O regresso de Voltaire
Os atentados terroristas em Paris trouxeram de novo para a ordem do dia os seus textos e, em particular, o Tratado sobre a Tolerância
A edição disponível, que a Gallimard tinha lançado na sua colecção de bolso Folio em 2003, ao preço de 2 euros, numa tiragem de 120 mil exemplares, depressa esgotou, de tal modo que a editora anunciou a sua reimpressão na semana logo a seguir à Marcha Republicana de 11 de Janeiro. “Constatámos uma subida muito sensível das vendas da obra nos dias a seguir aos ataques, e mais ainda depois da marcha de domingo, de tal modo que decidimos avançar com uma reimpressão de 10 mil exemplares”, disse então um porta-voz da Gallimard, admitindo mesmo novas reedições do Tratado sobre a Tolerância.
Na semana passada, a imprensa francesa fazia eco da subida do livro de Voltaire ao top ten dos títulos mais vendidos em todo o país, logo a seguir ao novo romance de Michel Houellebecq, Soumission – cuja tiragem de 150 mil exemplares esgotou também em poucos dias – e às edições do Charlie Hebdo e de alguns dos seus autores.
A este regresso de Voltaire, o mais ilustre dos filósofos do Iluminismo francês, e em particular deste seu Tratado, não são estranhas as circunstâncias em que ele foi escrito em 1763. No ano imediatamente anterior, o comerciante Jean Calas, de religião protestante, tinha sido julgado e condenado à morte por um tribunal francês sob a acusação, não provada, de ter assassinado o seu próprio filho depois de este se ter convertido ao catolicismo.
Voltaire viu neste processo um atentado aos direitos mais fundamentais do homem, pelos quais vinha lutando, e a expressão mais extrema da intolerância. O filósofo conseguiu mesmo obrigar à reabertura do processo, de que resultaria a reabilitação póstuma de Calas.
Foi a pretexto deste caso que Voltaire escreveu o Tratado sobre a Tolerância, um texto em forma de “oração a deus” e “apelo aos homens” em defesa da tolerância religiosa e cívica. “(…) Que aqueles que acendem as velas em pleno meio-dia para celebrar [a Deus] aceitem aqueles que se contentam com a luz do sol” (…); “possam todos os homens lembrar-se que são irmãos! Que tenham horror à tirania que é exercida sobre as suas almas (…)”, escreveu o autor de Cândido, ou o Optimista. Proclamações que, mais de 250 anos depois, continuam a fazer sentido nestes tempos de regresso da intolerância.