Não deve ler esta entrevista (contém palavreado altamente ofensivo)

Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? O podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade.

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Se há ocasião em que a palavra “destravado” se justifica, é esta. Os humoristas Bruno Nogueira e Nuno Markl e o pianista Filipe Melo não têm travão. Dizem as coisas que as pessoas não devem dizer e que, na prática, todas dizem mais ou menos. Esta entrevista, como o programa Uma Nêspera no Cu, passa-se num mundo onde a estupidez tem lugar. Um mundo onde é proibido proibir e os limites são quase nenhuns ou nenhuns mesmo. Um mundo onde se volta à criança que folheia uma revista pornográfica (que sacou, quiçá, da mesinha-de-cabeceira dos pais) e descobre que não é a única a fazê-lo. Eles são amigos, trabalham episodicamente juntos. O espectáculo que os juntou, Deixem o Pimba em Paz, de Bruno Nogueira, volta ao Teatro São Luiz, em Lisboa, de 3 a 12 de Julho, de fato de gala e Orquestra Metropolitana. Os arranjos são de Filipe Melo e de Mário Laginha. Depois de lerem a entrevista, vão poder imaginar as coisas que dizem na carrinha, nos camarins, a maluqueira que não pretende salvar o mundo mas que os diverte. Última advertência: nesta entrevista dizem-se coisas impensáveis. É melhor ir a outro balcão se não gostar de gelado de nêspera.

Vamos começar com um dilema? Como fazem no vosso programa. O meu é: não poder rir nunca mais na vida ou viver para todo o sempre, não com uma nêspera, mas com uma nespereira no cu.
NUNO MARKL – Espera: mas com as raízes metidas dentro? A folhagem cá fora? Isso é decisivo.

A folhagem para fora.
BRUNO NOGUEIRA – Raiz por dentro? Nunca mais rir. Escolho nunca mais rir! Porque as raízes vão a sítios que ninguém imagina.
MARKL – O não poder rir: era uma coisa biológica, ou vias uma coisa que faz rir e tinhas de [faz o som de engolir o riso]?
BRUNO – Markl, não estás a perceber: a alternativa era teres uma nespereira no cu.
NUNO – Tens razão. Eu não queria uma nespereira no cu.
BRUNO – Mas o Filipe queria.
FILIPE MELO – Estou a pensar que é possível viver sem rir. Olha o nosso Presidente da República... E se ríssemos por acidente, nascia uma nespereira? Temos unanimidade: ninguém se ria mais.
MARKL – Imagina, estás no cinema, a ver um filme que é cómico, começas-te a rir e nasce-te uma nespereira... E as pessoas: “Sai da frente!”

Cómicos, pessoas que vivem do humor, que se fizeram no humor, escolhem não rir mais? Como é que podem passar sem rir?
BRUNO – É difícil, mas a outra hipótese é viver com uma nespereira no cu. Uma nêspera, já é o que é. Ele [Filipe] é da música. Aguentava melhor do que nós.
FILIPE – Ou não.

Estamos no mês das nêsperas. As nespereiras estão carregadas. Supunham que eu ia trazer uma nêspera (ou da família da nêspera) para começar a entrevista?
MARKL – Não. Mas isto faz de ti uma séria candidata a estar no Uma Nêspera do Cu. No programa, já percebemos que sempre que uma das opções é meter alguma coisa no rabo, tentamos evitar essa.

Isso é uma piada homofóbica?
TODOS – Não!
BRUNO – Tenho muito 
MARKL – Eu, supositórios, já meti. Em que é que estão a pensar? Um supositório age mais depressa do que um comprimido (para certas coisas). FILIPE – Alka Seltzer, usas?
MARKL – Já não uso supositórios há uns 20 anos. Ou 30.

Os dilemas de que toda a gente foge e que estão relacionados com ter alguma coisa no rabo: porquê?
BRUNO – O título do programa surge de um dilema que envolvia, justamente, meter uma nêspera no cu. Há outros que envolvem inserir um pau de incenso. Nós fazemos isto em bolha. Não tínhamos noção da dimensão que ia ter. A única ideia era divertirmo-nos. Às vezes visamos pessoas, nos dilemas, com quem, depois, nos cruzamos. E é um bocadinho desagradável.

