O Homem, o mundo e um bailarino nascem de uma só vez

Em Tábua Rasa, em estreia nesta quinta-feira no Teatro Camões, quatro bailarinos juntam-se pela primeira vez unidos pela ideia de início. E desenham, em simultâneo, uma história tão íntima quanto universal.

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Tábua Rasa (foto de ensaio) Bruno Simão
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Tábua Rasa (foto de ensaio) Bruno Simão

Tábua Rasa começa verdadeiramente do nada e constrói-se a partir da vontade comum a quatro bailarinos que trabalham juntos pela primeira vez de largar toda a bagagem que traziam consigo e começar algo do zero. E o início em que quiseram pensar, de repente, tornou-se capaz de acolher tudo, da escala mais íntima e pessoal à mais universal. “O início de nós? De uma relação? A primeira memória de infância que temos? Qual o nosso início na dança? Começámos por en dehors ou com pliés?” São Castro nomeia uma série de interrogações que ela, António Cabrita, Xavier Carmo e Henriett Ventura partilharam à procura de um caminho para Tábua Rasa, que hoje se estreia no Teatro Camões, em Lisboa – fica até dia 23 de Maio.

Tão vasta é esta ideia de início que, nos pormenores dos movimentos coreográficos, se vão descobrindo pedaços de alguém que se ergue e aprende a caminhar, um corpo em pose de primata, dois dedos que quase se tocam numa citação de A Criação do Homem de Miguel Ângelo, o deus Atlas condenado a segurar também o mundo às costas, um gesticular decalcado de um hieróglifo egípcio. “Acaba por ser uma espécie de viagem para quem observa”, descreve Xavier Carmo. “Há imagens de que o público pode não ter um reconhecimento imediato que remetem para algo familiar.” Acontece que essa viagem faz-se em diferentes tempos simultâneos: a História em movimento, do Homem e do mundo, as histórias individuais, as histórias a dois (António e São trabalham juntos na pequena estrutura Vo’arte, Xavier e Henriett são bailarinos da Companhia Nacional de Bailado e têm um projecto em duo), uma nova história feita construída a quatro.

Do início ao fim
Tábua Rasa é uma contínua tentativa de resposta a como se começa algo novo. “Fomos permitindo que a peça nos dissesse o que era necessário”, refere António Cabrita. Por isso, foram acumulando camadas de leituras, encaixando tudo numa aparente e desarmante simplicidade até alcançarem a peça que tomará lugar no palco do Teatro Camões – onde o público também estará instalado, puxando para perto desta convocação íntima. Movidos pela curiosidade pelos corpos alheios – “fomos à procura do que o outro é e daquilo que ele tem que podemos sugar”, diz São Castro –, chegam a um cume a meio da peça, quando assumem uma mesma frase coreográfica com pequenas variações individuais, em que se encontram e desencontram repetidamente. De repente, cada um poderia estar no lugar dos outros três. “É uma mecanização”, traduz Cabrita. “Vejo muito a sociedade ali”. É apurar o olhar: num grande gesto colectivo, quatro seres a reclamar a sua individualidade.

“A partir daí é quase como se fosse o espelho do que aconteceu antes”, defende Henriett Ventura. “É um pouco um caminho para trás, como se fosse um filme do Tarantino.” Se António e São se tinham juntado em harmonia, Xavier e Henriett optam pela tensão; se a ideia de início parecia nortear cada gesto, de repente os sinais parecem indicar a extinção. Os começos dão lugar aos fins – para que tudo possa, talvez, reiniciar-se. Sozinho no palco, o corpo de António (onde antes estivera o de Xavier) vai sendo obrigado a vergar-se por força de uma vontade alheia. Ele resiste mas acaba no chão, a luz apaga-se e ouve-se de novo respirar. Até que a respiração se extingue. Tudo acaba. Uma relação, uma vida, uma espécie. Até uma simples e bela coreografia.

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