Jean Nouvel: "O ofício do arquitecto é um trabalho de poesia"
O arquitecto francês Jean Nouvel foi um dos convidados do Fórum do Futuro. Fez no Porto, no Teatro Rivoli, a sua primeira conferência pública em Portugal, onde defendeu a prática de uma arquitectura combativa, sempre atenta ao contexto e não esquecendo a poesia.
De facto, Nouvel, uma “estrela” da arquitectura mundial, tinha finalmente decidido incluir o Porto no seu roteiro de viagens, ele que actualmente, a partir de Paris, vive numa frenética placa giratória entre o mundo árabe (está a concluir o Museu do Louvre em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos, e o Museu Nacional do Qatar), a Austrália (onde o complexo One Central Park, de Sidney, acaba de ser premiado como o melhor edifício em altura do mundo em 2014 pelo CTBUH – Council on Tall Buildings and Urban Habitat), e a China (está a trabalhar no Museu Nacional de Artes), para onde iria viajar esta terça-feira, com escala na capital francesa.
Nas menos de 24 horas que esteve no Porto, Jean Nouvel quis ir conhecer in loco o Estádio de Braga, de Souto de Moura, a Casa da Música, de Rem Koolhaas, e, no caminho para o aeroporto, haveria de passar por Leça da Palmeira a ver a Piscina das Marés de Álvaro Siza.
“Todas estas obras, eu conhecia-as de fotografias, mas a verdade é que a arquitectura real, na sua verdadeira dimensão, não tem nada a ver com o que vemos nas imagens, porque estas mentem sempre”. “Um mau edifício pode dar belas fotografias, mas quando um edifício é complexo, misterioso, tem carácter, como é que isso se transmite nas fotografias?...”, pergunta-se Jean Nouvel na curta entrevista que concedeu ao PÚBLICO antes da conferência no Rivoli.
Acabado de chegar das visitas a Braga e à Casa da Música, o autor do Instituto do Mundo Árabe, em Paris, disse-se mesmo “chocado, no bom sentido da palavra”, com a visão do estádio desenhado por Souto de Moura. “Não imaginava um sítio assim tão imponente, tão calmo e simultaneamente tão forte, com aquela escala e aquela presença absolutamente incríveis”. E falou da relação da obra “com a natureza, o granito, as árvores, o betão…”. E do ritmo criado pelo jogo de todas aquelas escadas, os cabos… “É uma coisa verdadeiramente formidável!”.
O facto de Jean Nouvel ter visto desaproveitado o projecto que realizou, na sequência de um concurso que venceu em 1990, para o Estádio de França, no sul de Paris, tendo em vista o Mundial de Futebol de 1998, mais deve tê-lo despertado para a obra do seu colega português. “O meu projecto não foi construído por razões políticas” – na sequência da chegada ao poder do primeiro-ministro Edouard Balladur, em 1993. Nouvel protestou junto da Comissão Europeia, venceu o processo e foi indemnizado. Mas lembra que o seu estádio não tinha nada a ver com aquele que haveria de ser construído no lado oposto, a norte de Paris. “O meu era um lugar urbano, para ser vivido pelas pessoas e não mandá-las logo embora sempre que acabasse um jogo ou espectáculo”, diz.
O “quase nada” de Siza
Mesmo antes de visitar, também no lugar, as piscinas de Siza, Nouvel referiu-se ao arquitecto de Matosinhos como “um mestre”. “Siza interessa-me desde há muito tempo. É alguém que trabalha muito sobre uma subtileza discreta. Muitas vezes, a partir de uma ideia que me apaixona, que é o ‘quase nada’”. E prometeu voltar para ver outras obras do Pritzker 1992.
Na Casa da Música, Nouvel foi também conhecer de perto, e por dentro, um projecto de que já tinha ouvido falar várias vezes, inclusivamente da polémica que a obra de Rem Koolhaas (com quem trabalhou no plano de modernização de Lille, construindo o famoso centro comercial “Titanic”) motivou no Porto. “A polémica surge sempre que um projecto é interessante”, diz o arquitecto francês, descrevendo o de Koolhaas como “notável do ponto de vista cenográfico”. “A sala de concertos tem um carácter muito forte, no desenho das cadeiras, na transparência, na ligação dos pequenos espaços com a sala principal”.
As salas de concertos, casas de cultura e museus são programas que Nouvel tem abordado repetidamente na sua carreira. Vejam-se a Sala Sinfónica de Copenhaga, o palácio da Cultura de Lucerna – que Souto de Moura, no Rivoli, citou como um bom exemplo da relação que a arquitectura de Nouvel estabelece com a natureza envolvente, neste caso, um lago –, a renovação da Ópera de Lyon, ou a Filarmonia de Paris, quase pronta e com inauguração prevista para o início do próximo ano. Ou a extensão do Museu Rainha Sofia, em Madrid e, principalmente, o mediático Museu do Quai Branly, junto ao Sena e à Torre Eiffel, que o Presidente Jacques Chirac lhe encomendou para acolher os testemunhos das artes e civilizações da África, Ásia, Oceania e Americas.
