Orpheu: “O primeiro grito moderno que se deu em Portugal”
Comemora-se hoje o centenário de Orpheu, cujo primeiro número terá saído da gráfica no dia 24 de Março de 1915. Como um grupo de rapazes de vinte e poucos anos, liderado por Pessoa e Sá-Carneiro, lançou o modernismo em Portugal e mudou para sempre a paisagem cultural e literária do país.
Todos sabemos hoje que Orpheu foi o primeiro grande momento de afirmação das vanguardas modernistas em Portugal e não é exagero afirmar que as réplicas desse já longínquo terramoto de 1915 se fazem sentir até aos nossos dias. Mas quando a revista saiu, se não passou de todo despercebida, também não se pode dizer que tenha sido propriamente saudada como o decisivo marco literário e cultural que efectivamente foi. “Literatura de manicómio”, chamou-lhe A Capital no título de um dos muitos artigos de crítica mais ou menos galhofeira que assinalaram na imprensa o nascimento de Orpheu.
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, sem os quais Orpheu não teria passado de uma curiosidade cujo centenário ninguém se lembraria hoje de comemorar, teriam de esperar uma dúzia de anos até que a geração de autores reunida em torno da revista presença reconhecesse o seu génio e procurasse divulgar o contributo decisivo dessa primeira geração modernista.
Tendo sido a mais icónica revista literária portuguesa de todo o século XX, e seguramente a que exerceu uma influência mais duradoura, Orpheu foi também uma publicação efémera, com apenas dois números publicados no primeiro semestre de 1915. O terceiro, já em provas tipográficas, não saiu por falta de financiamento – tornou-se inviável continuar a recorrer ao mecenato bastante involuntário do pai de Mário de Sá-Carneiro –, e só veio a ser publicado em meados dos anos 80, num fac-símile da prova tipográfica, com a chancela da Nova Renascença, e numa edição organizada por Arnaldo Saraiva para a Ática.
Segundo informa José Barreto num artigo publicado no recém-lançado volume colectivo 1915 – O Ano de Orpheu, organizado por Steffen Dix e editado pela Tinta da China, a primeira das várias notícias que assinalaram o lançamento do número inaugural de Orpheu terá saído no dia 27 de Março, no jornal O Mundo. Até ao final da tarde do dia anterior, diz ainda Barreto, tinham-se vendido apenas 17 exemplares. Apesar deste arranque pouco auspicioso, duas ou três semanas depois a edição estava praticamente esgotada. Tudo indica, pois, que a insistência dos jornais em sugerir que os autores de Orpheu não destoariam entre os loucos internados no manicómio de Rilhafoles terá dado uma ajuda preciosa às vendas, confirmando a cínica máxima de que publicidade negativa é uma contradição nos termos.
Doidos com pedigree
O escândalo provocado por Orpheu não surpreende. Basta dar uma vista de olhos pela poesia que se publicava ao tempo em Portugal para se perceber que, pese embora a qualidade de poetas como Teixeira de Pascoaes ou Afonso Duarte, para citar apenas dois, os meios literários da época, submersos no saudosismo ou no lusitanismo, não estavam preparados para algo tão cataclísmico como a Ode Triunfal.
Nem sequer os poucos livros já então publicados por alguns dos colaboradores de Orpheu, como Distância (1914), de Alfredo Guisado, Luz Gloriosa (1913), do co-director brasileiro do primeiro número, Ronald de Carvalho, ou, no limite, mesmo Dispersão (1914), de Mário de Sá-Carneiro, prenunciavam o frenesi vanguardista de Álvaro de Campos: “(…) Ó tramways, funiculares, metropolitanos,/ Roçai-vos por mim até ao espasmo!/ Hilla! hilla! hilla-hô!/ Dai-me gargalhadas em plena cara,/ Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)”.
No já referido artigo d’A Capital, lia-se: “O que se conclui da leitura dos chamados poemas subscritos por Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Álvaro de Campos e outros é que eles pertencem a uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e classificou dentro dos manicómios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles”. Talvez o jornalista estivesse a ser um pouco injusto ao irmanar os três autores no mesmo insulto, já que em matéria de sinais exteriores de vanguardismo (mas em Pessoa e Sá-Carneiro o próprio vanguardismo foi sempre sinal exterior de rupturas de outra ordem, mais fundas e irremediáveis), nada neste primeiro número de Orpheu é rigorosamente comparável à Ode Triunfal. Nem mesmo alguns versos mais alucinados de Sá-Carneiro, como os que fecham o notável poema 16: “As mesas do Café endoideceram feitas ar.../ Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai ele a valsar/ Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...// (Subo por mim acima como por uma escada de corda,/ E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado...)”.
