O BESPhoto tem 10 anos e vai ser o que tem sido

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O longo e labiríntico processo burocrático pelo qual o artista angolano passou até obter a nacionalidade portuguesa foi uma das inspirações da série Ausência Permanente, que remete também para os vestígios do passado e da influência deles no presente. Délio Jasse

Já não há grandes dúvidas, mas quem ainda as tenha só precisa de olhar para o enfiamento das três salas que abrigam as exposições do BESPhoto 2014 no Museu Berardo, em Lisboa, para ter a certeza de que é muito mais do que fotografia o que aqui se mostra. O que vemos a partir da porta de entrada é a exploração dos limites plásticos e cénicos das práticas fotográficas que, passo a passo, vão esboroando aqueles que foram durante décadas os seus formatos criativos tradicionais. As propostas de José Pedro Cortes, Délio Jasse e Letícia Ramos (os três nomeados de uma edição que comemora um número redondo, dez anos) não defraudam a imagem de marca de um prémio que escolheu, para além do nome, o suporte, a linguagem e a prática fotográficas como ponto de partida. E que, ao longo destes últimos dez anos, tem procurado mostrar como são infinitas as possibilidades da fotografia e como com ela se podem percorrer múltiplos caminhos, vias alternativas, todo o tipo de paragens e apeadeiros desse imenso caldeirão onde fervem as artes plásticas. 

O anfitrião do Museu Berardo, Pedro Lapa, chamou exactamente pela riqueza dessa diversidade quando, na inauguração das exposições, chegou o momento de fazer o elogio do percurso até aqui traçado. Pouco depois, em conversa com o Ípsilon, lembraria um dos principais propósitos do BESPhoto, que ao longo do tempo tem sido alvo de críticas justamente por se “desviar” das propostas fotográficas mais clássicas. “O que encontramos neste prémio são trabalhos sobre as possibilidades e as tecnologias da imagem. E a relação que essas tecnologias têm ora com a própria história da arte, ora com os seus protagonistas, como a memória, o arquivo, o documento, as convenções ou as subversões das convenções. Esta diversidade é constitutiva do que são hoje as práticas fotográficas. Já não podemos pensar na fotografia como um papel onde é impressa — se calhar de forma analógica — uma imagem. Esse mundo teve o seu tempo.” 

Num país onde escasseiam as distinções capazes de potenciar trabalhos que tenham a fotografia como base criativa na sua prática conceptualmente mais ampla (excepção talvez para os Encontros da Imagem de Braga), Pedro Lapa destaca ainda a persistência com que o principal mecenas do BESPhoto, um banco, tem encarado o prémio e tentado encontrar formas de garantir a sua continuidade e expansão. Em 2010, a abertura a países de língua oficial portuguesa foi uma delas. “Um prémio que chega aos dez anos merece que se sublinhe a sua perseverança. É de louvar, porque em Portugal este tipo de iniciativas tende sempre a desfalecer ao fim de um certo tempo. Esta, não. Tem continuado. E não só tem continuado como tem expandido o seu programa.”

O som vai estar alto

Um sinal de como esta teia de relacionamento e de prestígio além-Atlântico vai dando os seus frutos é a maneira como a brasileira Letícia Ramos (S. Antônio da Patrulha, 1976) vê a sua presença no prémio. Num momento em que afirma estar a abandonar as câmaras fotográficas (umas construídas por si, outras oferecidas, outras compradas…), Letícia afirma-se “surpreendida” pela nomeação e elogia a forma “corajosa” como o prémio tem apresentado “um tipo de fotografia que não é convencional”. “A fotografia é um dos suportes do meu trabalho, que é sobre a natureza da imagem, mas eu não sou fotógrafa — sou uma artista que trabalha com fotografia. Fico feliz com este tipo de escolha, porque revela o que o prémio tem sido e o que vai ser.”

