Nem Camões resiste no abandono da nossa identidade
Sugiro-te aqui, para vergonha das nossas instituições e ‘elites’, que faças chegar a notícia ao Brasil, Angola, Moçambique ou quiçá Timor.
Foi apresentando-os um a um, numa ciclópica tarefa, paciente, devotada e rigorosa, até chegar a completar o livrinho de Camões. Um acto que deveria, de há muito, ter sido devidamente assinalado pela comunicação social, e refiro-me, particularmente, ao silêncio impante das televisões, já que este e outros jornais não deixaram de o registar.
Jornalismo, que eu saiba, é muito de investigação e do estar atento à realidade. Não me parece que devam ser as notícias que correm atrás da comunicação social, mas justamente o contrário. Só que os canais de televisão portugueses – mesmo os ‘pobrezinhos e que moram longe’ – se habituaram a serem procurados em vez de procurar por causa dos célebres ‘5 minutos de fama’ de que falou Andy Warhol. À mistura com o tele-lixo e o sensacionalismo descartável que abraçaram mais a agonia de serviço público. Aliás, este mesmo projecto de que falo poderia, em tempos civilizados, ser muito bem um bom conteúdo programático televisivo – ou ponto de partida para ele – e não só notícia.
Criticado este poder fáctico, de enorme (ir)responsabilidade na (de)formação das pessoas, para que não se pense que sou vesgo e estou só ‘preocupado’ em ‘zurzir’ no poder político, posso agora falar deste com as suas decisões, por um lado, e ‘esquecimento’ por outro, incríveis; apesar de, nesta idade, neste meridiano, neste país, já ter o dever de estar habituado a situações absolutamente patéticas, de que poderia dar inúmeros exemplos. Mas, ao menos Camões, e no ano em que se comemoram os 850 anos da nossa Língua, pensei que pudesse escapar da indiferença com que se trata a nossa identidade cultural. Tanto mais que a ‘confusão’ do acordo nem se põe porque o texto é dito e não ortografado.
Uma vergonha para as tutelas da cultura e da educação, para a organização do 10 de Junho pela presidência da República e por essa comissão que celebra o aniversário da Língua Portuguesa. Mas não só: para todas as instituições políticas, cívicas e culturais que passem ou passam ao lado da descaracterização da citada identidade cultural, incluindo os meios académicos, seja neste ou noutros casos. Ao contrário da bandeira com que os republicanos ergueram Camões, retirando-o mesmo aos monárquicos, que também o queriam seu, até parece que o sentimento patriótico (não nacionalista xenófobo) é uma antiguidade. Com uma cegueira tal que nem se dão conta que são Amália, José Afonso, Carlos do Carmo, Mariza, Resistência, Luís Cília, Madredeus, Camané, Naifa e outros que cantam em português, e assumiram essa matriz, quem é conhecido ‘lá fora’.
Mas que fique claro: o António Fonseca não me pediu nada, nem tem nada a ver com o que aqui digo. A única coisa que me pediu – num e-mail presumivelmente enviado para muitos em bcc – foi a adesão ao seu projecto de gravação através dessa coisada chamada crowdfunding, que, entre nós, não funciona de todo. Eu é que senti tanta vergonha como português, nem tanto como artista, que achei-me no dever de dar pública nota do facto, por paradigmático e revelador que é. Infelicidade a dele, pois tivesse nascido uns 400 quilómetros a leste de Santo Tirso, sua terra natal ao que julgo, e fosse o “Dom Quixote” a ser narrado, o próprio Instituto Cervantes lhe pediria – pediria sim – que lhe permitisse associar-se ao projecto, contribuindo com a divulgação dessa gravação e fazendo circular o espectáculo por escolas e não só, potenciando-o dentro e fora de fronteiras, com apoio financeiro, logístico e científico.
Mas como não é esse o caso, olha, António - uma vez que tenho a certeza que não queres gravar só o canto IX como banda sonora de fundo em formato vídeo com as ninfas a desfilar, figuradas por ‘boazonas’ de calendários de camionista ou esqueléticas adolescentes desnudadas - por causa das audiências para teres um patrocinador, sugiro-te aqui, para vergonha das nossas instituições e ‘elites’, que faças chegar a notícia ao Brasil, Angola, Moçambique ou quiçá Timor. Lá não há um Instituto Camões, mas há a Língua Portuguesa como factor de identidade agregadora dos povos. Quem sabe?
Encenador, Director Artístico de Dogma\12