Reaccionário, racista ou génio idiota?
Um realizador diz que há “coisas que hoje se chamam racistas que no tempo dele ninguém chamava racistad”. Há ou não consequências para este tipo de discurso? Muda a forma como se olha para os filmes de Clint Eastwood?
Muita gente chamou racista a Clint Eastwood à conta das suas declarações de Agosto deste ano. Mas será Clint racista? Ou um tipo que, como realizador é brilhante, mas como pessoa pouco inteligente? E se for reaccionário, isso afecta a forma como vemos os filmes? E esta visão do mundo esteve em toda a sua obra ou só surge de vez em quando? E vamos acabar por esquecê-lo ou vamos continuar a vê-lo?
A avaliar pelas reacções das redes sociais, a entrevista que Clint Eastwood deu à Esquire a 3 de Agosto deste ano terá sido o momento mais controverso de uma vida a prestar declarações em público.
Aparentando não estar com muita paciência para discussões políticas, Clint diz que está na altura de “ultrapassar de vez” as declarações racistas do candidato republicano Donald Trump (que declarou que apoia, pelo menos para não votar em Hillary) e afiança que uma boa parte daquilo que hoje é apelidado de racismo era perfeitamente normal no seu tempo. E termina chamando aos milenials “pussy generation”.
Talvez sejam mesmo as mais infelizes declarações de Clint – embora não seja fácil ter certezas, no que diz respeito à infelicidade das declarações públicas de Clint, é que desde o início da sua carreira que o homem que encarnou Dirty Harry tem uma imensa propensão para enfiar a pata na poça sem, aparentemente, sentir remorso.
Para os mais distraídos: este é o homem que em 2005 terá ameaçado matar Michael Moore, embora uma década mais tarde o tenha negado – para no instante a seguir, e a sorrir, afirmar que “não seria má ideia” (Moore destaca-se pela sua luta contra o porte de armas). É possível (é até provável) que Clint não queira matar Moore (ou pelo menos que não esteja para passar o resto dos seus dias na cadeia), mas a frase fica como símbolo do tipo de sarilhos a que o senhor Eastwood não se furta.
Há quem debata se Clint crê plenamente no que diz em situações como a relativa a Michael Moore, quem defenda que ele está a brincar com a sua imagem de duro, mas isso só ele saberá – o que temos são as palavras. Ou o conjunto delas. E o conjunto das declarações de Clint ao longo dos anos configuram uma espécie de libertarianismo conservador, um emaranhado confuso de “Cada um por si” ou “Cada um faz as suas regras”, misturado com uma valente repugnância pela mudança.
Mas há ou não consequências para este tipo de discurso?
Racismo ou estupidez?
Eastwood já foi quase um has been e depois tornou-se o último dos clássicos. Nesse trajecto não deixou de ter declarações passíveis de serem consideradas reaccionárias; foi longe demais nesta última ou foi o momento que mudou e, perante a perspectiva de ter Trump como presidente dos EUA, as pessoas decidiram, desta feita, não perdoar? Será que durante muito tempo as pessoas fecharam os olhos a esta faceta de Clint? Será que isso importa na forma como olhamos a sua obra?
“Este tipo de entrevista”, conta Jorge Manuel Lopes, jornalista da Time Out que, aquando da peça da Esquire manifestou nas redes sociais o seu "desagrado com as declarações”, “retorna-nos a um período pré-reavaliação crítica da obra do Eastwood”.
Como recorda JML, houve uma altura “em que ele era tido como um reaccionário que fazia filmes quase de propaganda”. Ora, a reabilitação de uma obra muda não só a forma como olhamos para ela, mas também para o autor: “Nos anos 1980 Eastwood começou a ser reavaliado e com a reabilitação tendemos a relevar o lado político mais complexo. Ele atingiu uma espécie de estatuto aproximado da santificação. Mas há momentos em que lhe salta a tampa. E aí reparamos que ele ainda é o mesmo tipo que fazia de Dirty Harry”.