Como que a lembrar permanentemente que nem só de fotografia trata o BESPhoto, o som da curta-metragem Vostok, de Letícia Ramos, a última obra do percurso expositivo, é uma constante em todas as salas da mostra. “O som vai estar alto, mas combina com o que vou falar”, avisou Letícia no início da apresentação do seu projecto expositivo a que chamou Nós sempre Teremos Marte. A música orquestral cinematográfica, de mistério denso, intercalada por barulhos aquáticos e comunicações de walkie-talkie, recria uma expedição científica às paisagens e às águas geladas de um lago pré-histórico da Antárctida, à boa maneira de Júlio Verne ou Jacques Cousteau. Ao longo dos oito minutos de filme, em ambiente de sala de cinema, somos confrontados com a dúvida sobre o que há de verdade e de documento no que estamos a ver. A intenção de Letícia é essa: confundir. Viciada em noticiários de ciência, a artista gaúcha gosta de questionar o estatuto das imagens produzidas pela comunidade científica, muitas vezes encaradas como matrizes, como documentos originais inquestionáveis. Para ela, essas imagens revelam ao mesmo tempo uma enorme abstracção, “uma poética” que lhe interessa explorar, não para descobrirmos alguma coisa mas sobretudo para aceitarmos a experiência do “desconhecido” e do dúbio. E para aprendermos a questionar o que se apresenta como absoluto. 

“A minha produção sempre esteve relacionada com esse lado mais romântico das invenções e das descobertas. A ideia da exposição é trabalhar com o imaginário da fotografia da ciência e tentar desconstruí-lo”, explica Letícia, que vê nesta exposição uma mudança de rumo no seu método de criação. Até aqui era ela que fazia ou que procurava as câmaras que melhor se ajustavam às imagens que queria mostrar. Agora parte da construção conceptual das imagens e só depois pensa com que formato ou tecnologia as apresentará. O microfilme foi um dos suportes que mais explorou, talvez por causa do poder que ainda representa no Brasil, onde está presente em muitas instituições e arquivos e é classificado como “documento original”. É o tipo de convenção que se põe a jeito para o escrutínio criativo da artista. “Esta noção de original é muito estranha, porque com o excesso de uso o microfilme abstrai a imagem, o que significa que se vai construindo outra imagem.” 

O estudo dos suportes e dos dispositivos em que são depositadas as imagens é uma das questões centrais na obra de Letícia Ramos, que cultiva ainda um gosto particular pela subversão dos formatos fotográficos, como quando apresenta fotografias de fotografias polaróide sem que a estética associada a esta se sobreponha ao conteúdo (elementos já de si pouco óbvios de detectar, como espectros, fantasmas, clarões, tudo coisas “sobrenaturais”). O culto da imagem das “auras inesperadas”, dos acidentes e das manipulações fantasmagóricas será, aliás, o próximo corpo de trabalho de Letícia, que gosta de “enganchar” umas coisas nas outras. Mas isso já será outra exposição. 



Nas fronteiras ?da memória

Quem também gosta de “enganchar” umas imagens nas outras é o angolano Délio Jasse (Luanda, 1980), que apresenta o projecto expositivo mais espectacular entre os três nomeados. Numa sala situada entre as fotografias de hiper-realismo quotidiano de José Pedro Cortes e das ficções científicas de Letícia Ramos, Jasse propõe feixes de luz coloridos sobre tinas de água onde bóiam grandes impressões. Estes “documentos fotográficos”, como os classifica, revelam uma síntese perfeita entre a sua principal formação técnica — a serigrafia —, as referências que norteiam as suas propostas criativas — a memória, o arquivo —, e a sua experiência pessoal, patente na imagética gráfica de carimbos e números que povoou o longo processo burocrático até à obtenção da nacionalidade portuguesa. 

A manobra criativa de Délio Jasse é herdeira de uma forte experiência de laboratório e de uma ideia de construção de imagem em camadas. Em Ausência Permanente, o artista angolano propõe uma reflexão sobre as transformações e o (des)ordenamento do espaço a que tem estado sujeita a capital Luanda e a memória de portugueses que por lá passaram. A iluminação que Jasse faz incidir sobre as imagens remetem para uma ideia de cidade sob escrutínio, uma cidade que está debaixo de focos de luz. Luanda vive “um processo de iluminação”, um lugar para onde “toda a gente olha”, mas nem sempre por bons motivos. Délio Jasse dá exemplos: a destruição do mercado de Kinaxixe (considerado uma pérola da arquitectura modernista) ou do prédio Cuca (em 2011), dois equipamentos que serão substituídos por centros comerciais. “Só querem arranha-céus. Estamos a falar de negócio. Não estamos a falar de escolas, hospitais… Estamos a falar de dinheiro. Há muitas obras feitas só para impressionar.”

