Na terra da poesia

Este 50 Poemas (Relógio d''Água, 2012) é o primeiro livro de poemas de Tomas Tranströmer a ser editado em Portugal, apesar de alguns dos seus textos se encontrarem já traduzidos para o português e incluídos em obras colectivas e, principalmente, apesar de este autor pertencer um grupo cada vez mais restrito, do qual fazem parte também John Ashbery, Adonis ou Tadeusz Rózewicz: o dos grandes poetas do século XX ainda vivos.

Nascido uma década mais tarde que o poeta polaco, em 1931, Tranströmer estudou psicologia e, no início da sua carreira, trabalhou em Linköping, num instituto para delinquentes juvenis, detalhe biográfico com enormes consequências na sua obra poética. Estreou-se em 1954 com 17 dikter e, desde então, publicou mais de uma dezena de livros de poesia e já recebeu diversos prémios por todo o mundo, incluindo o Nobel de 2011, o qual, ao que parece, finalmente ajudou os editores portugueses a decidirem publicar a obra deste poeta em português. É, ainda assim, com enorme entusiasmo que os leitores, em especial os de poesia, devem receber este recente livro da Relógio d''Água.

Procurando sintetizar as qualidades de Tomas Tranströmer, o poeta sírio Adonis - um eterno candidato ao Nobel- escreveu na introdução à tradução de um livro do autor sueco que a obra deste se encontra profundamente enraizada na terra da poesia. A crítica tem preferido colar, com argumentos nem sempre convincentes e com algum facilitismo, a sua poesia à sua terra natal, a Suécia. Não é que isto não seja, em parte, verdade, como destaca Alexandre Pastor na sua nota introdutória a esta tradução ao dizer que Tranströmer “é um mestre incansável ao descrever-nos a Natureza, mormente a Nórdica, e não há outro que se lhe compare quanto à acuidade com que a observa e nos descreve as estações do ano” (p. 8). Poemas como Casas Suecas em Sítios Ermos, onde o poeta fala dos “Verões com chuva linhosa” (p. 41), ou como Uma Noite de Inverno, em que “A tempestade tem mãos e asas infantis. A caravana vai em direcção à Lapónia./ E a casa conhece bem a constelação de pregos/ que mantém as suas paredes juntas.” (p. 99), são disso mesmo prova.

Contudo, muito mais do que um poeta da paisagem nórdica, muito mais do que a escrita de um romântico paisagista tardio, há algo na obra de Tranströmer que lhe dá uma dimensão poética absolutamente alheia a qualquer circunstancialismo geográfico e que permite ao leitor compreender o lugar em que a linguagem deste poeta se coloca, ainda que nunca tenha ouvido sequer falar da Suécia, ainda que esta Suécia nem sequer existisse e fosse apenas uma ficção do autor. Esse lugar é, primeiro que tudo, o da transformação, aconteça esta no clima [“Quando para de chover, a árvore também para.

E vislumbra em frente, quieta em noites de luar,/ à espera, como nós, do instante/ em que flocos de neve decorem o céu.” (p. 95)] ou no corpo [“Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta/ e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida,/ e a vida continua. O fato, porém, esse/ é cosido em silêncio.” (p. 17)]. Não se trata, contudo, de uma transformação vista em grande escala ou perspectivada. Mesmo quando o tema é a morte “que aumenta a luz que emana da terra” (p. 39), um dos mais frequentes na poesia de Tranströmer, a transformação é quase sempre vista de perto, no instante em que a mudança acontece. Talvez por isso, os contrastes entre a luz e a escuridão, o ruído e o silêncio ou a calma e a tempestade surjam ao longo de grande parte destes 50 Poemas.

Contrastante também, em quase toda a poesia de Tomas Tranströmer, é a sobriedade e secura do seu estilo, quando comparado com o poderio imagético da sua poesia. Numa primeira camada, a poesia deste autor encontra-se pejada de estímulos sensoriais, numa tentativa de comunicação do que é sentir nesta sua vertente mais imediata, a da experiência: “Num compartimento fumegante, um vulcão, de pé, frita dois peixes segundo uma antiga receita do Atlântico: pequenas explosões de alho, azeite que ensopa rodelas de tomate.” (p. 15). De seguida, parte para a interrogação metafísica, para uma meditação que utiliza a itinerância sensorial como ponte não propriamente para realidade, entendida não propriamente enquanto aquilo que se perda efemeridade da experiência, mas sim enquanto condição permanente e intemporal do homem: “Cada garfada diz-nos que o oceano nos quer bem, é um canto a meia-voz vindo do profundo.” (idem) ou “Escuto o horizonte. Os mortos querem dizer algo. Fumam mas não comem, não respiram embora lhes reste a voz.” (p. 73).

Esta é, como não poderia deixar de ser e como intuiu o poeta Adonis, a terra da poesia, onde será sempre o mesmo aquilo que aconteceu e aquilo que acontecerá “enquanto a natureza do homem continuar a ser a mesma”, nas palavras de Tucídides na sua História da Guerra do Peloponeso. A alusão ao historiador clássico não é inocente. O desejo que impulsiona grande parte da poesia de Tomas Tranströmer é o mesmo que o de Tucídides ao escrever a sua grande obra como um legado para sempre. Nesta medida, não pode o leitor estranhar que aquilo que mais imediatamente escapa à realidade, o passado e o sonho, surjam na poesia de Tranströmer muitas vezes em comunicação directa ou, até, em fusão com o presente.

Contudo, há que referir que o investimento do poeta sueco na musicalidade dos seus versos, tantas vezes destacado pelos críticos e leitores da sua obra, se perde em grande parte na passagem para o nosso idioma. Isto impede, infelizmente, o leitor português de disfrutar plenamente da poesia deste grande autor.

Quem tem acompanhado as traduções de poesia publicadas nesta editora sabe que o seu catálogo, para além de vasto, conta já com diversos livros de autores laureados com o Prémio Nobel da Literatura, como é o caso, entre outros, de W. B. Yeats (que o ganhou em 1923), de T. S. Eliot (1948) ou de Wislawa Szymborska (1996). Não pode deixar de causar algum espanto que, com este catálogo, seja Tomas Tranströmer o primeiro poeta a ver o seu Prémio Nobel de 2011 cristalizado na capa desta primeira edição dos seus poemas em português, entre parenteses e por baixo do seu nome. Isto não é, contudo, apenas uma pequena cedência da editora a uma estratégia comercial, a qual não pode, verdadeiramente, ser censurada. A necessidade que os editores sentiram de destacar o Prémio Nobel na capa diz muito sobre a pouca exigência dos leitores em Portugal - não só os de poesia -, aparentemente mais receptivos a estas formas de fazer incidir luz sobre um livro e mais preocupados em pautar as suas escolhas pelos critérios de uma academia escandinava. Talvez não seja descabido dizermos que, de certa forma, nos assemelhamos todos aos jornalistas que ano após ano esperavam pelo anúncio do Prémio Nobel da Literatura nas escadas do apartamento de Tomas Tranströmer, honrosa distinção que teimava em escapar ao grande poeta sueco. Felizmente para esses jornalistas, um dia o prémio chegou e tiveram a oportunidade de tirar a sua foto e de relatar, in loco, o acontecimento. Felizmente para nós, um dia o prémio chegou e finalmente tivemos a oportunidade de ler em português um conjunto significativo de poemas de um autor, os quais já eram - e serão sempre - maiores que todos os prémios que ele recebeu. Mas não deixa de ser verdade que, antes, quase ninguém o procurava e, mesmo com o Nobel cristalizado na capa, talvez continuem a não o fazer.

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