Já se cruzaram com a Júlia Pinheiro ou a Teresa Guilherme, com quem se metem num dos dilemas?
MARKL – Já me cruzei com a Teresa Guilherme. Não toquei no assunto. Fiquei com a sensação de que ela não tinha ouvido.
BRUNO – Penso que agora vai ouvir...
MARKL – É interessante ver as reacções das pessoas. O Guilherme Leite teve grande fair play. O Fernando Pereira: nós achávamos que tinha tido grande fair play.

Convém esclarecer qual era o dilema que envolvia Fernando Pereira, o imitador.
FILIPE – Esgalhar uma ao Fernando Pereira (tinhas direito a estar com um fato e uma máscara de ski). Contacto meio astronauta. Ou... Qual era a outra?
MARKL – Não sei. O Fernando Pereira escreveu um texto engraçado no Facebook, que partilhámos. Mas estive com ele no 5 para a Meia-Noite, fui agradecer-lhe o fair play que tinha tido perante o nosso dilema e ele, sempre a sorrir, disse: “Gosto muito do trabalho dos humoristas, e respeito. Vocês têm um grande poder. Entristece-me quando o usam para a estupidez.”
BRUNO– Respondeste bem.
MARKL – “Ó Fernando, a estupidez às vezes também é precisa.” Acredito mesmo nisto.

Acreditas mesmo que a estupidez também é precisa?
MARKL– Acho que sim.
FILIPE – Senão não existia o Lord of the Voices, o espectáculo [de Fernando Pereira].
MARKL– Filipe Melo o disse. Há muita gente que gosta de ouvir a Nêspera e comenta: “Aquilo é só cocó e xixi, rabo e não sei o quê. Podiam meter alguma crítica social.” O que eu respondo: “Não, não. O que é giro na Nêspera é ser infantil, estúpido, e sacar esse lado às pessoas.” Tipo ao [António] Zambujo e ao Rodrigo Guedes de Carvalho.

Como é que a Nêspera surgiu? A sementinha é qual?
FILIPE – Eu não tenho a pressão de vir do humor, não é?

És um respeitado pianista.
FILIPE – Não propriamente respeitado. Sou um pianista. Na verdade, sou um erro de casting. Mas está tudo bem. A razão pela qual estou aqui é esta: nós estivemos a fazer um espectáculo, que foi uma ideia do Bruno, chamado Deixem o Pimba em Paz. O Nuno Markl tinha no espectáculo um número de strip-tease. Vinha connosco para a estrada no papel de stripper.
MARKL – Vamos deixar isto assim, sem mais explicações.

Eu vi. E não eras o George Clooney.
MARKL – Não.
FILIPE – As nossas conversas de carrinha eram dilemas destes. Foi o Nuno Markl que disse: “Isto daria um óptimo podcast.

Explica aos infoexcluídos o que é um podcast.
BRUNO – Um podcast é uma emissão áudio de um programa que só é emitido na Internet. Descarregas e ouves na Internet.
FILIPE – Tenho a impressão de que nenhum de nós acreditava que isto dava um óptimo podcast. Estávamos cépticos.
BRUNO – O “preferias isto ou aquilo” tem décadas. É daqueles jogos que toda a gente joga. Não tem autoria, que se conheça, e ainda que alguns colegas nossos se tentem apropriar dela. Isto não tinha nada de original. E funcionava na carrinha. No nosso microcosmos. Depois o Markl insistiu e experimentámos. Correu bem. Acho que tem que ver com isso: não tem um objectivo. Não pretende salvar o mundo ou mudar o país. É desprendido de tudo.

É divertir o pagode?
BRUNO – É para nos divertir a nós, acima de tudo.
FILIPE – Sobretudo no meio em que o Bruno e o Markl se movimentam, o humor e a exposição mediática estão muito ligados a dinheiro. Nós, com este podcast, não ganhamos um tostão. Isso deu-nos uma liberdade... Eu sempre tive essa liberdade, mas eles, talvez por estarem mais ligados ao mainstream, não podem utilizar palavras ou expressões como arraial de cona. [gargalhada geral] Ou comedor de esmegma.