Uma das imagens mais mediáticas deste projecto são as paredes vegetais (em parceria com o botânico Patrick Blanc) e as grandes superfícies em vidro, uma linguagem que Nouvel também usou no complexo One Central Park, de Sidney. Será esta uma marca do seu estilo? O arquitecto recusa qualquer espécie de generalização. Diz que, no Quai Branly, “fazia sentido” a aposta nas superfícies vegetais, e a ideia de apresentar “um edifício parisiense invadido pelas plantas”. Considera-a “uma ideia poética”. “Mas não vamos começar a plantar todas as fachadas dos edifícios”, nota.
Poesia e metafísica
A ideia de poesia foi, de resto, várias vezes referida por Nouvel na conferência no Rivoli – que conheceu uma enchente invulgar, certamente com uma maioria de estudantes de arquitectura da cidade a não querer desaproveitar a oportunidade de ouvir dois prémios Pritzker numa mesma sessão. “O ofício do arquitecto é um trabalho de poesia fecundada pela metafísica instantânea; é preciso apostar numa visão poética”, reivindicou Nouvel, recuperando excertos do seu Manifesto de Louisiana, que escreveu em 2005 para expor a sua visão da arquitectura e denunciar a repetição dos mesmos modelos culturais em todo o mundo.
Numa intervenção pontuada, a cada cinco segundos, “para não cansar as pessoas”, por imagens de obras suas, Nouvel defendeu uma arquitectura de combate contra os arquitectos generalistas, contra os modelos de urbanismo praticado em escritórios que passam o tempo a fazer clones de lojas comerciais, de habitações, de equipamentos sociais que plantam por todo o planeta. “Hoje em dia a globalização acentua os seus efeitos e uma arquitectura dominante reivindicou claramente o desprezo do contexto”, disse, afirmando-se, em alternativa, como “um arquitecto do contexto”.
Na conversa anterior com o PÚBLICO, Nouvel tinha já realçado que a arquitectura é um trabalho de “procura de sensações e de emoções”. “Elas estão ligadas aos lugares, à cultura, à geografia, à história, às pessoas, no fundo. São estes parâmetros que devem garantir a diferenciação permanente do mundo. Se não, assistimos a uma simplificação dramática no plano da cultura, do prazer de viver de cada indivíduo”, acrescentou. O papel do arquitecto é defender esses valores. “É preciso pensar naqueles que vão viver nos lugares”, é preciso garantir que os edifícios sejam bem construídos, que correspondam às expectativas dos empreendedores, mas também dos operários que os constroem. “Não sei se isto está na moda, mas é nisto que eu acredito”, diz, afirmando-se “um combativo”.
E depois de terminar a sua intervenção inicial no Rivoli a citar Paul Valery – de novo a poesia: “Le temps scintille et le songe est savoir” –, Nouvel mostrou imagens do projecto que desenhou para um complexo de quatro edifícios de habitação e comércio em Alcântara, Lisboa, mas que “infelizmente não saiu do papel”. Falou depois, com algum detalhe, do Grande Plano de Paris, que ele e uma equipa de uma centena de arquitectos e outros profissionais trabalharam durante três meses, a convite do Presidente Nicolas Sarkozy.
Remando contra a imagem de uma cidade marcada por uma certa uniformização arquitectónica – “Em França, porque se gosta muito da guilhotina, cortam-se os edifícios todos pela mesma altura”, gracejou –, Nouvel defendeu a aposta na construção em altura, mesmo se recusa a ideia de ser um arquitecto de arranha-céus. Mas esse Grande Plano para o futuro da capital francesa com uma população de dez milhões – e que acabaria também por ficar na gaveta – apostava principalmente na ideia de “transformação e mutação” do construído. E deu alguns exemplos inesperados, como uma intervenção de Frank Gehry na Torre Montparnasse ou a do artista conceptual Daniel Buren na catedral de Notre-Dâme.
“Em nome do prazer de viver na nossa terra, temos de nos bater contra o urbanismo das zonas, das redes, dos territórios retalhados, contra esta podridão automática que anula a identidade das cidades de todos os continentes, sob todos os climas”, defende Jean Nouvel, citando de novo o Manifesto Louisiana.
No final da intervenção no Rivoli, Souto de Moura explicou ao PÚBLICO que o que mais admira na obra de Nouvel “é a forma como ele compreende a contemporaneidade, como continua o movimento moderno com as condições de hoje – que são completamente diferentes da época heróica do pós-guerra –, no mundo global, com materiais, tecnologias e conexões completamente diferentes”.
Recordando ter sido convidado pelo arquitecto francês a mostrar a sua primeira obra, o Mercado de Braga, na Bienal de Paris em 1985 – “na altura eu era um jovem de 32 anos, só com uma obra, e ele expô-la ao lado do Siza e do Rafael Moneo; fiquei radiante” –, o autor do Estádio de Braga destacou também “a lucidez com que Nouvel compreende o mundo contemporâneo, mas de uma forma que não é moralista; é exactamente ao contrário: é pegar na fragmentação dessa diversidade, e desses defeitos todos, e fazer uma arquitectura que no fundo é optimista”. Souto de Moura viu ainda na conferência “uma lição de optimismo para o futuro, muito importante para a gente nova”.