Se os críticos da época viram indícios generalizados de destrambelhamento no número inaugural da revista, o segundo, publicado no final de Junho de 1915, parece ter sido concebido para lhes confirmar essa impressão: dos poemas inéditos de Ângelo de Lima à “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal, das provocações textuais e gráficas de Manucure, de Sá-Carneiro, com as suas linhas a ondular na página, à extensa e extraordinária Ode Marítima de Pessoa, com os seus delírios masoquistas hard core, sem esquecer, naturalmente, as reproduções hors texte das pinturas futuristas de Santa-Rita Pintor.
E pelo que hoje é possível deduzir de documentos encontrados no espólio pessoano e dos testemunhos posteriores de alguns “órficos”, parece claro que Pessoa e Sá-Carneiro, que, após a saída do primeiro número, substituíram Montalvor e Ronald de Carvalho na direcção da revista, quiseram deliberadamente subir a parada. “Se é certo que Pessoa e Sá-Carneiro realmente gostavam da poesia de Ângelo de Lima, o facto de ser um louco certificado, residente no Manicómio Miguel Bombarda desde 1902, só podia valorizá-lo”, defende Richard Zenith na introdução que escreveu para o catálogo da exposição Os Caminhos de Orpheu, que abre esta terça-feira na Biblioteca Nacional. E conclui com humor: “Visto que a imprensa insistira tanto na insânia de Orpheu 1, foram arranjar alguns doidos com pedigree”.
Apostada em espantar a burguesia letrada de Lisboa, a dupla de conspiradores chegou a ponderar incluir, no Orpheu 3, umas Pilhérias em francês de um Numa de Figueiredo, e umas Pederastias de um tal António Bossa, que Sá-Carneiro comentava não poderem ser piores do que a colaboração de Raul Leal em Orpheu 2. Amigo de Pessoa, Numa de Figueiredo era um negro nascido em Angola que se formara em Letras em Lisboa, explica Zenith, citando uma carta de Sá-Carneiro em que este insiste na publicação das Pilhérias, argumentando que a revista iria assim bater “o recorde do cosmopolitismo: preto português escrevendo em francês”.
Uma teia de acasos
Se exceptuarmos o criador da capa, José Pacheco (1885-1934), o mais velho dos autores do primeiro número de Orpheu 1 era o próprio Fernando Pessoa, que em Março de 1915 tinha 26 anos. Sá-Carneiro, Luís de Montalvor e Armando Côrtes-Rodrigues tinham 24, Alfredo Guisado tinha 23, Ronald de Carvalho apenas 22, e Almada Negreiros, o mais novo, tinha ainda 21. Com méritos certamente bastante desiguais, é a este grupo de rapazes (os “putos” de Orpheu, como já seriam referidos na época) que cabe a honra histórica de ter lançado o modernismo em Portugal. “É que Orpheu, meus senhores, foi o primeiro grito moderno que se deu em Portugal”, escreverá Almada Negreiros no Diário de Lisboa, em Março de 1935, num texto em que evoca os 20 anos da revista, quando Sá-Carneiro já morrera há muito e a Pessoa restavam poucos meses de vida.
É difícil seleccionar os factos mais pertinentes da génese de Orpheu, que, apesar da deliberação com que a dado momento o projecto foi discutido, concebido e lançado, nasceu, como geralmente acontece, de um emaranhado de circunstâncias e acasos. Em 1911, ainda antes de se cruzar com Sá-Carneiro, que só conhecerá no ano seguinte, Pessoa sonha já com uma revista a que pensa dar o título de Lusitânia, um projecto que evoluirá para uma revista assumidamente sensacionista, esta já planeada com Sá-Carneiro, e que, sintomaticamente, deverá afinal chamar-se Europa. E que acabará finalmente por se metamorfosear em Orpheu, um nome proposto por Luís de Montalvor, que regressara do Brasil no início de 1915 com o seu próprio projecto de revista.