Onde é que foram descobrir essas expressões?
BRUNO – Foi num almoço. Isto que o Filipe disse é muito importante. Nós não temos nenhuma marca associada.
MARKL – Há uma sede de gozo.
BRUNO – É-nos cedido o estúdio muito gentilmente pela TSF. A liberdade é total porque não temos de prestar contas a ninguém.
MARKL – Houve algumas empresas que consideraram a possibilidade de patrocinar isto. E desistiram.
BRUNO – Só pelo título.
MARKL – Se algum dia tivermos um patrocínio, a nossa preocupação é pagar àquele que de nós tem mais trabalho, o João Pombeiro, que faz as animações. Dá um trabalho imenso. Há uma versão só áudio no iTunes. As animações [visíveis na versão do YouTube] deram um certo carisma aos episódios.
FILIPE – Os estudos e os interesses do João Pombeiro têm muito que ver com as artes plásticas. Embora pareçam umas animações absurdas, são feitas por uma pessoa que tem um cuidado extremo com aquilo, com o pormenor.

Não responderam: o comedor vem de onde?
BRUNO – Comedor de esmegma. Tínhamos recebido algumas queixas no Facebook por causa do tipo de linguagem que usamos. Então decidimos fazer um aviso antes do episódio seguinte a dizer que não utilizaríamos termos tais como...
MARKL – Foi uma lista! O processo de criação dessa lista foi fascinante. Enquanto almoçávamos num restaurante japonês, na Expo. 

Fino.
BRUNO – Finíssimo.
MARKL – Estamos a comer sushi e a sugerir coisas porquíssimas.

São, para reproduzir as vossas palavras, reles, doentios, e usam palavreado do feio. Usam-no normalmente?
MARKL – Sou bastante regrado a dizer palavrões. O que faz com que as pessoas fiquem muito surpreendidas. “Não sabia que o Markl dizia...” Mas eles são porcos, não é?
BRUNO – Eu uso muito. Alivia-me bastante.
MARKL – O Filipe consegue conter-se até ao momento em que diz uma caralhada desumana. Mas és um tipo pacato.
FILIPE – Na minha auto-análise, diria que digo muitos palavrões. O Bruno claramente ganha, na liberdade de utilização.
BRUNO – É muito raro usar em trabalho. Na vida pessoal, dá-me prazer.

Vamos lá ver: toda a gente (ou quase) diz palavrões? Homens e mulheres, de todas as idades, de todas as classes sociais. Temos a ideia de que há palavras que não se dizem. Ensinamos às crianças que não se dizem asneiras. Logo, palavrão é asneira.
BRUNO – Acho que toda a gente diz.
MARKL – Há sempre uma altura em que sai qualquer coisa. Nem que seja quando uma pessoa se queima numa torradeira. Uma vez disse: “Foda-se” em frente do meu filho. Logo a seguir: “Ah, atenção, isto não se diz.” Nesse mesmo dia, ele ia a deitar-se, deu uma cabeçada na cama e disse: “Foda-se.” Fez um cálculo: “Se há dor envolvida, pode-se dizer isto.”
BRUNO – O palavrão não tem de ser só associado a situações de tensão. Na alegria também deve existir o palavrão. Conheces o texto do [Miguel] Esteves Cardoso sobre os palavrões? Há palavras que ditas com o termo técnico — por exemplo, pénis — são bem mais ofensivas do que...
MARKL – Caralho.
BRUNO – Portanto, eu uso em ambiente controlado.
MARKL – Uma vez, numa estação de serviço, estavam a ouvir O Homem Que Mordeu o Cão. A rir e a dizer: “Grande cabrão.” É muito português: insultarem as pessoas que as fazem rir. Talvez porque intrinsecamente sejamos um povo que está sempre triste. Então, quando há alguém que faz piadas, diz-se: “Filho de uma grande puta.” É quase um elogio.

Do que é que se gosta? Da transgressão? De alguém dizer o que aquele que está a ouvir não ousa dizer?
BRUNO – O segredo da Nêspera é só este: é completamente livre. Sente-se, nos projectos que o Markl faz, que eu faço, que, por muito livres que sejamos, como estamos a trabalhar para um canal [de televisão] ou estação de rádio, há sempre uma barreira. Numa época em que está tudo muito formatado, em que é tudo muito previsível, o facto de se estar à beira de um abismo [é estimulante]. A mim, dá-me vontade de fazer.
MARKL – Há as pessoas que ouvem porque se riem e gostam genuinamente. Há as pessoas que ouvem para se irritarem e porque têm o lado voyeurista do: “Deixa ouvir estes gajos que dizem coisas horríveis que não podem dizer em mais lado nenhum.”

