O direito do Jacarezinho

Uma versão da tese de doutoramento na Universidade de Yale sobre o direito no Jacarezinho, uma favela do Rio de Janeiro

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É necessário reconhecer a coragem de publicar uma investigação feita há quatro décadas — propósito provocatório evidente ENRIC VIVES-RUBIO

Em boa hora, Boaventura de Sousa Santos decidiu publicar, pela primeira vez em português, uma versão da sua tese de doutoramento na Universidade de Yale. Trata-se de um estudo do direito no Jacarezinho, uma favela do Rio de Janeiro, conhecida pelo nome fictício de Pasárgada, que foi publicado na íntegra em inglês, no México, em 1974. Três anos depois, numa importante revista anglo-saxónica de sociologia do direito, saiu um longo artigo, também em inglês, com os principais resultados da tese. E, numa revista de direito da Universidade de Coimbra, em 1980, foi publicada a versão portuguesa do quadro teórico da mesma tese.

O livro é composto por três capítulos. No primeiro, o autor reedita o referido quadro teórico, baseado no artigo de 1980. O segundo capítulo é composto pela edição em tradução portuguesa do longo artigo de 1977. Seguindo um procedimento pouco comum, o autor justapõe-lhe, em espelho, um capítulo de comentários, o terceiro, onde desenvolve considerações de natureza mais pessoal e reflexiva sobre a própria pesquisa, começadas a publicar numa obra colectiva em inglês, em 1981. O livro é, ainda, enriquecido por uma longa entrevista ao seu principal informador, Irineu Guimarães, líder do movimento das favelas, com o qual o autor se reencontrou em 2005, e por um novo espelho de reflexões críticas, envolvendo outros membros da comunidade estudada. Enfim, termina com um apêndice fotográfico acerca da comunidade, incluindo a presença do autor na altura da investigação e no seu retorno à comunidade.

É um livro de tese, com um argumento central, desenvolvido no interior de um quadro teórico de inspiração marxista. Donde o sentido inicial da descoberta de um direito próprio da favela, autónomo, entendido como “ordenamento social mínimo das relações comunitárias”, que corresponde a uma posição revolucionária, capaz de permitir aos que estão por baixo de se rebelar em relação aos do alto, representantes do Estado. Em segundo lugar, esse mesmo direito alternativo aponta para um modo particular de pluralismo jurídico. O Estado racionalizador e disciplinador — por mais que tivesse tentado chamar a si o monopólio da violência legítima ou da legalidade — não aboliu um tal pluralismo. Assim, o sistema próprio de regulação legal da favela caracteriza-se por ser mais retórico e menos institucionalizado, em comparação com o Estado propriamente dito. Sobretudo, neste último caso, é de notar a força com que se estabeleceram os aparatos policiais e disciplinadores, em claro contraste com a ausência de instrumentos de coerção nos lugares de baixo, da favela.

Em terceiro lugar, segundo o autor, numa breve passagem que não é suficientemente desenvolvida, as pesquisas que tiveram lugar em situação colonial foram as que mais profundamente revelaram o pluralismo dos regimes de direito. Competiu, por isso, à antropologia do direito revelar “a coexistência, num mesmo espaço, arbitrariamente unificado como colónia, do direito do Estado colonizador e dos direitos tradicionais”. Por último, a intervenção do sujeito, mais propriamente na sua dimensão autobiográfica, a começar pela do próprio autor, contribuiu para criar e aumentar o grau de consciência crítica — de reflexividade e de denúncia das “muitas autoridades e muitas igrejas que pairam sobre nós”, como sucedia na época de Santa Teresa — em relação à pesquisa, sobretudo no que respeita à utilização de recursos retóricos e discursivos.

Antes de iniciar esta pesquisa, Boaventura de Sousa Santos já sentira a necessidade de ir procurar explicações para a dogmática jurídica fora do direito, por exemplo, à psiquiatria e à psicologia. A “hostilidade militante do regime fascista português ao desenvolvimento das ciências sociais”, “onde as ciências sociais haviam sido banidas”, impedira-o mesmo de conceber a sociologia como uma alternativa. As escolas de direito alemãs também se opunham às abordagens mais sociológicas.

