O futuro vê-se da Cooperativa dos Pedreiros
Ao longo do século XX, foi aqui que se construiu uma cidade (e a mística que a destina ao trabalho). Cem anos depois, a Cooperativa dos Pedreiros tem uma segunda vida: uma exposição mostra o que os artistas chamados a intervir pelo programa Technical Unconscious fizeram nas traseiras da única torre de onde se vê o Porto todo.
Uma história em curso desde 2013, o ano em que um programa misto (metade investigação, metade criação artística) da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto (FBAUP) entendeu “reactivar” o complexo da Cooperativa dos Pedreiros, e que no sábado, com a inauguração da exposição Technical Unconscious, cumpre mais uma etapa decisiva, ainda perfeitamente a tempo de participar na efeméride que é o centenário da instituição fundada em 1914 por um grupo de dez operários especializados então envolvidos na construção da Estação de São Bento.
Por estes dias, mesmo quando cai uma chuva de desfazer paredes e tectos, há gente a entrar e a sair do museu da Cooperativa dos Pedreiros, o lugar onde, para o caso de haver quem continue a perguntar, se conta, bloco de granito a bloco de granito, como ao longo de todo o século XX esse grupo de operários construiu uma cidade (e ainda exportou para o resto do mundo alfabeticamente ordenado que começa na Arábia Saudita e acaba no Zimbabwe). Um alfinete verde ou vermelho por cada edifício, e são às dezenas: Estação de São Bento, Paços do Concelho, Banco de Portugal, Palácio dos Correios, Igreja do Marquês, Igreja das Antas, Faculdade de Direito, Rivoli, Café Ceuta, as casas burguesas da Marechal Gomes da Costa e da Avenida Brasil (mais o Monumento à Guerra Peninsular, mesmo no centro da Rotunda da Boavista).
É uma história colossal, mas também é uma história esquecida. Em 1977, a Cooperativa dos Pedreiros transferiu as suas oficinas para as novas instalações de Leça do Bailio, especializou-se em revestimentos e aplicações de granitos e mármores, e a cidade continuou a construir-se nas suas costas, agora em betão. Ficou, para memória futura, a torre da Rua D. João IV (onde, por cima dos apartamentos que a Cooperativa arrenda para financiar as suas missões de assistência, em caso de doença, invalidez ou morte dos cooperantes, funcionam, como se ainda estivessem nos anos 70, a Albergaria Miradouro e o restaurante Portucale, além da Rádio Festival). E ficaram, por trás dela, as oficinas agora devolutas (e em tempos apoiadas por dormitórios, balneários, cantina, gabinete médico, enfermaria, biblioteca…) de onde saíram, impecavelmente cortadas e polidas, pedras para todo o mundo, mais o edifício parcialmente ocupado pela Academia José Moreira da Silva – Cooperativa de Estudos de Economia Social, onde basta empurrar uma porta empenada para descobrir um auditório escondido na barriga da cidade (e, lá dentro, uma dupla de artistas italianos, Giuliana Racco e Matteo Guidi, em pleno processo criativo partilhado com os alunos da escola profissional e da FBAUP).
O museu, para o caso de haver quem pergunte, fica ao cimo das escadas. Vamos subindo.
A cidade escondida
Mais do que uma forma de pensar sobre o destino de espaços como as antigas oficinas da Cooperativa dos Pedreiros num ambiente pós-industrial, o projecto Technical Unconscious é uma forma de pensar sobre o destino de uma cidade como o Porto. “Em que momento é que o Porto deixou de ser a cidade da ciência, da indústria e do trabalho e passou a ser a cidade do turismo?”, pergunta a curadora Inês Moreira junto a uma das janelas do 13.º andar de onde finalmente é possível ter uma ideia mais aproximada da escala da fábrica que aqui laborou entre 1937 e 1977 (e também do seu estado de degradação). “O conceito global do programa Soft Control [uma das alíneas do Programa Cultura da União Europeia] tem a ver com a ideia de inconsciente tecnológico desenvolvida pelo curador russo Dmitry Bulatov. Candidatámo-nos por acreditarmos que fazia sentido pensar o passado e o presente do Porto à luz da ideia de um ‘inconsciente técnico’ – de que há gestos e hábitos técnicos que nos constroem como sujeitos e como cidadãos. E nesse contexto a Cooperativa dos Pedreiros surgia como espaço emblemático – topograficamente, porque é o ponto mais alto do Porto, mas também simbolicamente, porque está em cima da pedreira de onde saíram os materiais com que se construiu parte muito significativa da cidade, e porque a cultura de trabalho a que está associada é um elemento fundamental da sua identidade, até política”, acrescenta o arqueólogo Gonçalo Leite Velho, coordenador do projecto.