Ou seja, é possível que Clint nunca tenha sido tão sofisticado quanto a sua própria obra: os seus filmes podem ser belos manifestos da complexidade do mundo – mas ele tende a expressar-se (e, aparentemente, a pensar) como um tasqueiro.
Esse é um aspecto sublinhado com veemência pelo comentador político Daniel Oliveira, que é fanático de Clint – e que na altura também levantou a sua voz nas redes sociais contra as declarações do realizador de GranTorino: “Quando não está a realizar o Clint Eastwood diz as coisas mais básicas”, afirma Oliveira, em conversa telefónica.
Daniel Oliveira não se espanta com o apoio de Clint a Trump: “Ele já apoiou tudo o que há de mau”, diz. O que o incomodou nas suas recentes declarações foi “a forma tão primária” como o realizador olhou para o mundo. “Tu vês os filmes e percebes que estás perante um homem de direita – na questão da masculinidade, por exemplo. Mas os filmes estão cheios de contradições e ele apresenta a sua visão do mundo com sofisticação. Fora dos filmes é que ele não tem sofisticação nenhuma”. Oliveira tem, até, dificuldade em acreditar que Clint tenha capacidade, fora dos filmes, de articular um pensamento complexo.
A citação retirada da entrevista que mais incomoda Daniel Oliveira é a mesma que outros consideram a mais grave: “É quando ele diz que há coisas que hoje se chamam racistas e que no tempo dele ninguém chamava racistas… Mas nesse tempo havia o Klu Klux Klan – ele não se aperceber disso é um sinal de estupidez”. Resumindo de forma contundente: “Não acho que ele tenha sido racista, acho que ele foi idiota”.
Oliveira não vai deixar de ver os filmes de Clint – separa o homem do realizador, separa o objecto estético da visão política que acredita estar presente (e com a qual não podia discordar mais). O professor universitário Mário Moura, que tem uma visão curiosa sobre a ideologia que surge nos filmes de Clint, idem. Mas Jorge Manuel Lopes não consegue.
“Depois daquela entrevista tenho a consciência que perdi a paciência para rever. Foi um bocado a última gota”, diz o jornalista. Não é só com Clint, diga-se: “Já me foi mais fácil separar o criador da pessoa – mas com a idade e em particular depois de ter filhos comecei a ver as coisas de forma diferente. Quando o que estás a ver – ou a ouvir – arranha fronteiras complicadas...”
Ver ou não ver?
Para Jorge Manuel Lopes “é difícil, a partir do momento em que sabes uma coisa, deixar de o saber. Já de há uns anos para cá que não consigo ver um filme do Polanski em branco”. Lopes vai mais longe: “Há aqui uma linha e é bastante evidente e é difícil fazer de conta que não se vê e é difícil separar autor e pessoa a partir daí.” Transposto para o caso de Polanski, custa-lhe “a entender como nove em cada dez artigos ignoram o historial que ele tem”.
Mário Moura também acredita que Clint acredita no que diz, mas vai “continuar a ver os filmes do autor de Imperdoável”: “Nunca tive grandes ilusões sobre o Clint, que me parece um grande conservador e mesmo uma pessoa bastante bruta”.
Quando se apercebeu da discussão provocada pela entrevista à Esquire o que fez o nariz de Mário Moura torcer nem foi o que Eastwood dizia sobre Trump, “porque ele distanciava-se [do candidato republicano”. Mas “depois entornava o caldo porque dizia que havia coisas que hoje são consideradas racistas e no seu tempo não o seriam”.
Mário faz uma leitura semiótica das declarações de Clint: “Ele aprecia o Trump porque Trump diz o que quer mas nós não podemos dizer o que queremos – é que isso, na prática, é pedir liberdade para dizer coisas racistas e homofóbicas”. Tem implicações: “Essa liberdade que o Clint quer só é possível se não responderem ao que ele diz – ou ao que Trump diz. Era o que acontecia antigamente: alguém usava a palavra ‘preto’ e isso era considerado normal. Alguém dizia que o lugar da mulher é em casa e isso era considerado normal. Mas hoje há resposta para esse tipo de afirmações”.
