O mundo não está para brincadeiras nos primeiros dias do Porto/Post/Doc
Novo festival de “cinema do real” mostra uma selecção competitiva que não recua perante a dureza da realidade.
Não há melhor exemplo disso do que Our Terrible Country, pungente olhar sobre a Síria em desintegração que acompanha o escritor Yassin al-Haj Saleh, que esteve 16 anos prisioneiro do regime de Bashar al-Assad, e o fotógrafo Ziad Homsi, quase 30 anos mais jovem, numa espécie de road movie simultaneamente geográfico e mental. Assinado a meias por Homsi e Muhammad Ali Atassi, Our Terrible Country, vencedor do FIDMarseille 2014 mostrado pelo Doclisboa na secção Investigações e aqui no concurso principal, é ao mesmo tempo um filme do seu momento, urgente e actual, e uma meditação intemporal sobre a própria identidade, sobre o que significa ser cidadão de um país.
É talvez por aí que se percebe a discrepância entre as obras portuguesas (três) e as obras estrangeiras (nove) escolhidas para a selecção competitiva do primeiro P/P/D. Os títulos portugueses são As Cidades e as Trocas de Luísa Homem e Pedro Pinho (terça 9, 18h, e quinta 11, 15h), Volta à Terra de João Pedro Plácido (domingo 7, 15h e sábado 13, 18h), e João Bénard da Costa de Manuel Mozos (segunda 8, 21h30, e quinta 11, 18h). Todos olham para quotidianos banais (Cabo Verde, a aldeia da Uz, a vida do crítico e programador João Bénard da Costa) de modo curioso, empático, até inspirado. Mas fazem-no de um modo essencialmente contemplativo e observacional.
Aquilo que vem lá de fora, por oposição, é poderosamente confrontacional ao ponto de ser, por vezes, insustentável. Já o percebíamos em Our Terrible Country (que passa domingo 7, 21h30, e quarta 10, 18h), mas outros filmes mostram-no de modo ainda mais duro. Em Atlas (sexta 5, 21h30 e sexta 12, 18h), o fotógrafo francês Antoine d'Agata, ligado à agência Magnum, recolhe imagens, vozes e histórias de prostitutas de todo o mundo. O seu olhar é simultaneamente neutro e impiedoso, sem fazer julgamentos morais, mas procurando a beleza no inferno diário de mulheres num círculo vicioso entre a droga e o sexo. Dilacerante exercício pictural que prolonga o trabalho fotográfico de D'Agata, Atlas coloca o modo como estas figuras são filmadas no centro da sua abordagem: é o tempo que cada plano dura que o diferencia de um simples objecto voyeurista.
É também a duração que está no centro do dispositivo de Storm Children, Book One (sábado 6 às 15h e sexta 12 às 21h30), onde Lav Diaz acompanha o quotidiano de alguns miúdos da cidade costeira de Tacloban City depois da passagem do tufão Haiyun. Formalmente, Storm Children não difere dos anteriores filmes do cineasta filipino (Norte – The End of History ou o Leopardo de Ouro de Locarno From What Is Before), mas aplica esse dispositivo ao real que o rodeia. São longos planos fixos a preto e branco que orientam o olhar do espectador em direcção ao essencial; a ausência de diálogos e a duração do plano revelam aos poucos, sem pressas, que estes miúdos de rua que parecem estar a usar a cidade como terreno de brincadeiras perderam família e casa na destruição. Diaz manifesta uma generosidade e uma abertura ao real que evita a compaixão gratuita.
Algo que a belga Ellen Vermeulen não consegue evitar em 9999 (sábado 6, 21h30 e sexta 12, 15h), primo afastado do Pára-me de Repente o Pensamento de Jorge Pelicano. O título refere-se ao número máximo de dias que a lei belga permite manter na prisão doentes mentais condenados pela prática de crimes; na prática, podem ficar detidos indefinidamente, e Vermeulen dá a ver o quotidiano de cinco homens nessa situação na insalubre prisão de Merksplas, perto de Antuérpia. 9999 assume abertamente a sua vocação de filme activista, procurando chamar a atenção para uma injustiça, mas no processo mostra-se mais interessado nestes homens como símbolos ou como vítimas de uma injustiça do que como indivíduos com histórias pessoais