Nas trincheiras familiares da Guerra Civil de Espanha

Pablo Fidalgo Lareo esgravata na memória da guerra que dividiu a Espanha ao meio para falar dos que sobreviveram vergados pelo silêncio ou se exilaram para sempre. Haverás de Ir à Guerra que Começa Hoje e O Estado Selvaxe. Espanha 1939: um teatro de ferida aberta.

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Haverás de Ir à Guerra que Começa Hoje prossegue o cruzamento entre a pequena história familiar e a grande História de um país que Pablo Fidalgo Lareo decidiu trabalhar no seu teatro MARTA PINA
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Pablo Fidalgo esgravata na história da família – para que venham à tona os testemunhos daqueles que, tendo atravessado um período muito doloroso da vida do país, “ficaram e não se posicionaram muito, sobreviveram” AMALIA AREA

“Em plena guerra era habitual libertarem prisioneiros para depois os fuzilarem pelas costas”, ouvimos em Haverás de Ir à Guerra que Começa Hoje. Portanto, ajudado por um guarda civil amigo, Giordano partiu para Havana na mesma noite em que teve ordem de saída da prisão para onde fora levado pelo exército falangista que patrulhava as ruas de Vigo, numa caça a republicanos após o golpe de estado de 17 de Julho. Dali seguiu para Montevideu e, finalmente, para Buenos Aires. Nunca mais voltou. Mas ao mesmo tempo recusou durante toda a vida aceitar a nacionalidade argentina a que tinha direito. Foi uma opção política. Renunciar oficialmente a ser espanhol equivaleria a entregar a vitória aos falangistas (da Falange Espanhola, partido fascista de apoio a Franco) que haviam forçado a sua saída; em contrapartida, viveria até ao fim como exilado.

Habituado a conhecer o lugar de Papiro-Zoo na estante da casa dos avós, Pablo Fidalgo Lareo, 31 anos, decidiu desenterrar aquela história, em mais um passo da investigação da memória familiar que começou a trabalhar desde a criação de O Estado Selvaxe. Espanha 1939. O motor de ambas as peças é coincidente: ao limpar o pó a estas narrativas reais, Pablo enfia-se nas trincheiras da memória da Guerra Civil espanhola e luta contra o denso silêncio que alastra pelo país, como se o sangrento período 1936-1939 e as suas 400 mil mortes pudessem ser varridos para debaixo de um reles e miserável tapete que pouco pode esconder mas que quase todos preferem ignorar. “Este medo e este silêncio em Espanha são comuns à maior parte das famílias”, argumenta o dramaturgo. E tem convidado os historiadores a uma tentativa crescente de lavagem e interpretação selectiva dos acontecimentos, debaixo da tese de que Espanha não passou por uma ditadura e de que Franco não terá sido, de facto, um ditador.

É por isso que Pablo Fidalgo esgravata na história da família – para que venham à tona os testemunhos daqueles que, tendo atravessado um período muito doloroso da vida do país, “ficaram e não se posicionaram muito, sobreviveram”, como os seus avós (em Estado Selvaxe), e daqueles que se viram em fuga e deixaram o país num momento que Pablo acredita ter amputado de vez a esperança de “uma ideia de uma Espanha moderna, distinta, educada, aberta ao mundo” (em Haverás de Ir à Guerra). “Os republicanos cometeram imensos erros a todos os níveis, mas acho que é o único lugar de onde hoje podemos conseguir agarrar a História de Espanha." Como momento que ajuda a explicar o presente e como inflexão definitiva para um rumo irreparável.

De certa forma, num país em que, tal como em Portugal, a geração de Pablo Fidalgo acusa a governação de lhe ter roubado o futuro, as ameaças de fabricação de uma “nova História” e de uma limpeza do franquismo são sentidas como uma tentativa de roubo do passado. Como se, por absurdo, aos menores de 40 anos fosse apenas oferecido um presente do qual é impossível escapar. “Sinto mesmo isso”, confirma, “e é muito agressivo". “Isto que estou a fazer parece uma declaração de amor ao passado”, diz Pablo pela boca do actor Cláudio da Silva, intérprete de Haverás de Ir à Guerra, que chega dia 3 ao Rivoli, Porto, e dali parte para o Teatro Maria Matos, Lisboa, onde de 7 a 10 integra o ciclo Europa Improvável, para ir ainda visitar, a 14, o Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra. Mas não é bem isso que acontece. “É muito difícil convencer as pessoas de que há algo que ainda temos de resolver para construir a nossa História”, lamenta. “E é cansativo tentar pôr esse tema sobre a mesa. Há um cansaço com respeito à Guerra Civil, mas cada pessoa que está cansada da Guerra Civil, na verdade, está a entregar a vitória aos que ganharam, aos que se sublevaram, aos que fizeram uma guerra ilegal, aos que foram apoiados pelos nazis. E acho que isso é terrível.”