Para Moura há aqui uma sobredose de nostalgia. “A nostalgia do Clint é a nostalgia do silêncio, do branco que pode dizer o que quiser sem resposta. Isso é quase impensável hoje em dia”.
Ora, diz Mário Moura, isso está em toda a obra de Clint – nós é que não estivemos a olhar durante algum tempo (ou os tempos tornaram-se mais complicados, nos últimos tempos, e agora não perdoamos).
O vigilante
“Os Dirty Harrys [que não são realizados por Clint, Clint só dá corpo à personagem] foram altamente discutidos. O Imperdoável foi altamente discutido”, recorda Mário, fazendo um comentário curioso: “Toda a carreira do Clint é passada à procura do vigilante, de uma ideia de vigilante”. Esse vigilante actua à laia das leis e das regras dos restantes mortais; em termos éticos isso é inaceitável mas aceitamos porque vemos os filmes como uma experiência estética.
“Isso foi estetizado, foi convertido em clássico. Aliás, faz-nos desconfiar do que é um clássico – chamamos clássico a um filme e está feito, o filme foi desautorizado, não tem mais de se pensar nele. Mas eles, os Fords, os Griffiths, tomavam decisões, sabiam o que estavam a fazer e as decisões que tomavam eram eficazes. Não há como fugir disso: eram eficazes, até porque conseguiam chegar a muitas pessoas”.
Moura está em crer que isso vai acontecer com a obra de Eastwood. Aliás: que já aconteceu na obra de Clint. “Quando se chama ‘western urbano’ a qualquer um dos Dirty Harrys já se está a desculpar o presente à conta do passado. Estamos a dizer que aceitamos aquele comportamento inaceitável porque decidimos olhá-lo à luz dos westerns”.
Moura pergunta-se, por exemplo, se se deve “ver o Coração negro Caçador Branco como um retrato do fim de uma era ou como uma nostalgia de uma era que já não volta”. Ao mesmo tempo, ele fica na dúvida se, por vezes, “não projectamos no autor críticas e dúvidas que são mais nossas do que dele”. Sendo que ele, como diz Oliveira, “não é propriamente um tipo sofisticado. Pensa bem nos filmes, não fora deles”.
Oliveira também crê que se olharmos com atenção para os filmes de Clint vamos encontrar ali coisas que não agradam aos espíritos liberais: “O Gran Torino é um filme sobre o preconceito mas em que há uma aproximação entre as duas partes. Mas essa aproximação não é igualitária: é o miúdo que se americaniza, que se aproxima da personagem de Clint. É o rapaz que ele protege que se aproxima dos valores que o Clint considera dignos, porque são os valores que ele considera americanos”.
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No fundo, diz Moura, irá acontecer a Eastwood “o mesmo que aconteceu a Ford e o Griffith: “Foram estetizados”. Porque quando se vê um filme como Judge Priest [de Ford] com atenção, “aquilo é a glorificação nostálgica perfeita de uma época racista. Com o criado negro subserviente, com todos esses clichés”. Jorge Manuel Lopes, que admite que “já não [consegue] abstrair[-se] da moral dos autores”, acredita que “se o mundo e as mentalidades mudarem para melhor, então o mundo que Clint retrata vai soar anacrónico para quem os veja daqui a 30 ou 40 anos”.
Ou seja: é possível que com o tempo consigamos ver de forma clara o que há-de reaccionário em Clint; ou é possível que o arrumemos na prateleira dos clássicos e está resolvido.
Mas existe mais uma possibilidade: a de, como diz Oliveira, “ser nos filmes que Clint consegue mostrar de forma sofisticada as contradições dos seres humanos”, a hipótese de ser “exactamente por isso que gostamos de ver os filmes dele”. Ou, posto de forma um pouco mais crassa: “Trata-se de uma realizador de génio e de um idiota como pessoa”.
Não seria o primeiro.