Têm programas formatados na TSF (Tubo de Ensaio) e Rádio Comercial (O Homem Que Mordeu o Cão). Estão sempre nos primeiros lugares do top dos mais ouvidos. Foram suplantados pela Nêspera.
MARKL – [com tom de locutor sensacionalista] Também no Brasil!

Já lá vamos, ao Brasil. A pergunta: temeram que os vossos formatos de sucesso, confirmados pelo público, patrocinados pelas empresas, pudessem ser beliscados por este arraial de maluqueira?
MARKL – Tu, Bruno, no Tubo de Ensaio, és mais terrorista do que eu. Eu tenho crianças a ouvir, que gostam muito do que faço. Também faço dobragens de desenhos animados [riso]. Há um lado explosivo... Pensei que se calhar ia perder trabalho. Ao mesmo tempo sentia que era uma coisa que valia a pena fazer.
FILIPE – Um episódio real: no outro dia, a minha namorada estava num bar e falavam da Nêspera na mesa do lado. Diziam que era feito pelo Bruno Nogueira, pelo Nuno Markl e por aquele gajo que ninguém sabe quem é. Isto é uma grande vantagem: não tenho absolutamente nada a perder. Os meus amigos são humoristas ou estão dedicados ao humor. O Nuno Markl vejo-o mais como o grande defensor de todos os nerds. Um dia disse-lhe, quando estava verdadeiramente alcoolizado, não ele mas eu, que me surpreendia como é que tinha ascendido a uma posição de tanta exposição e continuava a ser um verdadeiro nerd. O Bruno, sendo um humorista, sendo alguém que me faz rir imenso, mesmo quando está fora do ar — é uma pessoa que tem graça natural...
MARKL – É verdade.
FILIPE – O que quero dizer: como tenho muitos amigos dedicados ao humor, tenho pensado, temos falado sobre o limite do humor.

Qual é o seu limite?
FILIPE – O humor deixa de fazer sentido quando ofende alguém que não está a pedi-las. Ouço o Tubo de Ensaio. Vejo as coisas que o Markl mete no Facebook. É um nível de cascanço... Mas, se pensarmos bem, é sempre alguém que está a pedi-las. Nesse aspecto, o humor acaba por ser uma forma de fazer justiça. Passo o tempo a pensar nestas coisas, no limite.

É o intelectual do grupo? Também pensam nos limites do humor?
BRUNO – É o intelectual, é. Olha a barba.

Cofia o bigode, como um personagem de um romance do século XIX.
BRUNO – Põe cera.
FILIPE – Não ponho cera.
MARKL – A discussão sobre os limites do humor dá pano para mangas. Nunca se chega a uma conclusão. Se tem graça, realmente, é de fazer.
FILIPE – E quando destróis alguém que não está a pedi-las?
MARKL – Não é a minha corrente de comédia.

Mas o Bruno é o humorista que usa o bastão. Foi assim que apareceu, num espectáculo no Teatro São Luiz, de bastão. Continua a fazer um humor demolidor.
MARKL – O Bruno é um justiceiro.
BRUNO – Em relação ao Tubo de Ensaio, [que faço] com o [João] Quadros [co-autor dos textos]: muitas vezes terei errado. Muitas vezes apontei ao alvo errado. Mas o que aquelas pessoas [visadas no programa] fizeram, e que deu origem ao Tubo de Ensaio, não é menos grave do que aquilo que ali dizemos. E em 90% dos casos, são ilibadas, o caso prescreve. Não sei se passamos tanto o limite ou não. Reconheço que esticamos um bocadinho a corda. Que fazemos uma coisa arriscada. Não direi que é justiceira. Nem é esse o nosso objectivo. Mas é por sermos um país conservador que isto é visto assim. Queria dizer outra coisa sobre os limites do humor... ah... já não me lembro.

A vossa mãezinha fala-vos dos limites? Ocorreu-me a mãe do Herman José, que lhe dizia: “És um bom artista. Não havia necessidade.” A frase foi depois adaptada pelo próprio Herman no Diácono Remédios, como se sabe.
MARKL – Não, não. A minha mãe adora ouvir a Nêspera. Faz likes na Nêspera.
BRUNO – Ternurento. Os meus pais, também. O meu pai, curiosamente... Muito do meu humor vem do meu pai. Que é do Norte, de Penafiel. Em relação à Nêspera, disse: “Aquilo às vezes é um bocado forte, hã...” Uma pessoa que já me ouviu a dizer de tudo!

