Neste palco, os gestos resistem e as palavras dançam

Arriscando cada vez mais fundo na sua relação com o texto, Sofia Dias e Vítor Roriz criaram Satélites, uma peça admirável habitada pelo absurdo e por um constante questionamento da relação entre palavra e acção. Em estreia esta sexta, na Culturgest.

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Mas a dança a que se assiste em Satélites é uma dança com as palavras. Uma dança com os significados, a evocação das imagens, a relação entre movimento e nomeação do movimento, a coincidência ou desencontro entre a palavra e a acção. Dizem “rocks”,”trees”, “montains” e “waterfalls” acocorados ou ajoelhados debaixo de panos, e aquilo que é, primeiro, a palavra como único elemento a quebrar a monotonia do cenário, transforma-se depois noutra coisa através da repetição das mesmas pedras, árvores, montanhas e quedas de água acompanhadas de movimento. Uma palavra solitária é apenas uma nomeação seca, factual, mas habitada pelo gesto é repentinamente, sem alteração do tom neutro, passível de um efeito dramático ou cómico. Absurdo mesmo. E, portanto, lançam a palavra “pedra” como fariam com a própria pedra.

“O absurdo é uma dimensão que nos interessa bastante”, vinca Vítor Roriz. “Nos espectáculos anteriores esteve sempre lá, nos processos, na música, um pouco por todo o lado, mas às vezes pela impossibilidade da composição ficou sempre um pouco esquecido.” Esse absurdo instala-se agora porque Vítor e Sofia falam para os objectos e ouvem-nos de volta. Não vale a pena googlar os requisitos para internamento psiquiátrico compulsivo. Os dois sabem que os diálogos mantidos com objectos e paisagem não fazem nascer bocas num pano ou num pau convocados para o palco, mas concentram-se nas projecções que os objecos lhes estimulam.

À partida para cada nova criação da dupla, confessa Sofia Dias, ficam atentos a “frinchas que as peças têm e que indicam a próxima peça, a próxima pesquisa”. Desta vez, ao espreitarem para as frinchas de Fora de Qualquer Presente (2012), aquilo que encontraram foi o corpo de Filipe Pereira, “uma presença periférica que tinha um papel de activação da cenografia”. Essa intromissão no universo cúmplice do casal desencadeou duas respostas em Satélites: um descentramento da ideia de dueto (com o elenco a crescer para quatro intérpretes), obrigando a uma redescoberta do processo criativo; uma retirada de protagonismo do corpo ou da palavra, partilhando-o com objectos, cenografia ou música. O centro deixa de ser óbvio nesta peça em estreia na Culturgest (Lisboa), sexta e sábado.

Na verdade, Vítor e Sofia quase parecem esconder o corpo e o movimento. Os corpos tanto são dissimulados com panos que os cobrem por inteiro como existe em palco uma resistência ao movimento, em loops constantes de pequenos gestos que não parecem capazes de quebrar com o seu ciclo mas que, com subtileza, vão produzindo uma alteração quase indizível, como se fosse uma mera ilusão. A repetição na obra dos dois é um mecanismo recorrente precisamente porque, sublinha Sofia, “nunca é bem repetição, é sempre transformação”. São, assim, gestos que surgem inacabados, boicotados na sua concretização. Mas trata-se também daquilo a que Vítor chama “uma resistência à velocidade, um modo de inscrever o gesto no espaço – a repetição leva a que a cada momento olhemos para ele, está sempre a chamar a atenção sobre si próprio”.

Ver o que não está lá
Esta recorrente nomeação como forma de activação da realidade, descrevendo as acções que o corpo concretiza, é amiúde trabalhada numa lógica de fusão. A nomeação e o gesto coexistem, quando um falha está lá o outro, e às tantas estamos perante uma forma condicionada, quase uma mentira cuidadosamente induzida, como se Sofia e Vítor escorregassem para debaixo da nossa pele manipulando-nos imagens que, apesar de serem criadas por nós, eles orquestram com uma fabulosa eficácia. Quando fazem apenas o gesto, ouvimos a palavra; quando dizem apenas a palavra, vemos o gesto. E estamos enredados no efeito hipnótico causado pela repetição.

A palavra e a relação com tempo vão-se também alterando à medida que Satélites avança. Sofia repete e descreve quando genuflecte, quando se vira, quando toca o chão (simultâneo). Vítor relata o afastamento do seu corpo na direcção da paisagem e só depois de o enunciar o corpo obedece a esse caminho (a palavra vai à frente). Vítor fala de mãos que são nomeadas e só depois surgem da penumbra, fala de um pau que só em seguida lhe é atirado para o palco (a palavra convoca o corpo e os objectos). “Quando atribuímos palavras às coisas”, justifica a criadora e intérprete, “estamos a fazê-las existir e a incluí-las na nossa realidade.” Ele completa argumentando que “ao nomearmos algo essa coisa adquire uma luminosidade num conjunto indefinido de objectos e de uma paisagem”.

Durante toda a peça, Vítor Roriz, Sofia Dias, Clément Garcia e Raúl Maia fazem-nos ver o que não está lá e colocam-nos diante do poder evocador da palavra, enquanto construtora de mundos e de narrativas. Ao descerrarem panos que tanto nos mostram uma solta letra R quanto um título de jornal amputado de que sobrevive apenas rope o jogo estabelecido é o de uma comunicação em trânsito. Aí são as palavras que surgem privadas de corpo, como “um género de fantasma”, a caminho de serem ditas e de só então poderem inscrever-se no espaço. E, ao estarem inacabadas, precisam também de um corpo que as termine de escrever.

O fascínio crescente da dupla com o texto prende-se com a capacidade de “a palavra conseguir dar corpo às coisas”. Mas se essa atracção não é nova para os dois, Satélites empurra-os mais no sentido de um interesse pela narrativa ampliado pela peça António e Cleópatra, de Tiago Rodrigues e a partir de Shakespeare, que os dois protagonizaram. “Abriu-nos este gosto pelas histórias, por contar, por narrar, por partilhar”, concretiza Sofia. Mas contribuiu igualmente para um reforço da ideia que já os contaminara – a de procurar um novo centro. De repente, a história passava a ser o objecto. E não os dois, em conversa com os seus corpos. A história, mesmo que seja apenas uma narrativa fragmentada, absurda, é contada como se trabalhada musicalmente por Laurie Anderson, falada ou cantada (há momentos blues e gospel) para provocar mais um descentramento. Quando a palavra consegue a autonomia da acção, está ainda presa ao significado. O canto é a sua tentativa de fuga.

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