Ao nível do chão, os retratos ampliados a partir de negativos de vidros comprados em feiras de rua misturam-se com paisagens urbanas em desalinho ou onde já existiram edifícios históricos. Uma terceira camada revela todo o tipo de marcações gráficas relacionadas com burocracia ou troca de correspondência pessoal ou de terceiros não identificados. “Há aqui também algo de reflexão sobre a história colonial que me leva às fronteiras da memória e da identidade”, explicou na apresentação da mostra que, juntamente com as outras duas exposições, será analisada pelo júri de premiação composto por Elvira Dyangani Ose, curadora de arte internacional da Tate Modern (Londres), Luis Weinstein, fotógrafo e organizador do Festival Internacional de Fotografia de Valparaíso, e María Inés Rodríguez, directora do CAPC, Musée d’Art Contemporain de Bordeaux. A decisão final sobre o vencedor será conhecida no dia 2 de Julho.



Sair de casa, 

olhar à volta

Com os pés cada vez mais assentes no presente, no dia-a-dia e no que o rodeia num raio muito curto está José Pedro Cortes (Porto, 1976). O momento que marcou a decisão de apresentar um conjunto de imagens orientadas pelo tempo e não pela narrativa ou pela serialidade, como até aqui vinha sendo norma no seu trabalho que tem sido sobretudo divulgado em livro, foi de tal maneira importante que Cortes quis assinalá-lo logo à partida. Um Eclipse Distante começa com uma fotografia do curto obituário que a artista Laurie Anderson escreveu para o marido, Lou Reed, dias depois de o músico ter morrido, a 27 de Outubro de 2013. Funciona como um pionés, só que, em vez de fixar um lugar, fixa um tempo muito preciso (a exposição esteve para se chamar O Ano em Que Lou Reed morreu). 

Aliado ao registo diarístico e de quotidiano urbanístico, muito focado nas falhas, nos acidentes paisagísticos e naquilo que pode representar algum tipo de incoerência, a proposta expositiva do fotógrafo e editor aposta muito no retrato e no corpo femininos. É um género já antes explorado no seu trabalho, mas talvez só agora surja com a intenção clara de mostrar o processo de construção e a procura da “imagem perfeita”, o que na verdade não passa de um desejo utópico (assumido), tanto para fotógrafo como para fotografadas. 

O livro mais recente de José Pedro Cortes, Costa, um dos trabalhos que lhe valeram a nomeação para o prémio, ajudou-o a recentrar geograficamente a sua fotografia (agora mais próxima do lugar onde vive, Lisboa). Foi lá que conseguiu isolar um tipo de luz ofuscante, do Sul, que marca cada vez mais presença nas suas imagens do espaço público e que nesta exposição volta a ter um lugar de destaque. A tentação de fazer “um estado da arte” a partir de imagens captadas antes desta nomeação era grande, mas José Pedro Cortes preferiu trabalhar com novas imagens criando um projecto expositivo que aposta em formatos muito distintos. “Tinha de construir alguma coisa que me desse prazer fazer. As imagens de Costa ajudaram a focar-me em Portugal, em coisas que me são próximas. Já tive a sensação de que precisava de sair para fotografar, para fazer alguma coisa. Hoje, sinto precisamente o contrário — sinto vontade de fotografar aqui, à volta da minha casa.” 

É na ponte entre espaço público e privado, entre paisagem e retrato, que o fotógrafo procura “construir uma harmonia entre superfícies” e uma “materialidade na fotografia”, na busca de “uma narrativa que não é em si uma história”. Quanto mais não seja, para sentirmos que a fotografia ainda pode ser palpável.

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