O meu passado é mais coerente que o vosso presente

Numa competição internacional pouco entusiasmante, o regresso do polaco Andrzej Zulawski tem o mérito da coerência. Mas o seu Cosmos é menos um filme de 2015 do que um regresso ao passado.

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A actriz portuguesa Victória Guerra (à esquerda) em Cosmos ALFAMA FILMES/DR
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Jonathan Genet é Witold ALFAMA FILMES/DR
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Jean-François Balmer, Sabine Azéma e Johan Libéreau em Cosmos ALFAMA FILMES/DR
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Victória Guerra interpreta Lena em Cosmos ALFAMA FILMES/DR

Quem não gosta de Zulawski, que se dedicou à literatura durante a sua longa ausência por trás das câmaras, não encontrará em Cosmos razões para passar a gostar; quem gostar não encontrará razões para desgostar. Mas toda esta conversa corre o risco de, como sempre quando se fala de festivais de cinema, funcionar em circuito fechado. Ainda o filme não tem cinco minutos e já uma personagem diz a outra “estes tempos são modernos”, levando com a resposta-pergunta “achas-me à moda antiga?”.
É uma frase aparentemente acidental mas em Cosmos, percebê-lo-emos, nada é casual ou descartável, nem mesmo o tom absurdo e histriónico de ópera-bufa a 200 à hora em roda livre do filme: a história de dois tipos (Jonathan Genêt e Johan Libéreau) que alugam um quarto por uns dias numa pensão familiar onde bichos sortidos aparecem enforcados. Este micro-“cosmos” gerido pelo improvável casal Sabine Azéma e Jean-François Balmer, e onde Victória Guerra e Clémentine Pons dão a volta à cabeça dos dois hóspedes enquanto se discutem as virtudes de Stendhal, Pasolini e Sartre. 

Embora geralmente não metamos Zulawski, radicado em França há quase 40 anos, no mesmo saco de compatriotas contemporâneos como Roman Polanski ou Jerzy Skolimowski, é inevitável ver na sátira escarninha e grotesca do filme os ecos libertários das novas vagas dos cinemas de leste dos anos 1960. Uma espécie de “regresso ao passado” ou “regresso ao princípio”, a um tipo de sátira cáustica, absurda, que parecia quase ser exigida pelos tempos que se viviam e pelos constrangimentos da Europa de Leste. Sim, este é um filme “à moda antiga”.

E esse é o problema central: nos 15 anos que mediaram entre A Fidelidade e Cosmos, Zulawski não perdeu um átomo do seu histrionismo e da sua exuberância frenética, nem mostra vontade de os moderar. A sua fidelidade ao espírito libertário de Gombrowicz, e a si próprio, significa que Cosmos é hoje igual ao que teria sido em 1975, 1985, 1995 ou 2005, independentemente de onde tiver sido rodado (e que é aqui Portugal por circunstâncias de produção): um filme de Andrzej Zulawski, frenético, excessivo, desconcertante, e finalmente decepcionante porque sentimos nele um cineasta parado no tempo, filmando em circuito fechado, pregando aos convertidos. Não é o realizador implacável mas ainda capaz de doçura de O Importante é Amor ou de Possessão que vemos aqui, é o cineasta niilista e descompensado de câmara epiléptica de As Minhas Noites São Mais Belas do que os Vossos Dias – aquele que, para nós, foi sempre o Zulawski menos interessante.

É, valha-nos isso, um filme coerente, insolente, que se reconhece à distância como obra do seu autor e que se está nas tintas para o que achem dele, cheio de humor – mesmo que o humor seja ácido (como nas referências cáusticas a Steven “Spielbleurgh” ou Ingmar “Bleurghman” ou ao filósofo Henri “Bleurghson”) ou auto-referencial (“o importante é amar”, cita alguém às tantas para logo a seguir levar com “que frase mais débil”). É o tipo de atitude não-me-ralo-nada que não faria mal muitos cineastas mais jovens emularem. (Nem é, aliás, casual que seja Paulo Branco a produzir Cosmos – o veterano português sempre fez questão de apoiar cineastas “nas margens” do circuito tradicional de produção, chamassem-se eles Werner Schroeter, Raul Ruiz ou Otar Iosselliani, que curiosamente também está este ano no concurso de Locarno.)

Mas num festival que se pretende atento aos “cineastas do presente” que são também “do futuro”, que este filme tão resolutamente “prisioneiro do passado” tenha mais personalidade do que a maioria das entradas a concurso internacional que já passou não augura nada de bom. Sobretudo quando alguns filmes que no papel pareciam intrigantes provaram ser decepções que desbarataram o “capital adquirido” e se conformam muito facilmente a uma ideia de “cinema de autor” que não sabe exactamente o que quer. Do iraniano Paradise de Sina Ataeian Dena já falámos. Brother Dejan, do georgiano Bakur Bakuradze, deita fora um excelente ponto de partida, inspirado pela vida na clandestinidade do general sérvio Ratko Mladic: uma tentativa de investigar o que é viver durante anos na clandestinidade, isolado do mundo, prisioneiro de si próprio, afunda-se na incapacidade de fazer passar a vida interior da personagem. E Dark in the White Light, do cineasta do Sri Lanka Vimukthi Jayasundara, faz em modo de filme-mosaico entrecruzado uma meditação sobre a vida e a morte que evoca Apichatpong Weerasethakul e Lav Diaz mas sem chegar ao onirismo de um nem à atenção do outro, patudo, redundante e maçador.

Face a isso, a coerência absoluta de Andrzej Zulawski faz figura de exemplo – mesmo que Cosmos seja um filme indigesto, frenético, finalmente esgotante. Um filme “à antiga polaca” (ou, mais precisamente, "à antiga Europa de Leste"), num 2015 em que a Polónia é uma história de sucesso europeu. A ironia, estamos certos, não escapa ao cineasta.  

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