Dizes de tudo à frente dos teus pais?
BRUNO – Sim. Tenho imenso respeito, mas isso não interfere com a liberdade que sinto.
FILIPE – A minha mãe gosta imenso. Tenho a impressão de que a utilização da Internet para o meu pai tem mais que ver com os forwards de fraude nas bombas de gasolina.

Que é isso?
MARKL – São aqueles forwards que avisam: atenção há seringas infectadas nos bancos dos cinemas. O teu pai é um grande propagador disso. 
FILIPE – Sim, e de power points da natureza. Mas a minha mãe gosta da Nêspera. Nunca disserta muito sobre o assunto, mas sei que ouve.
MARKL – Há o orgulho das mães, nisto. 

Há mesmo? Não sentem embaraço quando vão ao café com as amigas?
MARKL – Não. Conseguimos, neste curto espaço de tempo em que durou a primeira série de Uma Nêspera no Cu, criar uma espécie de mainstream do cu. Tornou-se estranhamente aceitável e não muito censurável que três pessoas e um convidado estejam ali a expelir aquele vernáculo.
FILIPE – Não podem dizer: aquilo não tem graça. O nosso objectivo não é ter graça. Onde quero chegar: não há muito por onde atacar. Juntamo-nos para nos divertirmos, e não obrigamos ninguém a ouvir, não é?

Há uns efeitos colaterais. Os visados da Nêspera. Já falámos de alguns.
MARKL – As pessoas não levam tão a mal quanto isso. Ou então fomos nós que ainda não fomos suficientemente brutos.
BRUNO – O Ricky Gervais diz que podes fazer comédia que vem de um sítio bom ou de um sítio mau. Aqui, verdadeiramente, vem de um sítio bom. Sim, há pessoas pelas quais não nutrimos assim tanta simpatia. Mas, regra geral, já envolvi pessoas em dilemas que... Nós também nos envolvemos.
FILIPE – [Em tom de troça, para Markl] Ele é o Nilton, não é?

Nilton é apresentador, como Markl, do 5 para a Meia-Noite.
MARKL – Dizerem isso é um clássico. Nós começamos por nos sovar de uma forma agressiva uns aos outros. Sobretudo o Bruno. O Bruno é um grande bully que eu tenho. Vou para casa a pensar: “Devia ter respondido melhor. Tenho 43 anos e ele tem para aí 20.”

Tens quantos anos, afinal?
BRUNO – Tenho 33. A idade do próprio. Fazemos isso porque há confiança e amizade entre nós. Ah, já sei o que é que ia dizer em relação aos limites do humor: ninguém pergunta quais são os limites da música, os limites das novelas. Lembro-me de um primeiro episódio de uma novela da TVI. O Pedro Granger estava numa cadeira de rodas, era homossexual e morria numa explosão. Não vi ninguém dizer que aquilo era contra os homossexuais, contra os deficientes motores... Na novela, como há o rótulo da ficção, pode-se fazer tudo. No outro dia, uma mulher tentava atropelar o pai. Que é que importa? Se fazes isso no humor, acham que estás a incentivar as pessoas a atropelar, a matar homossexuais que andam em cadeiras de rodas...
MARKL – A discussão sobre os limites do humor não é muito fértil. Na cabeça das pessoas há uma associação entre comédia e maldade.

O humor já é o lugar da subversão. Tiveram necessidade de transgredir ainda mais, como se também o humor estivesse a ficar aprisionado ou formatado.
MARKL – Sim, mas isto não foi uma decisão muito cerebral. Estou num formato e muito feliz nele, mas tenho cuidado. Não há qualquer pressão por parte da Rádio Comercial, não dizem: “Não fales sobre isto, sobre aquilo.” Sou eu próprio que penso numa família que me diz: “Gostamos muito d’O Homem Que Mordeu o Cão”, e na notícia sobre uma máquina de venda automática de vibradores...

Começas a ver o teu filho do outro lado, a ouvir sobre a máquina de venda automática?
MARKL – Não sei se isto não é um macaquinho no meu sótão.

Miúdo pequeno, assistias a este palavreado? A Nêspera parece um grupo de miúdos que se diverte porque apanhou uma revista pornográfica...
BRUNO – A ideia é essa.
MARKL – Chegámos a esta idade a pensar: “Vamos lá outra vez abrir a Gina.”

A saudosa revista Gina?
MARKL – Não é saudosa porque ainda há. E continua a ser muito cara.

