Perfume Genius antes procurava aceitação, agora exige respeito
O americano Mike Hadreas, ou seja Perfume Genius, confronta-nos com um universo sonoro e lírico tão sombrio quanto exuberante. Em Too Bright afirma-se como um dos autores mais criativos do momento.
Ao longo de dois álbuns (Learning de 2010 e Put Your Back N2 It de 2012) habituámo-nos a vê-lo como um adolescente tardio fixado no seu universo interior de maneira vulnerável, suplicando encarecidamente ao mundo para que o aceitasse tal como é. Agora revela-se exuberante, como é audível e visível no vídeo de Queen, que antecedeu o presente lançamento, num disco a que não se acede de forma fácil, mas onde se revela ele próprio.
“Antes procurava ser aceite, agora exijo ser respeitado”, resume ele, acerca da atitude que evidencia no novo álbum, Too Bright. Quando começou a preparar o novo registo existiu quem o aconselhasse a focar-se em temas mais universais do que a condição gay, ou a doença corporal de que padece, por exemplo – foi diagnosticado com a doença crónica de crohn aos 14 anos.
“Diziam-me que dessa forma poderia ambicionar a conquistar uma audiência mais vasta”, ri-se ele, quando reflecte sobre o tema, porque acabou por fazer exactamente o contrário. Não só voltou a temáticas que já tinha abordado anteriormente, como agora o fez de forma ainda mais incisiva e emocionalmente complexa.
Dito assim, poder-se-ia esperar que Mike Hadreas, mais conhecido por Perfume Genius, é um tipo algo soturno, mas longe disso. Ao longo da conversa que com ele mantivemos irrompe inúmeras vezes em risos, muitas vezes para se rir de si próprio.
Se nos dois primeiros álbuns parecia um baladeiro que expunha fragilidade, agora exibe a confiança dos cantores performáticos, num disco de uma beleza profunda, que consegue manter a mesma intensidade do início ao fim. A sua maneira de cantar está também diferente em muitos momentos. Claro que existe espaço para alguma harmonia, mas também para uma forma de vocalizar muito física onde a envolvência vocal se confunde com o grito.
Antes fazia canções minimalistas para voz e piano ou guitarra. Agora continua a existir muito espaço nas canções, mas a instrumentação é mais rica e variada. Há mais instrumentos. Mais ruído. A música é bem mais poderosa e desafiante. Ainda existe espaço para minimalismos de voz e piano, mas é como se o piano estivesse lá para produzir mais altercação do que harmonia.
Não espanta. Diz que se desta feita se focou mais na arquitectura sónica do que no passado. Antes escrevia e depois desenhava música para a letra. Agora o processo inverteu-se. Começou pelo som e só depois surgiram as palavras. “Costumava atribuir uma importância obsessiva às letras, mas fui percebendo que sem uma música de base que me fizesse sentido, as canções não teriam poder. E desta vez investi a sério, pela primeira vez, no som. Não me apetecia voltar a operar da mesma forma, comecei a distorcer as notas de piano e a minha voz, o que fez com que a música soasse no final bem mais tribal e abrasiva do que no passado.”
Por vezes comparam-no a Rufus Wainwright ou noutra perspectiva a Antony, mas a sua estética nada tem de barroco, ou de virtuoso ou de quase operático. Quando muito existe um misto de sobriedade e justeza, nunca tão evidentes como agora.
A existirem almas em que se pense são em nomes do antigamente como Nina Simone – “oh! Nina! Nina! Que voz, que alma, que atitude!”, diz ele – ou do presente como PJ Harvey, Cat Power ou Fiona Apple, ou seja música que não tem receio de se aproximar do melodrama para o transcender, transformando-se em lava catártica, num misto de beleza e verdade, seja lá o que isso for.
Há algumas canções, como My body, com um universo não distante da escrita de Jean Genet, ou Grid, em que se pensa também na dupla americana Suicide, arriscamos nós. Há qualquer coisa de minimalismo rítmico, de performance física, de grito das entranhas e de vontade de confrontação, que pode ser associado ao projecto de Martin Rev e Alan Vega, que conheceu o seu apogeu na Nova Iorque da viragem dos anos 1970 para os 1980.
“Não é a primeira pessoa a dizê-lo e, sim, reconheço que pode existir aí qualquer coisa, embora seja engraçada a minha relação com a música deles.” Porquê? “É que conheço várias canções deles e agrada-me o que oiço, mas nunca lhes dei a atenção suficiente para ouvir um álbum de fio a pavio”, ri-se ele. “Talvez aconteça o mesmo com algumas pessoas em relação a mim.”
Existe pelo menos uma coisa que os Suicide e ele partilham: a admiração por Elvis Presley. “Existiu uma altura em que estava verdadeiramente obcecado por ele, pela confiança que transmitia em palco. De alguma forma desejei que este disco respirasse também um pouco dessa confiança e talvez por isso a minha forma de cantar também mudou.” De que maneira?, interrogamos.
