O elogio do silêncio no festival das palavras

Após ouvir, na abertura do 17.º Correntes d'Escritas, a densa intervenção de José Tolentino Mendonça sobre as patologias do nosso tempo, o público pôde desopilar com uma espécie de Governo Sombra.

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Fernando Veludo/NFactos
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O primeiro dia do festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, abriu esta quarta-feira com uma inesperada apologia do silêncio, assumida em plena feira das palavras pelo poeta e sacerdote José Tolentino Mendonça, e terminou com uma divertida sessão protagonizada pelo elenco do programa Governo Sombra, na qual João Miguel Tavares trocou de lugar com Carlos Vaz Marques e cumpriu com galhardia o papel de moderador.

Entre uma e outra sessão, uma mesa-redonda discutiu a literatura e a catarse. O escritor brasileiro António Torres contou como a escrita do seu romance Essa Terra (1976), lançado em edição portuguesa (da Teodolito) no Correntes d’Escritas, o levou ao divã do psicanalista — “o protagonista era um suicida, e eu estava escrevendo na primeira pessoa e comecei a sentir-me incomodado” —, e a romancista Hélia Correia retomou o tópico da psicanálise, mas para se indignar com a abusiva utilização do mito edipiano e do texto de Sófocles na designação do complexo proposto por Freud. O Édipo grego, assegura a autora, nunca quis matar o pai, e muito menos o fez por qualquer desejo inconsciente de desposar a mãe.

Na mesma sessão, Manuel Alegre fez ver que não estamos “numa ditadura política, nem sob ocupação militar”, mas sofremos “uma invasão da nossa vida por forças misteriosas, a que chamam mercados, que mandam nos nossos países, degradam a nossa cultura e a nossa civilização, para roubarem as reformas aos velhos e o futuro à juventude”. Na fase reservada às perguntas, uma senhora quis saber como se sentia “um homem tão íntegro” na actual conjuntura política, e o autor teve de lhe lembrar que estava ali “para falar de poesia”.

Uma das grandes vantagens do Correntes d’Escritas, um veterano dos certames literários portugueses, é ser suficientemente ecléctico para raramente se tornar monótono. É verdade que de literatura propriamente dita se fala em doses prudentes, mas o festival não pretende ser um colóquio, e os que fizerem muita questão de ouvir falar de livros, ou mesmo de os adquirir, têm as sessões de lançamento, e ainda uma pequena feira do livro montada numa tenda à porta do Cine-Teatro Garrett.

E se umas e outra não atraem propriamente multidões, já algumas das sessões no Garrett estão mesmo a abarrotar, e não apenas as que se aproximam mais obviamente do espectáculo de entretenimento, como a oferecida esta quarta-feira à noite pelo quarteto do Governo Sombra.
Também a conferência inaugural de Tolentino Mendonça, que foi tudo menos ligeirinha, encheu a renovada sala do teatro poveiro. O autor foi à Póvoa prescrever o silêncio como um possível remédio para as patologias do tempo que vivemos, dominado pelo “sol negro da depressão, os transtornos da personalidade, as anomalias da atenção”, e ainda a “síndrome do desgaste ocupacional”, que nos faz “sentir exauridos por dentro, à maneira de uma terra queimada”.

A sua palestra interessou o bastante a audiência para ter motivado uma infindável série de perguntas, e foi já quando respondia a uma delas que fez o favor de dar aos jornalistas um título óbvio, confessando que acalentava o sonho de “ver o silêncio declarado património imaterial da humanidade”.

Catarse
O tópico da sessão seguinte gerou alguma perplexidade nos oradores. António Torres diz que quando soube que iria ter de falar sobre literatura e catarse lhe veio à ideia uma peça do autor brasileiro Plínio Marcos: A longa jornada de um imbecil em busca do entendimento. Manuel Alegre confessou que, tendo uma ideia do que a palavra significa, achou ainda assim melhor ao dicionário, e só Hélia Correia viu uma oportunidade no que aos outros parecia um escolho: “Quando vi a palavra ‘catarse’, decidi logo que ia não apenas puxar a brasa, mas o fogareiro todo à minha sardinha, e falar da Grécia”.

A performance de Vaz Marques, Mexia, Tavares e Araújo Pereira, que fechou o dia, não foi menos interessante nem menos hilariante do que a generalidade das emissões do Governo Sombra. A principal diferença em relação ao formato televisivo, para lá de falarem deles e não de terceiros, foi mesmo a troca entre Carlos Vaz Marques e João Miguel Tavares, que aliás se revelou um moderador acutilante.

Contando que, na intimidade, Vaz Marques é alguém “cheio de opiniões, e muitas vezes violentíssimas”, e que no entanto, na sua vida profissional, quis sempre ser um moderador, disparou: “Por que é que nunca quiseste assumir com frontalidade uma voz própria?”.

De Pedro Mexia, lembrou as “opiniões políticas muito vistosas” que, nos primórdios da blogosfera, este expendia no blogue Coluna Infame, e lamentou que tivesse “perdido essa postura” e hoje só escrevesse, nos jornais, “sobre temas respeitáveis”. A pergunta foi concisa: “Pedro, o que é que te aconteceu?”.

A Ricardo Araújo Pereira, fez ver que, enquanto humorista, o tema proposto para a sessão — Não me interpretem mal — lhe dava vantagem sobre os seus parceiros de executivo, já que, afirmou, “um humorista é uma espécie de taxista ébrio, alguém a quem a linguagem diz que quer ir para o sítio do costume, e que pega na linguagem e a leva para lugares inesperados”. Embora estivesse num festival literário, não lhe terá ocorrido que acabara de propor uma excelente definição daquilo que se deve esperar de um escritor.

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