Bruno, pensas nas crianças a assistir? Esse é o grande travão?
BRUNO – Tenho esta vantagem em relação ao Markl. Pura e simplesmente não visualizo o lado de lá. Só tento divertir-me. Depois, como numa gelataria, há vários sabores. Não queres um, não és obrigado a comer. A Nêspera nem é um acto de rebeldia: é só um acto de liberdade. Podemos controlar do princípio ao fim aquilo que faríamos se não estivesse lá nenhum microfone.
FILIPE – É também um exercício de criatividade. Semanalmente pensamos nos dilemas. Inventámos jogos — como o famoso Azar do Caralho.

Que jogo é esse?
FILIPE – Foi um jogo inventado, mais uma vez, pela mente perversa e doente do Bruno Nogueira, quando estávamos nos camarins do Deixem o Pimba em Paz. Consiste em escolher um contacto aleatório do teu telefone. Tens de ligar a essa pessoa num prazo de 20 segundos e utilizar uma palavra dada.

Palavras inócuas, imagino.
MARKL – O grande desafio está em arranjar palavras que não sejam javardice pura.
FILIPE – Por exemplo, expectoração.
MARKL – O Bruno teve de usar “berimbau” [instrumento musical].
BRUNO – Faz-se assim: dás-me o teu telemóvel e eu faço um scroll na tua lista de contactos. Dizes stop, eu paro.
FILIPE – Caso não ligues, tens de pagar uma coima.

Eu ligo e digo simplesmente “berimbau”?
MARKL – Não, não. Tens de manter uma conversa normal.
BRUNO – Ah, vamos jogar, vá lá! Dá-nos o teu telemóvel. Anabela, Anabela.

Continuando.
MARKL – Imagina. Sai-te o Jardim Gonçalves. Tens de ligar do teu telemóvel. Ele atende: “Então, Anabela, como está?”
BRUNO – E tu: “Estou com um bocado de expectoração.”
MARKL – Disseste expectoração? Pumba, já ganhaste. Mas não podes desligar logo.
BRUNO – Nem podes ligar de novo a explicar que aquilo era um jogo. O nosso próximo passo é fazer o Azar do Caralho by night. À meia-noite, fazer o mesmo jogo. E aí pareces um psicopata ou um tarado sexual.
MARKL – Se receberes um telefonema nosso à meia-noite, já sabes.
BRUNO – A reacção é estranha. Cerca de 90% das pessoas que te calham são pessoas com quem não falas regularmente. Na tua lista tens oito ou nove pessoas com quem falas regularmente e a quem podes ligar a qualquer hora.

Qual é o número mais precioso da vossa lista de contactos? E o mais poderoso? O Cavaco?
MARKL – Não tenho telefones de ninguém superpoderoso. Não tenho mesmo. Tenho assim de algumas supervedetas. Ricardo Araújo Pereira. Bruno Nogueira.
FILIPE – Nilton. [risos]
BRUNO – O meu número mais precioso é o de casa. O mais poderoso, não sei.
MARKL – O mais poderoso? Nuno Artur Silva, que é administrador da RTP.
FILIPE – Eu tenho o número de telefone do Marante.
BRUNO – Eu tenho do Nel Monteiro. Para além do número do Marante. Anabela, queres jogar ao Azar do Caralho?

Falem-me agora da criança que foram e que apanhou umas revistas pornográficas.
MARKL – Tenho memórias vívidas de folhear a Gina, na Escola Secundária de Benfica. Havia um que comprava. Não havia Internet e íamos para umas arcadas comentar.
BRUNO – Porque é que ias com um amigo teu?
MARKL – Íamos — em grupo — para umas arcadas. Para não estarmos na escola. Folheávamos e dizíamos: “Eh, pá, olha para ela.” Virávamos a página. “Ehhh, olha o que está a acontecer aqui.”
BRUNO – Enquanto faziam isso, tinham erecções, ou não?
FILIPE – Havia esgalhanço?
MARKL – Entre amigos? Não!
FILIPE – Negas aqui e agora que houve esgalhanço colectivo? A minha mãe era presidente do conselho directivo quando tu andavas na Secundária de Benfica. Portanto isso passou-se sob o reinado dela.
BRUNO – Eu lembro-me, eu lembro-me... [riso] Não sei porque é que vou contar isto. Eu passava as férias grandes na aldeia, em Mogofores. Terra do José Cid. A malta ia para becos esgalhá-la. Um aqui, um ali. Era a mesma coisa que ir a um bairro de drogados e, em vez de se estarem a injectar, estavam a...

