O monge e filósofo mártir que não teve medo da morte
O pensamento e o processo do frade italiano Giordano Bruno que foi queimado pela Inquisição de Roma é o tema da ópera que este sábado tem estreia na Sala Suggia. Uma produção da Casa da Música com o Théâtre & Musique, de Paris
“Não resisti àquele momento em que [Giordano] Bruno faz uma espécie de tarantela, e imitei-o. Foi também uma forma de libertar a tensão acumulada durante o ensaio”, explicou ao PÚBLICO o compositor italiano, que estreia este sábado no Porto a sua primeira ópera.
Giordano Bruno é uma encomenda da Casa da Música e do Théâtre & Musique (T&M), de Paris, que depois irá ser apresentada em vários palcos de França e Itália, à imagem do que tem acontecido com outras co-produções da instituição portuguesa com parceiras europeias da Rede Varèse.
Esta ópera, que recria a vida e o pensamento do grande filósofo italiano do século XVI, nasceu da vontade de Filidei de “queimar alguém” – uma nota de humor negro para se referir ao martírio de Giordano Bruno (1548-1600), que foi sacrificado na fogueira da Inquisição de Roma, no dia 17 de Fevereiro de 1600, condenado por ter defendido o universo infinito e outras teses cosmológicas e teológicas contrárias à doutrina da Igreja, e por isso consideradas heresias. “Eu tinha o desejo de queimar alguém; no início, pensei em queimar uma feiticeira”, ri o compositor, citando Umberto Eco, que um dia explicou ter escrito O Nome da Rosa porque lhe apetecia envenenar um monge...
A sugestão de “queimar” Giordano Bruno foi dada a Filidei por Stefano Busellato, professor de filosofia e libretista, com quem tinha já feito um oratório sobre um anarquista italiano do século XX, Franco Serantini.
Ao texto de Busellato e à música de Filidei, respondeu o encenador francês Antoine Gindt, director do T&M, e que os frequentadores da Casa da Música conhecem já de encenações anteriores, nomeadamente Ring Saga, uma versão d’O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, apresentada no Porto em 2011.
O palco para esta primeira ópera dedicada a Giordano Bruno é uma caixa negra, pontuada por uma meia-esfera celeste como uma espécie de abat-jour sobre uma arena com duas mesas laterais cheias de alfaias religiosas (turíbulos, cálices, missais, velas…) e também de materiais de ciência e astronomia (cartas, mapas…). Em fundo, por detrás de uma cortina translúcida, o Remix Ensemble dirigido por Peter Rundel – “é um grupo extraordinário, com um trabalho a um nível muito alto, e dirigido por um maestro formidável”, diz Filidei sobre esta sua primeira colaboração com a formação portuense de música contemporânea.
Tanto a música como os intérpretes, incluindo os 12 elementos do coro, estão permanentemente em palco, numa obra que evolui em doze cenas, alternando o discurso do pensamento e da filosofia de Bruno com o seu processo na Inquisição, que durou oito anos, entre Veneza e Roma.
“É uma opção complicada, mas, verdadeiramente, foi a forma que encontrei de concretizar a ideia de Filidei” – explica Antoine Gindt – de que todos os cantores, sejam personagens (o Papa, os inquisidores), sejam os membros do coro, representam a sociedade daquele tempo.
O encenador reúne assim em cena, e em sequência, personagens que representam três níveis de acção: Giordano Bruno, o protagonista, uma figura “simultaneamente orgulhosa, carismática, mas também insuportável”; o poder e a ordem, instituídos pelo Papa e pela Inquisição; e a vox populi, figurada no coro.
Antoine Gindt nota ainda que este espectáculo não tem qualquer intenção didáctica. Não se trata de explicar quem foi Bruno, “alguém que conhecemos mal”, diz. “Sabemos que foi condenado pela Inquisição e queimado, mas, na realidade, não sabemos muito mais; não conhecemos a sua psicologia, não sabemos quem verdadeiramente era”.
Os autores – e o intérprete Lionel Peintre – quiseram com esta ópera ir além da simples figura do “mártir da Inquisição”: tentar perceber por que é que ele foi tão incómodo e desarmante, tanto para a ordem estabelecida como para a sociedade do seu tempo.
Lionel Peintre, o barítono francês que faz o protagonista, admite que este é um dos papéis mais difíceis que já interpretou até agora. “Primeiro, trata-se de uma personagem que se tornou mítica em Itália, mas permanece desconhecida no resto da Europa”, lembra. Depois, porque a música de Filidei “é extremamente sábia, difícil de aprender e de perceber” ao primeiro contacto. “É uma escrita muito complexa”, que corresponde a dois personagens igualmente complexos, acrescenta este cantor que já pisou por várias vezes “a magnífica Sala Suggia” (Philomela, 2004; Massacre, 2008; além da já citada Ring Saga).
A ópera de Francesco Filidei está estruturada em doze cenas “interligadas através de uma escala cromática”, que sobe nas cenas, pares, que descrevem o pensamento de Bruno (sol), e desce nas que encenam o julgamento (Fá sustenido) – e que são, também alternadamente, marcadas por vozes femininas e masculinas.
“Utilizei esta estrutura que é mais própria das sinfonias, mas que está também na linha dos princípios mnemotécnicos de Giordano Bruno, que escreveu muitas obras sobre a magia e a memória”, justifica o compositor. E acrescenta que recorreu, na sua escrita musical, tanto à tradição do canto gregoriano como ao imaginário contemporâneo de um Ligeti, por exemplo. “O canto gregoriano, porque é algo imortal, mas simultaneamente quis acrescentar-lhe algo de novo”, diz Filidei, explicando que concebeu a sua ópera como se propusesse uma visita a “um museu com pinturas do século XVIII, mas com caixilhos em metal feitos nos nossos dias”.
Visto como um herói do pensamento e da ciência – mesmo se depois superado em notoriedade pelo seu quase contemporâneo Galileu Galilei (1564-1642) –, Giordano Bruno foi, acima de tudo, “um homem”. Apresentou-se como tal – “Ecce homo” – no momento em que ouviu a sentença de morte, depois de – recorda Stefano Busellato num texto para o programa da ópera – ter comentado assim a decisão dos inquisidores: “Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-la”.
“Louvados sejam os deuses/ e glorificados por todos os seres vivos/ a infinita simplicíssima/ humilíssima altíssima/ e absolutíssima/ causa/ princípio/ e uno”. Assim termina Giordano Bruno nessa cena final em que o monge italiano vê o seu corpo ser consumido pelas chamas na Praça das Flores, em Roma – cidade que desde o final do século XIX celebra a verticalidade do seu herói com uma estátua no preciso lugar do seu sacrifício.