O duplo exílio
Foi aos 25 anos que Pablo Fidalgo Lareo começou a intuir que a História do seu país não podia esgotar-se na versão lisa e anódina dos manuais escolares. Andava na região de Valladolid, entrou num bar de um povoado e encontrou um homem que lhe começou a falar de um lugar chamado Alcazarén que, durante a República, “tinha colectivizado as terras, era completamente organizado e obedecia a um governo de 17 homens, entre os 18 e os 30 anos, uma espécie de governo colectivo republicano". Todos esses 17 homens foram fuzilados. A ideia da eliminação de uma geração chocou-o, mas a indignação de que isso pudesse ter acontecido “em Espanha, no meio de uma Europa que consentiu aquilo”, afigurou-se-lhe um facto “assombroso”. O homem, muito velho, era filho de um dos fuzilados e levou Pablo a pensar que era tempo de saber mais sobre a História do seu país – o que implicou não apenas ler com afinco livros que lhe proporcionassem um conhecimento mais detalhado do que se passara durante a Guerra Civil, mas também perceber que eram estas “histórias pequenas”, mantidas intactas debaixo de um fúnebre silêncio, que verdadeiramente lhe interessavam.

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Histórias como a de Rafael Lareo (tradutor, anarquista e dirigente sindical), contada em Hás-de Ir à Guerra, que se escondeu em casa do irmão Manolo, tendo sido finalmente encontrado, levado e executado no Monte del Castro, em 1937. “Essa história nunca tinha sido falada na minha família, nunca esteve presente para a minha mãe e para os meus tios”, espanta-se. Foi para que não ficassem soterradas em definitivo que Pablo criou O Estado Selvaxe. Espanha 1939 (dia 2 no Porto; dia 11 em Lisboa), em que ouvimos repetidas vezes “agora lembro-me”, como se as recordações fossem peças de um dominó que se vão empurrando umas às outras. Nessa peça, o dramaturgo parte de “filmes de família que estavam na merda” e que quis salvar, mas tratou-se sobretudo de agir quando a memória do seu avô começava a ruir e a criar “um outro relacionamento com o mundo, mais frágil”. “Ali começou a cair um grande pilar e eu ocupei esse espaço com a peça”, diz. Os vídeos familiares registados em super 8 pelo avô entre as décadas de 50 e 80 dão depois lugar à presença em palco da avó, Mercedes Fernández Vázquez, que ao longo de uma carta escrita para as netas mergulha no seu passado e conta a sua história, numa tocante sobreposição com a História espanhola.

Inicialmente, com a estreia em Vigo, Estado Selvaxe não levantou problemas de maior na família de Pablo Fidalgo. Mas, com a progressiva exposição da peça, instalou-se um incómodo que, como não podia deixar de ser, “nunca é frontal”. Se as viagens da avó Mercedes, que habitualmente cuida do avô Manolo, obrigam a família a procurar alternativas sempre que a “actriz” é requisitada para apresentações no México, na Guatemala ou em Portugal, o incómodo maior, acredita Pablo, provém da ideia de que há um único relato da vida dos Lareo a impor-se e a ganhar um público crescente e que nem sempre corresponde à versão que gostariam de ver oficializada. Mas as consequências da peça manifestaram-se também com o aparecimento de novos relatos. Após a estreia de Estado Selvaxe, aconteceu a avó Mercedes cruzar-se com um primo do avô e pô-lo a par do que andava a fazer. “E ele contou-lhe que toda a gente na família sabia que o meu avô não conseguiu estudar engenharia, que era o que sempre tinha querido na vida, porque a mãe dele levava comida aos presos republicanos na ilha de San Simón. Não conseguiu por motivos políticos e acabou a ser professor de matemática e a viver numa frustração, num medo e num silêncio que se estendeu a todos. A ferida na vida do meu avô é maior do que esse detalhe, porque esse detalhe é brutal.”

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A história de Giordano é também de uma fulminante violência – é o relato de um homem que se vê sem país e, mais tarde, também sem filhas. Ao exílio político, junta-se um exílio afectivo de quem foi afastado em duas ocasiões da sua família. Trata-se, novamente, de uma história de sobrevivência, mas totalmente apagada pelo tempo. Apesar de ter viajado até à Patagónia em busca de pistas sobre Giordano, Pablo encontrou uma ausência tremenda – “ainda não sabemos como nem onde ele morreu”, confessa. E o facto de nem as filhas terem partido à sua procura abre mais um capítulo doloroso enigmático sobre a vida deste homem. Daqui ergue-se um outro reflexo tremendo: a identificação total com Giordano que Pablo diz sentir. “Estou a sofrer, de alguma forma, a mesma ignorância, a mesma brutalidade de um país que tem muitos erros de base, que têm a ver com a História, e que continua a cortar as asas aos jovens.” Mas o exílio, para quem como o autor recusa a ideia de voltar a Espanha – “faço muitas coisas por lá, mas passar ali os meus dias não” –, pode transportar também essa ideia de liberdade, de conseguir esticar o pescoço para fora em busca de ar e vencer o sufoco.

O exílio, tal como a doença, a morte ou a guerra, são preciosos para Pablo Fidalgo porque permitem “suspender a ficção em que vivemos – o mundo está construído para não se ter vivências e relações reais”. O seu teatro é precisamente contra essa ficção. A favor da dor. Sem tentar disfarçá-la com anestésicos que servem tanto para aceitar um mundo achatado como para embrutecer emoções.

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