Quando perguntei pela criança, não pensava que íamos dar a este sítio. Vamos tentar pôr alguma ordem nisto. Vocês não perdem nada com a Nêspera, mas eu tenho muito a perder.
MARKL – Chegámos todos a um momento das nossas carreiras em que podemos fazer isto. As consequências não serão muito nefastas. Sim, vai haver alguém a dizer: “Isto não é para mim.” Senhoras. Mas isto deu-me uma certa aura punk.

A Nêspera é uma brincadeira de rapazes?
MARKL – Tivemos, entre os convidados, a Rita Blanco.

Foi a única mulher. Há esse preconceito: fica mal (e a expressão é esta) a uma mulher dizer Uma Nêspera no Cu.
FILIPE – Ainda existe?
BRUNO – Por muito que queiramos ter mais mulheres, há esse lado. A própria convidada não se sente confortável para usar determinada linguagem. Mas há sempre maneira de contornar isso. Como? Não tens de usar palavrões.
FILIPE – O conteúdo é muito infantil. Talvez por isso as pessoas achem graça e se identifiquem. E tem continuidade. Acaba o podcast e as pessoas estão no seu local de trabalho, começam a desenvolver os seus próprios dilemas. Fizemos com que todas as segundas-feiras se falasse daquilo.

O pior dilema de todos, para mim, foi o do gatinho. De um lado, havia um gatinho, ao qual tínhamos de nos afeiçoar, e por fim matar numa pedreira. Do outro, um tipo que tem a suástica desenhada na testa e que vai para a Cova da Moura.
FILIPE – Para mim, também é o pior.
MARKL – Eu sacrifiquei-me pelo gato. 

Este dilema, ao contrário de quase todos os outros, não tem palavrões, não tem que ver com sexo. É de longe o mais violento.
MARKL – É sangrento e mau. Roça o evil.
BRUNO – Gosto mais quando é um dilema elaborado e perverso. Dá-me mais quentinho aqui no estômago. Especialmente sabendo que eles adoram gatos.
MARKL – A Rita Blanco também é defensora dos animais.
BRUNO – Como eu sou. Mas a Rita tem animais. O Filipe tem dois gatos com sida.
MARKL – Têm a sida dos gatos. Mas está controlado.
BRUNO – Não passa de gato para humano. Mas neste caso passou de humano para gato. [gargalhada] Eu tenho um cão. Gosto deste tipo de dilema. Os palavrões: só se servirem um propósito.
MARKL – Quando vamos para a badalhoquice, a ideia é que, mesmo na badalhoquice, haja alguma imaginação.
 

Para não ser, simplesmente, um arraial de palavrões.
MARKL – Sim. O Carlos Vaz Marques propôs duas opções. O efeito era o mesmo: em ambas acabávamos a levar no cu. A grande escolha era entre um humano e uma máquina sofisticada. Este dilema podia ser só porco, e contado de forma resumida as pessoas ficam a pensar: “O Carlos Vaz Marques? Enlouqueceu. Um jornalista respeitado.” Mas teve tanta graça. É poética a maneira como descreve a máquina, o funcionamento. A imaginação... Isto faz da Nêspera uma jam session de disparate puro. 

Há uma certa recorrência nesse tema...
MARKL – Por mais que se diga, acho que o cu é uma parte muito engraçada do corpo humano.
BRUNO – [Em tom filosófico] Penso que sim. Se isto for uma psicanálise, somos capazes de descobrir coisas interessantíssimas. O título já puxa a dilemas que vão para esse lado.

De onde vem o título?
MARKL – “Brainstormamos” muito por SMS. Lembro-me de chegar um SMS do Bruno que propunha: “E se fosse Uma Nêspera no Cu?”
FILIPE – A produtora do espectáculo Deixem o Pimba em Paz estava a tentar arranjar algum tipo de apoio para esta ideia. Ao Bruno, dava-lhe gozo especial pensar que ela ia a uma reunião e que tinha de dizer que o título era Uma Nêspera no Cu.

Porquê nêspera?
BRUNO – Porque gosto da palavra.

