O cante alentejano foi de autocarro até Paris
Tudo isto — os leitões, o presunto, mil e oitocentos quilómetros de estrada, 26 horas num autocarro — para cantar durante dois minutos e 55 segundos?
Em 1965, antes de partir rumo ao País de Gales, para participar no Festival Internacional de Llangollen, os então membros deste grupo desfilaram trajados pela vila de Serpa, aclamados como heróis pela população local que saiu à rua ou acenava das varandas. Quarenta e nove anos depois, viram-se alguns braços no ar e uma criança de colo na hora da despedida, mas nada parecido com um banho de multidão.
E, no entanto, estes 21 homens de diferentes idades e profissões (incluindo um gestor no Banco de Portugal e um tractorista), sentiam que estavam a partir para uma missão e não conseguiam disfarçar o seu orgulho.
“Acho que isto é fazer história”, disse-nos João Martins, topógrafo, 38 anos, cantor no grupo há 20. “Um dia os meus filhos vão dizer: ‘O meu pai estava lá, em Paris.’”
Um comité intergovernamental da UNESCO reúne-se esta semana em Paris para deliberar sobre as 46 candidaturas à lista representativa do património cultural imaterial da humanidade, entre as quais se conta o cante alentejano. A decisão deverá ser anunciada quarta-feira à tarde ou quinta-feira de manhã e, se tudo correr bem, na sede da UNESCO ouvir-se-á cante. O Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa irá cantar Alentejo, Alentejo, um tema que se ouve no documentário de Sérgio Tréfaut com o mesmo nome, exibido este Verão nos cinemas. O tempo de actuação está limitado a dois minutos e 55 segundos. Tudo isto – os leitões, o presunto, mil e oitocentos quilómetros de estrada, 26 horas de constrangimento espacial – para cantar durante dois minutos e 55 segundos?
“Não. Tudo isto pelo reconhecimento. Até podíamos nem cantar”, diz o presidente comunista da Câmara de Serpa, Tomé Pires, um engenheiro civil de 38 anos.
A delegação a bordo do autocarro cedido pela autarquia está confiante numa decisão favorável. No final de Outubro, quando a proposta do cante alentejano teve uma pré-avaliação positiva por parte de um comité de peritos da UNESCO, isso encorajou a Câmara Municipal de Serpa e a Entidade Regional de Turismo/ Agência de Promoção do Alentejo, entidades promotoras da candidatura, a levarem uma comitiva mais alargada para Paris – mais especificamente, um grupo coral.
Mas, havendo actualmente mais de 150 grupos de cante alentejano, como escolher? Dois critérios foram decisivos: teria de ser um dos grupos de formação mais antiga e do concelho de Serpa, uma vez que a autarquia local é promotora da candidatura.
O Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa foi fundado em 1928 e, diz Carlos Paraíba, ensaiador, “é o único que tem mantido continuidade desde a sua formação”. (Muitos grupos sofreram interregnos devido à Guerra Colonial e à emigração, explica.)
“É uma grande honra sermos nós a ir receber o prémio, né?”, diz Artur Estevão, engenheiro agrónomo, 27 anos. “É uma grande responsabilidade que puseram no nosso grupo. Apesar de isto ser um passeio, temos de dar 200 por cento.”
A escolha do grupo foi polémica? “É sempre”, diz o autarca de Serpa, sentado na primeira fila do autocarro. “Nas redes sociais é que se fala disso”, comenta o topógrafo João Martins, rindo-se.
“Se só houvesse um grupo, não havia polémica”, resume Tomé Pires. “Bastava haver dois grupos para haver polémica. Havendo mais de 150...” E, olhando para o caderno de notas da repórter, acrescenta: “Não sei se devia escrever isso porque é um momento de união, não de desunião.”
A prova, nota, é que quando há mais de uma semana se reuniu com representantes de outros grupos corais do concelho de Serpa para lhes propor que participassem numa festa na Casa de Cante no dia da decisão, eles aceitaram e fazem questão de vir trajados.
E se a candidatura não for aprovada? “Devemos fazer na mesma uma festa. Porque desde que este processo se iniciou que o cante só ganhou com isso”, diz o autarca. “Apareceram grupos juvenis por todo o Alentejo. Grupos corais que já existiam começaram a ter uma actividade mais regular. E o cante nunca foi tão falado como hoje. Vamos festejar ter chegado até aí. A única coisa que não vamos fazer [caso não seja aprovado] é: temos meia dúzia de foguetes e se calhar não vamos estoirar nenhum.”
