nas elites e no povo desses países, se é ou não a língua de cultura ou a língua da administração e do Estado. E não é certamente no Brasil que o português está na defensiva, bem pelo contrário, é no Brasil que o português está num momento particularmente criativo.
Quer se goste quer não, a locomotiva da língua portuguesa não é a academia portuguesa, mas a pujança do povo e da sociedade brasileira, a sua criatividade e dinamismo. E isso fará com que o português escrito no Brasil esteja sempre para lá de qualquer AO, como aliás aconteceu no passado e vai acontecer no futuro. É o mais fútil dos exercícios, até porque enquanto o português de Portugal for para o português do Brasil como o latim é para o português, ainda tem um papel. Se abastardamos o português de Portugal, nem esse papel teremos, a não ser escrevermos um “brasileiro” mais pobre que não serve de exemplo a ninguém.
A vitalidade do nosso português está nos seus grandes escritores, Miranda, Camões, Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, todos conhecedores do seu Virgílio, do seu Horácio, do seu Ovídio, mesmo do seu escolar Tácito, César ou Salústio. Todos lidos, estimados e estudados no Brasil, que por eles faz muito mais do que nós alguma vez fizemos, por exemplo, com Machado de Assis. E é também por isso, que a maioria dos escritores portugueses contemporâneos recusa o AO, como quase toda a gente que está na escrita e vive pela escrita e é independente da burocracia do estado. Todos sabem que o português permite todas as rupturas criativas, dos simbolistas ao Sena dos Sonetos a Afrodite Anadiómena – “E, quando prolifarem as sangrárias,/ lambidonai tutílicos anárias,/ tão placitantos como o pedipeste”, – ao “U Omãi Qe Dava Pulus” de Nuno Bragança. Criativamente a nossa língua vernácula suporta e bem tudo, menos que seja institucionalizada com uma ortografia pobre e alheia à sua história.
O futuro do português como língua já está há muito fora do nosso alcance, mas o português que se fala e escreve em Portugal, desse ainda podemos cuidar. É que é em Portugal que o português está em risco, está na defensiva, e o AO é mais uma machadada nessa defesa de último baluarte. É em Portugal que um Big Brother invisível, que se chama sistema educativo, retira todos os anos centenas de palavras do português falado, afastando das escolas os nossos escritores do passado e substituindo-os por textos jornalísticos. É em Portugal que uma linguagem cada vez mais estereotipada domina os media, com a substituição dos argumentos pelos soundbites, matando qualquer forma mais racional e menos sensacional de conversação. É em Portugal que formas guturais de escrita, nos SMS e nos 140 caracteres do Twitter, enviados às centenas todos os dias por tudo que é adolescente, ou seja também por muitos adultos, se associa à capacidade de escrever um texto, seja uma mera reclamação a uma descrição de viagem. É neste Portugal que, em vez de se puxar para cima, em nome da cultura e da sua complexidade, em nome da língua e da sua criatividade, em nome da conversação entre nós todos que é a democracia, se puxa para baixo não porque os povos o desejem, mas porque há umas elites que acham que a única pedagogia que existe é a facilidade.
E é neste Portugal que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é falar e escrever com a fluidez sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção ortográfica. É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar.