Alice Rohrwacher e o espírito da colmeia
O País das Maravilhas é o território da experiência cinematográfica mais pura: tacteamos, nunca agarramos. O filme de Alice Rohrwacher abre a Festa do Cinema Italiano, dia 25, às 21h30, no Cinema São Jorge, em Lisboa, e depois estreia a 26.
O pai vê em todo o lado a agressão do mundo. Mesmo numa fada televisiva (Monica Bellucci), apresentadora de um show que atrai a adolescente Gelsomina (Alexandra Lungu) para a eleição da mais perfeita das famílias de agricultores, um espectáculo emitido a partir de uma necrópole etrusca. O maravilhoso televisivo é a promessa de logro, coisa mortífera. Tal como nos filmes de Fellini, “país” onde nasceram também esta fada Bellucci e este nome Gelsomina (a personagem que Giulietta Masina interpretava em La Strada, de 1954) — e Fellini é um território da Festa, com o documentário de Ettore Scola Che strano chiamarsi Federico/Que estranho chamar-se Federico (29 de Março, às 19h30, Cinema São Jorge; estreia comercial a 2 de Abril).
O pai de O País das Maravilhas exerce, então, a tirania em nome do amor.
Algo aconteceu aos (seus) ideais, e por causa dos ideais, no passado. O medo: isso parece certo. As línguas que nesta família se falam são espaços dos segredos. O francês talvez conte uma história de amor, a dos pais (Sam Louvyck/Wolfgang e Alba Rohrwacher/Angelica): é coisa só deles, a língua que serviu de plataforma a dois estrangeiros quando se encontraram 20 anos antes. Com o alemão irrompe a raiva dele. São as vidas do passado. Já o italiano é a língua de integração — a Toscana –, é a tentativa de existência no presente.
Talvez que O País das Maravilhas conte a história de um mundo que já morreu (de um cinema que acabou?). A primeira sequência talvez vos interrogue durante todo o filme: uma família a materializar-se como se tivesse sido acordada de um sono eterno, apanhada na noite pela luz de caçadores – é assim que começa O País das Maravilhas.
“ — Olha aquela casa”, observa um.
“ — Aquela casa sempre ali esteve”, responde o outro.
De onde veio a família? Para onde foi?
Alice Rohrwacher não vai corrompê-la. Alice começava também assim a sua estreia na ficção, Corpo Celeste (2011), descobrindo as personagens na noite com os protocolos do documentário – forma de amortecer a violência. Devolve a descoberta ao seu habitat. Na linhagem de outros títulos sobre a infância, que são afinal filmes sobre tudo que não precisam de explicar nada — O Espírito da Colmeia (1973), de Victor Erice, Será que Vai Nevar no Natal? (1996), de Sandrine Veysset, Nana (2011), de Valerie Massadian... —, O País das Maravilhas não decide coisa alguma pelas personagens. É uma forma de se manter junto ao que de mais puro, inexplicável, pode existir na experiência cinematográfica: tacteamos, nunca agarramos.
O Festival de Cannes apontou a luz a esta segunda longa-metragem de Alice Rohrwacher, deu-lhe o Grande Prémio da edição 2014. A Palma de Ouro foi para Sono de Inverno, do turco Nuri Bilge Ceylan, filme que passa todo o tempo a explicar.
A conversa com Alice Rohrwacher, 32 anos, decorreu em inglês, em italiano e teve toques de português — marcas da sua história pessoal, de uma passagem por Lisboa, via Erasmus, de um curso de cinema documental na Videoteca Municipal que, segundo esta estudante de Grego Clássico, foi a sua única escola de cinema. O filme recompõe e fantasia a partir de uma história pessoal: Alice é filha de um alemão e de uma francesa, a infância decorreu junto às abelhas e ao mel — é a memória dela e a memória da irmã, Alba, a actriz do filme.
Diz Alice que no seu percurso andou sempre a tentar evitar o cinema. Ainda bem que a luz a apanhou. Vai estar em Lisboa, para a sessão inaugural da Festa do Cinema Italiano.
Perante a sequência de abertura de O País das Maravilhas, faróis de carros na noite, um grupo de caçadores a varrerem com luzes uma casa na escuridão, depois os membros de uma família a dormirem, depois a acordarem, fiquei com uma sensação estranha: a de que aquela família talvez não existisse, talvez estivesse morta...
Bravo! [risos]
São fantasmas. Essa sensação visitou-me várias vezes durante o filme, tentei não lhe ligar mas a sequência final pareceu confirmá-la.
Há sempre vários temas num filme. Algures neste filme um deles é que, isso é seguro para mim, esta é uma história de fantasmas. Num dos últimos diálogos, uma menina pergunta: “Ouviram?, um fantasma!” O meu grande desejo era contar a história de um lugar que resiste aos humanos: não obstante os humanos, os lugares existem antes deles e continuará a existir depois deles. Mesmo que transformados, às vezes, pelas exigências, pelas necessidades dos que o habitaram, pelas mãos dos que o habitaram, eles continuam. Não possuímos os lugares. Isso era também uma forma de dizer a Gelsomina [a filha do casal do filme]: “olha, não te preocupes porque neste momento estes problemas parecem-te enormes mas seguramente uma outra menina etrusca sentiu os mesmos [Etrúria era a região da antiga Itália composta por cidades-estado que corresponde hoje à Toscana e Umbria; aí nasceu e viveu a realizadora].
Quando os caçadores encontram a casa, um diz: “Está ali uma casa...”, e outro: “Não, aquela casa esteve sempre ali.” Quando entramos dentro de uma história há sempre uma dose de violência, somos sempre caçadores que apontamos com as luzes para lugares onde estão fantasmas e com essa luz trazemo-los à vida – embora nunca o consigamos, na verdade. Quis fazer isto de forma gentil, não intelectual. Queria chegar a isto com simplicidade, para que a emoção não fosse cortada.
É isso, de facto: este filme toca em algo que é, de forma muito profunda, a natureza do cinema, isso de as coisas estarem mortas e de poderem acordar por momentos, para desaparecerem logo a seguir. Nunca se agarra totalmente um filme, não é? Ele acaba por desaparecer. Não sendo nada teórico - muito pelo contrário - O País das Maravilhas é um pequeno tratado sobre a experiência cinematográfica.
Dá-me muito prazer que diga isso porque não gosto nada de me exprimir através da teoria, mas não posso negar que há um labor teórico envolvido no filme. Gosto que esse labor permaneça secreto, de alguma forma. Embora haja muitos indícios pequenos, dessa teoria, ao longo do filme, parece-me sempre simplista, banal, expô-la. Se há uma imagem que posso dar é a do funâmbulo, aquele que caminha na corda bamba: é um trabalho incrível que ele deve fazer. Deve conhecer todos os músculos do corpo e a mente, deve fazer um trabalho interior e exterior gigantesco, mas no fim o que ele faz não é nada de estranho: ele apenas caminha.
Um grande funâmbulo faz o que é natural fazer, caminha, joga, ri.
O que já não existe hoje é essa passagem natural entre a realidade, dos corpos, dos lugares, quase visceral, e a fantasia. Foi esse o sortilégio do cinema italiano do passado, e quando isso se volta a mostrar hoje aparece muitas vezes sob a forma de homenagem, o que é algo requentado mesmo com todas as boas intenções. No caso do seu filme, sente-se uma continuidade natural. Queria saber da história daqueles lugares, que são os lugares da sua infância, que foram a sua realidade - os seus pais tinham actividade de apicultores, a sua família é bilingue, como a do filme. Queria saber como foi a passagem para a fantasia...
Enquanto rodava o filme havia uma clara sensação de filmar uma memória. Não a minha, porque ao contrário do que se possa pensar, embora o filme esteja ligado aos lugares que foram os meus, ele não é autobiográfico, não é a minha vida – embora esteja ligada a ela.
A memória confunde. A memória das coisas pequenas torna-se grande, confunde as dimensões. Nunca houve um desejo de impor símbolos e referências, mas os símbolos e as referências estão sempre dentro. Econtramo-los, não os procuramos. As coisas crescem a partir de baixo.
Cresci num mundo em que as abelhas são muito importantes. Cresci num mundo em que as tradições são também muito importantes. O meu pai não é italiano, metade da minha família não é italiana. A tradição como gesto esteve sempre na minha vida. Porque a língua sempre foi uma coisa muito frágil, sempre variável. No início trabalhar com os outros [ao fazer o filme] era como estar a trabalhar com coisas que eu conhecia. Mas depois trabalhando compreendi que não era esse o motivo, que eu não conhecia as coisas – ou que as coisas não me conheciam. No início foi muito instintivo, depois tornou-se outra coisa: filmar uma coisa é muito diferente, é como se a víssemos pela primeira vez.
A ideia de fim está omnipresente: aquilo que acabou. Foi essa a razão que a levou a O País das Maravilhas, filmar o que desapareceu?
Sim. O que tem desde logo a ver com o lugar em que nasci e cresci e talvez com a Itália em geral.
Vivemos num país em que lidamos sempre com maravilhas, a estrada e o templo romanos estão junto à construção fascista e juntos à casa dos camponeses. Tudo está misturado. Há uma conclusão que mesmo que não seja filosófica é instintiva: a de que as coisas acabam.
