Oliveira, o curto
Um programa de quatro filmes para acompanhar o 106º aniversário de Manoel de Oliveira.
Em Oliveira, que uma vez disse que não sabia se um dia ia “deixar de fazer filmes porque morreu ou [ia] morrer porque deixou de fazer filmes”, o acto de filmar, mais do que prova de vitalidade, é a sua expressão. O Velho do Restelo, apresentado este ano, feito aos 105 anos, demonstra-o bem. É uma reunião, ao pé de casa, de algumas figuras caras ao universo de Oliveira, presenças ou inspirações recorrentes em vários pontos da sua obra: Camões, Camilo, Teixeira de Pascoaes, o Dom Quixote. Personagens mas também actores: Luís Miguel Cintra, Mário Barroso, Diogo Dória, Ricardo Trepa. Encontram-se todos, personagens e actores, num singularíssimo efeito de confusão “verista” (a maquilhagem e o guarda-roupa contra o cenário indisfarçadamente contemporâneo), num banco de jardim, algures no Porto, por certo não longe da casa onde habita Oliveira. E discorrem, dialogam, em conversas por onde passam aquelas mitologias portuguesas que sempre foram caras ao realizador, sempre em ponte – quanto mais não seja porque não podemos o cenário, reforço da teatralidade – com a época contemporânea, e sempre conservando o fio que liga tudo – o “dispositivo” e o seu “teor” – aos aspectos mais cruciais da obra de Oliveira, em particular um filme como Non ou a Vã Glória de Mandar, e a ideia de um país derrotado, que falhou o que lhe estava prometido (o plano dos Lusíadas à deriva no mar). Excertos de um Dom Quixote russo (o de Kozintsev, em 1957) pontuam o filme, que por vezes se lhes entrega longamente, como se Oliveira, através deles, cumprisse o sonho do seu próprio Dom Quixote que nunca realizou, ao mesmo tempo que instala o filme, melancolicamente, no território da ilusão e da frustração.
Dos outros filmes o que se articula mais directamente com O Velho do Restelo é o dedicado aos painéis de São Vicente (datado de 2010), pela sua visão da cultura e da história portuguesas e pelo princípio com que o faz, aquela teatralidade (as personagens dos painéis ganhando “vida”) assumida de maneira anti-convencional, que sempre foi um dos elementos mais representativos daquele desaforo, dir-se-ia único, do estilo de Oliveira. Se estes dois títulos se aproximam, os restantes dois formam outro par, pela assunção de um olhar “documental” e pelo seu objecto, o Porto. Douro, Faina Fluvial, feito em 1931, é um título mítico: na filmografia de Oliveira (momento inicial), na filmografia portuguesa, e mesmo num contexto europeu, de tal modo o filme está “ensopado” das mais vanguardistas correntes da época, nomeadamente as célebres “sinfonias de cidades”. A força do filme ainda hoje decorre daí: o poder das aquelas imagens, concretas e cheias de vida, “vida real”, e a estrutura, musical e anti-naturalista, que a montagem lhe confere. Feito 25 anos mais tarde, em plena década de 50, numa época em que Oliveira era “persona non grata” para a censura (só no princípio dos anos 60, com Acto da Primavera, voltaria à longa-metragem), O Pintor e a Cidade é um retrato do Porto feito a partir das aguarelas do pintor António Cruz, numa relação entre fotografia (e portanto, cinema) e pintura que está sempre a pôr a questão do confronto entre a realidade e a sua representação – outro aspecto central ao cinema de Oliveira. É talvez o filme mais desconhecido do grande público (muito mais do que o Douro), e na beleza serena do olhar de Oliveira sobre aquele Porto dos anos 50 (onde não faltam, aqui e ali, uns sinais da miséria salazarista que indiciam as razões do desamor do regime por Oliveira) porventura, para quem não o conhece ainda, a descoberta mais espantosa deste programa.