“Há menos afectação”, diria. “A minha voz está mais potente e solta. Talvez tenha a ver com algum amadurecimento, não sei”, afirma ele, para logo de seguida desfazer o que acabara de transmitir. “Eu disse amadurecer? Espero bem que não!”, ri-se.
Outra voz da efervescente cena artística e musical da Baixa de Nova Iorque dos anos 1970 e 1980 em que se pensa é a de Diamanda Galas. Ou na música do malogrado Arthur Russell, por exemplo. Ele ri-se. “Sim, é possível que tudo isso esteja presente na minha música. Essa fase da vida de Nova Iorque, a boémia e tal, deve ter sido totalmente fascinante. Deve ter sido um período libertador em termos artísticos que é isso que persigo também com este disco”, afirma. “Quis criar um disco mais explícito, mais temperamental, mais desafiador e menos sussurrado. Diamanda Galas tem também isso, a capacidade de expor segredos, gritando-os cá para fora sem pedir licença, e revejo-me nisso.”
Para produzir o álbum recorreu ao serviços do engenheiro de som Ali Chant – que já havia trabalhado com ele no álbum anterior – e principalmente a Adrian Utley dos Portishead. No trio de Bristol ele é o mais discreto. E no entanto está longe de ser apenas o guitarrista de serviço. Os ângulos mais inusitados, os ruídos experimentais e as inspirações mais singulares por norma surgem por via dele. Ele é o tipo do grupo com ideias difíceis de encaixar.
E isso sente-se no álbum de Perfume Genius. “Inicialmente ele teve acesso ao esqueleto das canções e ficou muito entusiasmado com o que ouviu o que é importante. Depois, como pessoa, é um tipo muito simpático e simples, o que é óptimo. E Finalmente é alguém que percebeu muito bem as minhas ideias. Inicialmente falámos sobre como eu desejava que as canções soassem e sobre o contexto emocional das mesmas e ele foi contribuindo também com alguns acrescentos, o que é raro.”
Ele diz que tem ideias claras sobre o que pretende, quando parte para a feitura de um disco, embora as mesmas nem sempre acabem por soar exactamente como as havia imaginado inicialmente. Anteriormente sentava-se ao piano e ia adicionado pequenos elementos por cima. Agora o processo tinha que ser diferente. Não podia criar um álbum de forma caseira como até aí. Os elementos que queria introduzir, e a sonoridade mais agressiva que procurava, só podiam ser trabalhados num verdadeiro estúdio.
E foi assim que, durante mês e meio, Hadreas e o namorado e colaborador Alan Wyffels, assentaram em Bristol. Curiosamente este último é um dos seus críticos mais intransigentes. “Está sempre a dizer-me que devia focar outras coisas que não os gays, porque hoje em dia as coisas melhoraram imenso”, ri-se. “Eu concordo. Posso casar-me em Seattle. E as gerações mais novas mostram afecto e amor em público. Mas a verdade é que noutros países posso levar com uma sentença de morte apenas por querer ser eu. E também é preciso pensar nesses contextos.”
O ano passado a dupla de irmãos suecos The Knife, num dos grandes lançamentos de 2013, o álbum Shaking The Habitual, interrogavam questões de género e estruturas de poder a partir de um ponto de vista politizado. Na entrevista que lhes fizemos confessavam que viverem num país como a Suécia, onde apesar de tudo as questões de poder – seja a partir de categorias como género, classe ou raça – se intersectam e se podem discutir, era um privilégio. Mas ao mesmo tempo uma grande responsabilidade.
“É isso mesmo”, reflecte Hadreas. “É necessário agir de acordo com aquilo em que acreditamos. As minhas canções não são tão explicitamente políticas como as deles, talvez porque partem quase sempre de um ponto de vista mais íntimo, mas acabam por sê-lo também, porque qualquer pessoa se pode identificar com aquilo que expresso ou com aquilo a que aponto o dedo.”
Hadreas é de Seattle, de família grega, e o seu treino com o piano limitou-se às lições que teve na infância. Mais tarde, já depois de ter estudado pintura em Nova Iorque, começou a fazer música caseira, da qual haveria de resultar o álbum de estreia. Quando começou, diz, não tinha nennhum ideia definida em mente. Começou como uma compulsão, uma necessidade, qualquer coisa de terapêutico. Todos os dias se sentava ao piano, escrevendo, gravando e fazendo vídeos. Mais tarde foi partilhando o que estava a fazer com os amigos, no YouTube ou no MySpace.
Depois aconteceu o habitual em tantos outros casos semelhantes. De blogue em blogue, a sua música foi sendo descoberta, em grande parte também pelos vídeos. Era o caso das imagens para No problem, com uma rapariga debaixo de água, fixando-nos, ajeitando o cabelo, no meio de um universo sonoro electrónico ambiental que nos fazia recordar experiências de David Lynch.