Por isso, foram as condições criadas em Yale que levaram o autor a seguir os rumos de uma sociologia crítica do direito, baseada nos usos sociais de sistemas normativos por parte de grupos concretos. Três meses de presença na favela carioca, num primeiro ano, mais um retorno no ano seguinte, para um curto período de entrevistas — tendo depois o autor visto vedada a sua entrada na favela por razões de perseguição política impostas pela ditadura militar sobre a favela —, chegaram ao autor para perceber o modo como se processava a resolução interna de litígios numa favela caracterizada por uma intensa vida associativa. Assim, a Associação de Moradores do Jacarezinho constituiu-se no objecto privilegiado para observar os mecanismos de resolução de litígios, analisados a partir de 35 situações. Por sua vez, o líder da mesma associação parece ter actuado como uma espécie de gate keeper da comunidade. Tratava-se de um sistema jurídico autónomo, mas é claro “subalterno, criado pelas classes populares para resistirem ou se adaptarem à dominação de classe (o direito e Pasárgada), e um sistema jurídico dominante criado pelas classes dominantes para assegurar a reprodução dos seus interesses”.

Uma vez estabelecidas as divisões entre os dois sistemas, os resultados mais importantes da análise podem e devem ser avaliados em função das diferentes formas de influência e de contaminação. Por exemplo, em relação ao formalismo é de notar que “as formas utilizadas pelo sistema popular são frequentemente derivadas do sistema oficial”. Assim, a flexibilidade que caracteriza o direito de Pasárgada inclui a importação de fórmulas “importadas da linguagem técnica oficial”.

Tais contaminações e influências dão lugar no final do livro — em contraste com o que sucede no capítulo inicial, onde mais claramente se anuncia uma autonomia de esferas de normatividade legal e uma divisão entre o alto e o baixo — à ideia de que “Pasárgada é, em termos sócio-jurídicos, uma constelação de direitos que varia de composição, de caso para caso segundo uma multiplicidade de factores”. Tal como a figura do bricoleur de Lévi-Strauss, os seus “moradores recorrem a vários direitos e a várias constelações de direitos”. Vivendo numa permanente “situação de interlegalidade”, “são refractários à lealdade exclusiva a uma dada normatividade”. E usam tanto “o direito de Pasárgada e/ou o direito oficial consoante as conveniências ou as disponibilidades”. Neste “encadeamento de legalidades”, “entidades compósitas, de contornos indefinidos ou porosos”, “a interlegalidade e a hibridização são duas faces da mesma constelação jurídica”.

Por sua vez, se o direito não oficial se constitui numa das poucas formas de resistência ao direito oficial, uma entidade como a Associação dos Moradores concorre com outras instâncias de resolução, “actuando em rede”. Não existem, por isso, bases para uma excessiva idealização dos modos de resistência da vida comunitária. Pelo contrário, Boaventura chega mesmo a considerar que, no caso da Associação dos Moradores, a defesa dos estratos mais baixos da população, que vive em situação extremamente precária, é feita de modo paternalista.

Conforme recorda o autor no capítulo terceiro, ao espelho, se a questão de partida estava em procurar “integrar uma ampla teoria marxista com as teorias da resolução dos conflitos”, a resposta estava em conceber uma situação de pluralismo jurídico, onde se assistia a uma “troca desigual entre um sistema jurídico dominante (oficial) e um sistema jurídico dominado (não oficial), a qual reproduzia, de modo específico, as relações e os conflitos de classes na sociedade brasileira”. O direito de Pasárgada reproduzia, então, a luta de classes. Mais difícil era conseguir “teorizar o impacto deste pluralismo jurídico sobre o funcionamento da retórica jurídica do direito de Pasárgada”.

Quais as principais observações e críticas que suscita uma pesquisa desta natureza, conduzida nos anos de 1970? Antes de mais, será necessário reconhecer a coragem do autor em publicar uma investigação feita há mais de quatro décadas, com propósitos provocatórios mais do que evidentes — destinados a provocar a ruptura, por via do recurso à sociologia e aos quadros teóricos do marxismo —, no interior de um dos centros principais do ensino e da pesquisa em direito da Universidade de Yale. Claro que será, hoje, fácil reconhecer que só transgridem aqueles que são detentores do capital de distinção; apesar de, em Portugal, a maioria das pessoas com capital de distinção se portar como uma espécie de meninos do coro. Mas, no caso de Boaventura, a transgressão — que se consubstanciou no interesse em constituir num objecto legítimo do estudo do direito a resolução dos litígios numa favela — incluía uma outra provocação, que envolvia o ensino e a investigação sobre direito da Universidade de Coimbra, onde ele próprio tinha adquirido as suas bases e para onde iria voltar.