Com a eclosão da I Guerra, tinham também regressado de Paris, além do próprio Sá-Carneiro, que ali contactara com as vanguardas europeias da época, artistas como José Pacheco, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso (que deveria participar no Orpheu 3), o que ajuda também a explicar a atenção que Orpheu dará às artes plásticas.
Num documento que Richard Zenith seleccionou para a exposição Os Caminhos de Orpheu, Fernando Pessoa escreve a propósito de Orpheu: “Nunca em Portugal tinha aparecido uma corrente literária que mostrasse originalidade, não relativa, senão absoluta; isto é, que excedesse as correntes literárias contemporâneas dos outros países”. E Zenith dá-lhe alguma razão, argumentando que nenhuma das vanguardas europeias da época – do futurismo, por muito influente que tenha sido, passando pelo movimento vorticista lançado pela revista inglesa Blast (1914-1915), onde colaboraram Ezra Pound e T. S. Eliot, até ao mais tardio ultraísmo espanhol – conseguiu, como Orpheu, “revolucionar” de facto uma “literatura nacional”.
Reconhecendo que “a relativa exiguidade do espaço cultural português e o seu maior conservadorismo foram decisivos para que Orpheu causasse tamanha perturbação”, Zenith observa, no entanto, que “não devemos subestimar a potência e originalidade da dupla força impulsionadora deste movimento: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro”. De facto, e para lá de tudo o resto, talvez seja possível ver também em Orpheu o objecto em que mais perfeitamente se materializou o encontro único desses dois espíritos tão diferentes e tão improvavelmente sintonizados.
O falso heterónimo
Já há 60 anos, num artigo originalmente publicado em 1955 na publicação Tetracórnio, Eduardo Lourenço escreve que “Orpheu não se tornou um mito apenas para nós, admiradores tardios”, mas que “essa revista de dois números foi um mito igualmente para os mais lúcidos dos seus colaboradores – quer dizer, alguma coisa onde estavam mais do que estavam, alguma coisa que não só o nosso futuro mas o deles mesmos nunca mais exprimiria nem alcançaria”. E o ensaísta acrescenta que nenhuma das posteriores revistas em que a mesma geração iria envolver-se nos anos seguintes – Portugal Futurista, Contemporânea, Athena – “encheria”, como Orpheu, “a alma vazia de Fernando Pessoa”.
Prova disso foram as suas persistentes tentativas de fazer sair o Orpheu 3, mesmo após a morte, em 1916, de Sá-Carneiro, cujos Poemas de Paris, reunindo obras-primas como as Sete Canções de Declínio, Serradura ou O Lord, iriam constituir um dos momentos altos da revista, a par dos poemas Gládio e Além-Deus, do Pessoa ortónimo. Almada, já expressamente revestido da dignidade de “Poeta Sensacionista e Narciso do Egipto”, colaboraria com A Cena do Ódio, e juntar-se-lhes-ia uma meia dúzia de autores que não tinha participado nos números anteriores, incluindo Augusto Ferreira Gomes ou D. Tomás de Almeida.
O mais interessante de todos, a vários títulos, é C. Pacheco, autor do longo poema Para Além Doutro Oceano, que durante largas décadas passou por ter sido escrito pelo próprio Pessoa, de quem o dito Pacheco seria um ocasional heterónimo, e que está compilado em várias edições da obra poética pessoana. Afinal, C. Pacheco era José de Jesus Coelho Pacheco, um poeta de carne e osso, pelo menos nas horas vagas, já que nas outras dirigia um stand de automóveis que possuía em Lisboa. O equívoco só foi definitivamente deslindado em 2011, num artigo publicado no Jornal de Letras por Teresa Rita Lopes, a quem uma neta de Coelho Pacheco, Ana Rita Palmeirim, apareceu um dia com o manuscrito de Para Além Doutro Oceano.
Num texto que agora escreveu para o catálogo da exposição da BN, divertidamente intitulado C. Pacheco: história de um ex-heterónimo, Ana Rita Palmeirim, conta Zenith, especula que o avô, que importava carros da marca Chevrolet, possa estar na origem de um dos mais célebres poemas de Álvaro Campos. Quem sabe se não era C. Pacheco, com Pessoa/Campos ao lado, quem de facto ia “ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,/ Ao luar e ao sonho, na estrada deserta (…)”.