Entre as canções iniciais que lhe deram alguma visibilidade estava também Mr Petersen, onde citava os Joy Division – “He made me a tape of Joy Division / He told me there was a part of him missing / When i was 16 / He jumped off the building.”
“Gostava que a minha música tivesse um efeito semelhante ao desses grupos como os Joy Division ou PJ Harvey tiveram quando tinha 15 ou 16 anos. A música para mim foi importante quando não passava de um adolescente meio perdido. Foi através dela que percebi que não estava sozinho no mundo, e que havia outras pessoas a sentirem-se tão sós ou rejeitadas como eu. De alguma forma é como se a música me tivesse salvo a vida.”
Os seus dois primeiros álbuns eram discos de exorcismo, feitos por alguém que havia passado por experiências dolorosas durante os seus anos de Nova Iorque (mortes, desilusões, vícios, falta de confiança no que estava a fazer) e se dispunha a partilhá-los, através de uma música circular, vulnerável e auto-encantatória.
Depois regressou a Seattle, onde hoje reside e algo foi mudando. “Em vez de apenas interiorizar comecei também a exteriorizar, a não recear fazê-lo”, afirma. Quando era adolescente era o único gay assumido da escola e sofria ameaças por causa disso.
Quando isso acontecia imprimia as ameaças nas paredes, escrevendo: ‘isto é o que me estão a fazer. O que vais fazer tu acerca do assunto?’ E ninguém fazia nada. “Demorei tempo até ganhar confiança para agir de outra forma e em vez de esperar que sejam os outros a fazer qualquer coisa, ser eu a fazê-lo. A minha atitude hoje é muito mais ‘tenho que fazer alguma coisa para ser ouvido em vez de pedir seja a quem for que o faça.”
Quando falámos com ele, há dias, estava no Canadá. Seattle não é longe da fronteira com aquele país, por isso não estava longe de casa. Mas está a chegar a altura em que irá viajar pelo mundo para promover o novo disco e isso causa-lhe ansiedade, afirma.
“É um paradoxo, porque quando estou em casa desejo andar em digressão e quando estou em digressão, por vezes, só penso que em casa é que se estava bem”, diz, irrompendo em gargalhadas. “Em casa existe outra estabilidade, para além da roupa lavada.”
Mas quando lhe perguntamos o que faz quando está em casa, irrompe outra vez em risos: “para ser honesto, nem sei bem! Em digressão os dias são mais estruturados, sei exactamente o que fazer. Gosto daquele sentimento de nervoso miudinho que se tem ao longo do dia porque sei que vai existir qualquer coisa de especifico à noite que irá terminar com isso.” Ou seja, pode colocar toda a sua energia nesse momento do concerto. Serve como catalisador. Em casa é diferente. “Quando acordo, normalmente estou ansioso à mesma, mas sem nenhum escape em perspectiva, o que é muito frustrante”, profere por entre risos.
Há uma coisa que não consegue fazer em digressão: escrever. “Gostava de ter essa capacidade de escrever em qualquer lugar ou em qualquer momento, mas não o sei fazer. Não quero soar dramático, mas preciso de tempo e de isolamento total. Não gosto sequer que o meu namorado esteja por perto.” O namorado faz parte da banda que, para além do seu piano, integra baixo, bateria e programações. São quatro músicos em palco. Insuficientes, segundo ele, para transporem toda a diversidade instrumental do novo álbum para concerto, mas é o que é possível nesta fase.
No final de Novembro estará em Lisboa, integrando o cartaz do festival Vodafone Mexefest (28 e 29), e aí se aquilatará das suas actuais capacidades em palco. No passado recente, demonstrava alguma timidez. Agora diz-se mudado. “As canções são mais poderosas agora, apesar de só sermos quatro. Teríamos de ter coisas pré-gravadas e mais músicos para reproduzir o disco com alguma fidelidade, mas não vai acontecer”, afirma. “Mas eu grito desalmadamente como se estivesse num filme de terror”, ri-se, como se esse facto colmatasse eventuais fragilidades técnicas.
É um espectáculo negro, confessa. O que não significa depressivo. “Muitas pessoas disseram que os meus dois primeiros álbuns eram muito melancólicos, mas não os vejo assim. Este sim, é sombrio e não tem ponta de esperança. Mas existe também mais raiva o que vai contribuir para um concerto mais intenso.”
Não é fácil de situar Too Bright. Não é propriamente rock. Não é música de dança. Pouco tem a ver com o universo ‘indie’ da editora que o lança, a Matador. Mas é um álbum corajoso e emocional. Longe das concepções mais fáceis da cultura pop, no seu sentido mais lato. “Creio que é o álbum mais profundamente negro que podia fazer neste momento, mas paradoxalmente onde mais gargalhadas soltei na sua feitura.” Talvez seja isso, então.