Sabem como se diz nêspera no Porto? Magnório.
BRUNO – Um magnório no cu!
MARKL – Podíamos fazer a versão nortenha disto só com convidados do Porto. Não sei explicar, mas é mais engraçado chamar-se assim, e não Um Ananás no Cu ou mesmo Um Pêssego no Cu.

Fizeram oito programas, após o que interromperam para pensar o futuro do programa (escreveram isto no Facebook). Estes programas foram ouvidos por quantas pessoas?
BRUNO – Um milhão e duzentas mil. Não estávamos à espera. Na verdade, estávamos à espera de deitar isto cá para fora. O caroço.
MARKL – Estar em primeiro lugar no iTunes do Brasil é bizarro.
BRUNO – Agora não sei se estamos. Mas estivemos. Alguém falou disto. De repente, no Twitter comecei a ter uma série de seguidores brasileiros. Aos milhares por dia. Até que percebi que um tipo...
MARKL – “Anticast”.
BRUNO – ... que tem um podcast no Brasil (que está sempre no top), partilhou.
FILIPE – Os brasileiros acham graça ao sotaque.

Já que falámos em Brasil, trago a Porta dos Fundos, cujo projecto começou por só existir na Net. Há algumas semelhanças. É por não terem nenhum patrocínio, é por não estarem ligados a uma rádio ou televisão que podem fazer tudo o que quiserem. Sem compromisso. Inspirou-vos?
BRUNO – Neste caso específico, não. Até porque a ideia inicial era ser só um podcast. Em qualquer caso, é incrível o poder que a Internet tem. Trata-se sempre de liberdade. Trata-se de saber, enquanto espectador, que aqueles artistas não estão condicionados.
MARKL – A Nêspera representa a ideia de estarmos numa plataforma em que vale tudo. Se há sítio onde se pode experimentar e ter liberdade absoluta é o podcast. É quase como as rádios piratas nos anos 80.
FILIPE – Verdade, boa comparação.
MARKL – Eu estive numa rádio pirata nos anos 80.
BRUNO – Com amigos?
MARKL – Sim, fazíamos masturbação colectiva. [riso]

Quando é que volta a Nêspera?
BRUNO – Em Setembro. Se calhar vamos profissionalizar um bocadinho a coisa.
FILIPE – E o espectáculo ao vivo? É um plano que temos.
MARKL – O ideal seria reiniciar isto com um espectáculo ao vivo. Uma coisa bonita, com quarteto de cordas. O Filipe tem bons contactos ao nível do quarteto de cordas.

E terminarmos com um dilema? Saído agora.
BRUNO – Eh, pá.
MARKL – Não consigo. Demoro muito tempo a pensar. [Alguma conversa fiada pelo meio]
FILIPE – Já tenho um bom. Vocês são pais. A primeira opção: estão a fazer amor com a Alcione...
MARKL – Onde é que ele vai buscar a Alcione?
FILIPE – Ela abre os vossos braços, uma cena dominatrix, e vomita-vos em cima. A outra opção: vão ter de deixar durante dois dias os vossos filhos ao cuidado da Alcione.
MARKL – Mas estamos com a Alcione todos os dias?
FILIPE – Um dia, só. Mas vomita-vos na boca.
MARKL – Na boca? Há bocado não disseste que era na boca.
BRUNO – Na boca? Isto é uma entrevista! Eu escolho a primeira. Nunca deixaria a minha filha com a Alcione.
MARKL – Eu também.

Amor de pai.
MARKL – Tens de ter algum heroísmo pelos teus filhos.
FILIPE – Fui muito hardcore?
 

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João Pombeiro aceitou fazer para a Revista 2 as ilustrações dos Nêspera. São dele as animações no programa online (visíveis em YouTube)
Há as pessoas que ouvem porque se riem e gostam genuinamente. Há as pessoas que ouvem para se irritarem e porque têm o lado voyeurista do: “Deixa ouvir estes gajos que dizem coisas horríveis que não podem dizer em mais lado nenhum.”
Nuno Markl
Sobretudo no meio em que o Bruno e o Markl se movimentam, o humor e a exposição mediática estão muito ligados a dinheiro. Com este podcast, não ganhamos um tostão. Isso deu-nos uma liberdade...
Filipe Melo
Muito do meu humor vem do meu pai. Que é do Norte, de Penafiel. Em relação à Nêspera, disse: “Aquilo às vezes é um bocado forte, hã...” Uma pessoa que já me ouviu a dizer de tudo!
Bruno Nogueira
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