Depois, há que reconhecer que, apesar do seu salutar carácter provocatório, a pesquisa, tal como foi conduzida, envelheceu mal. O estudo de 35 litígios feito em cerca de três meses, aos quais se sucedeu uma vontade frustrada de lá voltar, bloqueada pelas consequências políticas da acção da ditadura, dificilmente pode convencer os adeptos da observação etnográfica e do trabalho de campo em que o livro se inspira. Max Gluckman viveu pelo menos dois anos e meio na então Rodésia, para escrever The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia (1955). Enquanto a fascinante figura do líder da Associação dos Moradores mais parece exemplificar a do gate keeper, tal como foi criticado por Clifford Geertz. Há, ainda, a registar que, apesar de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Caio Prado serem referidos de passagem no terceiro capítulo, o livro revela desconhecimento das investigações brasileiras, de carácter sociológico e antropológico (a começar pelas que foram promovidas por Gilberto Velho) acerca das favelas. É que o interesse pelas epistemologias do Sul só foi estabelecido como um programa muito depois...

Claro que tais observações de sentido crítico correm o risco de aplicar critérios de investigação que estavam longe de ser os visados pelo autor no quadro em que teve a oportunidade de trabalhar, que eram os de uma Law School. Mas deixar de apontar as debilidades de um livro escrito há quase meio século equivale a um exercício de condescendência em relação a uma obra de juventude. De qualquer modo, assumo que tais críticas metodológicas são mais formais do que substanciais, podendo sempre questionar-se, frente a uma tese que se assumiu como uma tentativa de fazer corresponder a análise de uma favela a um quadro teórico de inspiração marxista: como é que uma estadia de dois anos na favela melhoraria a tese? De que modo um maior conhecimento da bibliografia brasileira também melhoraria a tese?

Porventura mais legítimo será considerar que o terceiro capítulo, onde a reflexão sobre o direito na favela dá lugar a uma série de fragmentos, expostos sem qualquer tipo de ordem, de ambição reflexiva e nalguns casos intimista, pouco ou nada contribui para compreender melhor o sentido de uma investigação de juventude. Em lugar de ser contemplado com uma explicação acerca do que é que mudou na favela — se o pluralismo jurídico continuou ou se foi suprimido à luz dos processos mais vastos de integração dos favelados nos mercados capitalistas do trabalho e do consumo, se a resistência baseada num sistema próprio de direito redundou no conformismo e não abriu portas à revolta —, o leitor é interpelado pelo ego do autor, dado em espectáculo de uma forma atrabiliária. No fundo, um exercício de antropologia reflexiva que faz lembrar o pós-modernismo de Writing Culture: The Poetic and Politics of Ethnography (1986) de James Clifford e George Marcus.

Deverá um tal capítulo ser lido como resultado da evolução de um sociólogo marxista — que ainda fazia trabalho empírico, mesmo reduzido a três meses — para o sociólogo pós-moderno, inventor de conceitos? Ou, num sentido inverso, não será este livro sobretudo uma tentativa de recuperação de uma agenda marxista — num momento de crise económica — sem contudo renegar a epistemologia pós-moderna do fragmento?

Boaventura de Sousa Santos é, sem dúvida, o cientista social português de maior projecção internacional. Em Coimbra, criou escola. A sua obra, incluindo a sua defesa das “epistemologias do Sul”, que se transformou na sua principal bandeira, merece ser tratada com o maior respeito. Porém, depois da leitura deste primeiro volume da sua nova Sociologia crítica do direito, é inegável o apelo suscitado por essa outra grande figura de patron universitaire que foi Fernand Braudel. Ao escrever sobre a história do Mediterrâneo no tempo de Filipe II, durante a Segunda Guerra, Braudel procurou compreender a sociedade nas suas bases estruturais, nos seus grandes movimentos e forças de carácter colectivo e serial, e acabou por relativizar a importância dos indivíduos, das suas vontades e dos próprios acontecimentos políticos. Preso durante anos numa prisão alemã enquanto escrevia, a sua teorização — onde também ecoam leituras de Marx — contrariava as circunstâncias em que vivia, a bem de um exercício que considerava mais pertinente e científico. Frente a este exemplo de abnegação, será que o peso do sujeito em obras de carácter analítico, de inspiração marxista ou não, poderá ser considerado um avanço para o conhecimento do objecto em causa? Creio que não. Pelo contrário, o peso do sujeito — sobretudo quando assume a forma de uma narrativa biográfica ou autobiográfica contada sem qualquer tipo de método — constitui-se, isso sim, num obstáculo para a melhor compreensão e explicação dos laboratórios sociais escolhidos como objecto de análise. 

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