Recém-saída de uma outra experiência de curadoria no âmbito do pós-industrial – o “projecto-ensaio” Edifícios & Vestígios, que desenvolveu para Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura –, Inês Moreira conhecia bem o chão que ia começar a pisar. “Fui inquilina da torre, que apesar de tudo é o lado mais visível deste complexo. O resto é um segredo, uma cidade escondida. Curiosamente, as primeiras artistas que chamámos, a dupla de designers Joana & Mariana, também têm o seu estúdio no edifício – como estão a fazer doutoramento sobre a identidade visual do Estado Novo como construção ideológica, pareceu-nos interessante que se debruçassem também sobre a identidade visual da Cooperativa dos Pedreiros, a partir dos arquivos da empresa. Ao contrário dos outros artistas que aqui residiram três semanas, elas foram residentes permanentes”, sublinha a curadora.
O trabalho que Joana & Mariana fizeram deu um livro – uma das manifestações visíveis da parte de Technical Unconscious que é investigação aplicada. O trabalho da maioria dos outros artistas chamados a participar no projecto por três semanas deu a exposição que amanhã será inaugurada com uma visita guiada de Inês Moreira – um “percurso imersivo pela diversidade de um complexo” que é preciso ver primeiro da altura de um 13.º andar ou à escala da maquete colocada à entrada do museu.
O auditório, onde encontraremos os primeiros artistas actualmente em residência, fica lá em baixo. Vamos descendo.
O que fazer?
Giuliana Racco e Matteo Guidi têm uma plateia de alunos vestidos com as batas azuis da escola profissional – a maioria vindos dos países africanos de língua oficial portuguesa com que a Academia José Moreira da Silva tem protocolo – a assistir aos slides que vão mostrando. Em cima da mesa, um mapa-mundo, amostras de pedras, post-its e chávenas de chá permitem reconstituir o trabalho que fizeram desde que chegaram ao Porto e desafiaram os participantes do workshop a pensar na melhor maneira de integrar pedras da Cisjordânia no percurso de Technical Unconscious. “A pedra é a principal exportação da Palestina – mas a Palestina tem imensa dificuldade em exportá-la porque para isso precisa de atravessar Israel. The Artist and The Stone, o trabalho que estamos a desenvolver para o Hangar, em Barcelona, aborda questões de mobilidade económica e artística num contexto de conflito e colonização. Basicamente, pretendemos descobrir o que é mais difícil: fazer chegar da Cisjordânia à Europa uma pedra de 20 toneladas ou um artista palestiniano que vive num campo de refugiados?”, explica Giuliana. Uma amostra retirada da mesma pedreira está a fazer o seu caminho até ao Porto (“Não foi fácil, mas depois de 150 emails trocados…”) e agora há que perceber o que fazer com ela. “Vemo-las como pedras ‘descolonizadas’ e interessa-nos perceber que lugar poderão ter na história de uma empresa que durante décadas trabalhou com pedras extraídas em territórios coloniais – e que agora recebe tantos estudantes das ex-colónias na sua escola”, completa Matteo.
Mais atrás, na oficina que “até há uma semana era um depósito de entulho industrial”, o coreógrafo esloveno Iztok Kovac fixou-se num cartaz que ainda resiste numa das paredes castanhas – “Dignos consócios: o valor da vossa reforma depende de vós próprios” – e fez dele “o espírito” da reconstituição que ali está a filmar com um grupo de performers. Depois de experiências similares em minas desactivadas perto da cidade onde nasceu, um espaço como este não lhe induz necessariamente tristeza: “É a vida. Isto é só um momento no tempo. O trabalho destes pedreiros não parece muito compatível com a actualidade, mas não sabemos se daqui a 50 anos serão necessários outra vez. Estarmos aqui também é uma forma de darmos outra vida a este espaço, ainda que seja uma vida mais abstracta.” Ou não, se olharmos para o statement que a artista israelita Relli De Vries está a escrever com canas numa parede da carpintaria (“Medida”, uma palavra exactamente igual em português e em hebraico) ou para as ferramentas tradicionais que a designer inglesa Linda Brothwell ali encontrou e quis replicar em granito “para que se tornassem inúteis” e materializassem o dilema entre a nostalgia pelo passado industrial e a necessidade de dar um futuro a técnicas condenadas.
Não é palavra que esteja escrita nestas paredes, futuro. E no entanto é esse o verdadeiro objectivo do projecto Technical Unconscious, diz ao Ípsilon Gonçalo Leite Velho: “Encontrámos a Cooperativa dos Pedreiros num estado muito terminal e gostávamos obviamente que isto pudesse despertar outras coisas. De certa forma, já suscitou um pequeno hype: desde que aqui estamos instalaram-se o estúdio de artes gráficas Oficina Arara, um atelier de arquitectos, o projecto Escola Viva… Acreditamos que é possível desenvolver uma dinâmica intermédia no Porto: entre as grandes instituições como Serralves e os pequenos espaços alternativos. Claro que a apoteose do nosso programa será a vinda, em Novembro, do [filósofo] Slavoj Zizek, mas o projecto só fica concluído se deixar um rasto mais imanente.” Se, conclui Inês Moreira, todo este trabalho “de tentativa e erro” permitir acrescentar outros capítulos a esta história, para lá do “passado mítico” a que já estava associada, e “reactivar um espaço que parecia condenado”.
Até 22 de Novembro, pelo menos, a porta da Cooperativa dos Pedreiros fica aberta.