Para além disso, a região onde filmei é uma região vulcânica. Quando se caminha pela estrada, a terra é feita de cores, como se fossem várias estradas, trilhos, castanho, negro, vermelho... sinais dos vários estratos do tempo, sinais das várias erupções do vulcão. É muito claro, embora seja um processo físico e não mental, que aquilo por que se caminha é apenas mais um último nível de qualquer coisa, não é a totalidade. E assim também tentámos meter vários estratos no filme, vários períodos de tempo, mas de forma muito linear.
Fala-se três línguas no filme: francês, alemão e italiano. As línguas são aqui uma forma de exclusão dos outros, dão possibilidades aos segredos. O casal fala em francês entre si – a sequência em que a filha entra no quarto dos pais... O alemão reenvia para um passado, para algo que aconteceu e não sabemos exactamente o quê. Sem forçar a autobiografia: tinha consciência na sua família de que uma língua pode ser uma forma de exclusão?
Na minha experiência, a língua do passado dos meus pais era o alemão: quando eles falavam um com o outro, nós não percebíamos. Uma língua é uma geografia mas também é a história de uma pessoa. Imaginei que podia contar uma história secreta. Quando os pais do filme se conheceram, que língua falavam, visto que ele não falava italiano e ela não falava alemão? Talvez tivessem estudado francês, que ficou como língua ligada à sua história íntima. Ou seja, através da língua criar lugares dentro desta família.
Sobre os segredos: no seu trabalho com os actores, o passado desta família, que não é claro para o espectador, fazia parte da biografia das personagens e os actores podiam conhecê-lo?
Eles sabiam-no. Contei-lhes o que eu achava: que os pais se tinham encontrado, que tiveram experiência de vida comunitária, uma experiência política que correu mal, tiveram as crianças e resolveram ir viver para o campo.
Mas devo dizer que as crianças não quiseram saber nada desta história – aliás não quiseram saber do que falava o filme [risos]. Dei o argumento a todos, mas alguns acharam mais divertido não saber.
A personagem da menina chama-se Gelsomina. Enquanto via o filme, pensava que estabelecer uma referência a Fellini, por causa de La Strada, era demasiado óbvio, que talvez fosse uma falsa pista...
... eu achei que o casal, que vemos sempre a trabalhar no campo, tinha visto muitos filmes na juventude e que isso se reflectiu quando se tratou de dar nome aos filhos: “Gelsomina” foi o resultado disso, assim como Marinella [nome de outra das filhas], que é o título de uma canção italiana muito importante [La Canzonne di Marinella]... A mãe pensou em filmes e em músicas...
... continuando sobre Fellini: pensei que se entrevistasse a realizadora nunca lhe perguntaria se através do Gelsomina se poderia chegar à presença de Fellini no filme. Mas mesmo contornando Gelsomina, não se pode evitar Fellini quando, mais tarde no filme, aparece a personagem interpretada por Monica Bellucci, aquela fada televisiva, e toda a possibilidade de maravilhoso e logro que são fellinianos - há um tom apocalíptico, que nos últimos Fellini é evidente...
... a emissão televisiva, no filme, é feita a partir de uma necrópole e é com enorme satisfação que alguém diz: “Encontramo-nos para a transmissão dentro da tumba”...
Esse caminho que Fellini fez em direcção à forma como os sonhos foram encerrados numa caixa de logro, a televisão, é aqui um caminho coincidente ou assume-se como felliniana?
Por um lado, devo dizer que amo muito de Fellini. Mas sou italiana: tal como nos podemos reconhecer em todos os símbolos católicos mesmo não sendo católicos, porque crescemos com eles, no meu país, mesmo se não tivesse visto filmes de Fellini, ele estaria dentro de mim. Fellini tornou-se uma parte do nosso inconsciente. Foi um realizador que trabalhou mais sobre a imagem do que sobre a história: não nos lembramos das suas histórias, mas das suas imagens nunca nos esquecemos. Lembramo-nos sempre de um sonho pela imagem e não pela palavra. Em termos de imagem não podemos deixar de ser fellinianos. Mas isso não foi algo que procurei – respeito-o tanto que nunca poderia citá-lo –, foi algo que encontrei. Encontrei-o na Monica Bellucci, e na raiz circense que está no filme.
A presença de Monica Bellucci é importante: é uma figura que, pelo corpo, pela aura de estrela, podia desequilibrar o filme mas você dirige-a como Fellini diria alguns corpos femininos - Claudia Cardinale no Oito e Meio, por exemplo -, fazendo ausentar deles o peso. Essas figuras passavam pelos filme, sem que os filmes se verguassem.
Monica era a única que podia fazer esta personagem. Porque é a única que é reconhecida quer pelo menino quer pela senhora de 90 anos. É alguém que se manteve intacta. É grande o seu mistério. Nunca se deixou apanhar.