Os fascismos — de maneira grandiosa ou numa frouxa escala — procederam a uma estetização da política. Numa célebre resposta a essa circunstância, Brecht e Benjamin lançaram, no Inverno de 1935/36, do exílio dinamarquês onde se tinham juntado por uns meses, uma palavra de ordem: à estetização da política é preciso responder com a politização da arte. O projecto de estetização da política que o nazismo realizou ecoa nesta célebre definição de Goebbels: “A política é a arte plástica do Estado”. Menos conhecida é a reivindicação, pelos estudantes do Partido Nazi, de uma “ciência politizada”. Ciência politizada ou, pelo menos, submetida a princípios ideológicos, foi também a ciência biológica e a agricultura de um outro regime totalitário, o soviético, quando Lissenko pôs de parte o saber adquirido da genética, considerada como burguesa, e submeteu a semente do trigo duro a tratamentos com vista a uma política agrícola rigorosamente planificada. O resultado foi ruinoso e as desventuras ideológicas da agricultura soviética tornaram-se uma anedota que os soviéticos ampliaram com humor negro. Nas democracias actuais, não são dadas sequer as condições de possibilidade para uma estetização da política (mesmo a “política cultural” tem de se afastar, em princípio, de uma política estatal do juízo estético e de uma cultura de tendência), e relativamente à ciência o que se espera das democracias é que elas mantenham a “neutralidade axiológica” de que falou Max Weber. Mas se já ninguém ousa clamar por uma ciência politizada, temos de observar que triunfou no nosso tempo uma política cientificizada. Não se trata apenas de a estatística se ter tornado o instrumento fundamental da racionalidade política, é mais do que isso: não há lei ou decisão governamental que não se baseie em estudos encomendados ou em investigações académicas feitas num âmbito científico autónomo. Veja-se, por exemplo, como a lei que permite o acesso condicionado a uma “lista de pedófilos” procurou a caução — ilegítima e abusiva, como já foi amplamente explicado — de um estudo sobre os níveis de reincidência. Todo o processo de engendramento e implantação do Acordo Ortográfico de 1990 só tem paralelo nas experiências agrícolas de Lissenko: a ortografia, como o trigo duro, tem de se vergar às miragens de uma ideologia (que tem nome de “lusofonia”, mas é muito mais do que ela) e conformar-se aos desígnios de políticos e cientistas pioneiros, ditos linguistas, mas que são na verdade agentes de uma ciência politizada. Juntos, gritaram em coro, antes de perderem o pio: “A ortografia é a arte plástica do Estado”. Quem lê jornais, escritos públicos e documentos oficiais percebe que está instalada a anomalia ortográfica (em meia hora de televisão, no dia 25 de Abril, li dois “fatos” em vez de “factos”) e que a aplicação do AO90 é tão desastrosa e tão contrária aos efeitos pretendidos (temos agora três normas ortográficas no “espaço lusófono”) como a agricultura de Lissenko. E é já tão paródica como ela. O que é irritante é que toda a verdade de facto exige peremptoriamente ser reconhecida e recusa a discussão. Por isso é que os políticos com responsabilidade nesta matéria e o respectivo braço armado científico (os cientistas pioneiros do laboratório linguístico de onde saiu o AO90) recusam sair a público e discutir os resultados da sua bela obra: mostram-se às vezes irritados com o ruído da paródia. Mas apostam no silêncio, à espera que das intervenções genéticas no trigo duro nasça, se não cevada e centeio, pelo menos erva para forragens.
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