“O cantar não tem ciência"
A primeira paragem ocorre pouco depois da saída de Serpa, a 22 quilómetros, para abastecer o autocarro com dez caixas de vinho tinto Amnésia, cada uma com seis garrafas, produzido pela herdade onde Artur Estevão trabalha como engenheiro agrónomo. Uma coisa que João Martins diz, logo no começo da marcha, e que quase uma dezena de paragens irão confirmar: “A alimentação, para um alentejano, é o principal.”
Não é a primeira vez que o grupo viaja de autocarro para cantar no estrangeiro. Antes houve Marrocos, Suíça, a Expo de Hanôver, na Alemanha. Trazerem um farnel colectivo quando viajam e montarem mesa farta à beira de uma auto-estrada tornou-se uma tradição. “Isto começou por brincadeira. Quando viajávamos e parávamos nas áreas de serviço não se comia nada de jeito e pagava-se muito”, conta João Martins.
“Agora chegamos à área de serviço e montamos o nosso próprio restaurante”, diz, rindo-se.
O que se verá no dia seguinte ao meio-dia, em Lesperon, França, 130 quilómetros a sul de Bordéus. Três mesas brancas desdobráveis são abertas em fila num parque de estacionamento de uma área de serviço onde vários camiões portugueses estão estacionados. Os leitões assados despontam de duas caixas de esferovite. O presunto é trinchado. O pão é cortado a canivete de bolso. Joaquim Galado, tractorista, oferece rábano e cachola frita. O que é cachola? “Fígado de borrego. Não é tão enjoativo como porco.”
Toda a gente, seis jornalistas incluídos, come de pé, em volta da mesa. A presidente da Casa do Alentejo, Marina Pascoal, comenta: “Amanhã, nos jardins da Torre Eiffel, montamos um piquenique assim.”
Paris pode ser uma festa, mas para os homens do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa também implicou negociar uma semana fora do trabalho. “Há saídas do grupo em que nos prejudicamos a nível económico”, diz João Martins, notando que por vezes os dias fora custam uma parte do salário. (Não desta vez, no seu caso.)
Artur Estevão, o engenheiro agrónomo, ainda trabalhou no domingo de manhã, dia da partida para Paris. “É complicado, ainda mais nesta altura. Sou responsável pelo lagar e estamos em plena campanha do azeite. Nesta altura trabalhamos todos os dias da semana, 24 horas por dia.” Na véspera, saíra da herdade às onze da noite, faltando ao ensaio do grupo. “Mas a esta viagem não podia faltar. Fiz um choradinho ao patrão. Ele disse-me: ‘Reza para que chova muito, para haver pouca azeitona.’”
Vão cantar durante a viagem? Joaquim Galado, 56 anos, olha para a repórter com espanto, como se quisesse certificar-se de que a pergunta era a sério. “Com certeza.” E, de facto, o grupo canta – à meia-noite em Caia, iluminados pelos faróis do autocarro, para uma emissão da TSF em directo; na manhã seguinte, frente ao café de uma área de serviço no País Basco, para a RDP e Rádio Voz da Planície; no autocarro, para toda a gente.
Joaquim Galado, boné de fazenda dobrado no banco da frente, cita a quadra de uma cantiga.
“O cantar não tem ciência /
Saber cantar é que tem /
Há muito quem muito cante /
Mas pouco quem cante bem.”
Ele espera uma reacção. “Ponha lá a sua cabecinha a trabalhar e veja se não é verdadeiro.”
“Quando existiam os trabalhos do campo, ia-se para a apanha do grão, para a ceifa do trigo, de madrugada, a pé, e eram os dias inteiros cantando”, diz Joaquim. “Passando mal, ganhando ordenados de miséria. Mas cantando. Agora já não há tanto trabalho no campo.”
Salvo Joaquim, que continua cantando no seu tractor.
“Oh, tantas vezes.”
Consegue cantar por cima do ruído do tractor?
“Parece mentira. A gente vai atrás do barulho do motor e subimos o tom de voz que nem nos apercebemos. Você pode estar a um quilómetro e estar a ouvir. A sério. Só se o vento estiver contrário.”
E, agora, Joaquim terá Paris. A Torre Eiffel, iluminada, amarela, é avistada do autocarro às 23h35 de segunda-feira.
“Então isto é que é Paris?”
“Parece uma chaminé.”
Ninguém cantou.