Morreu Fernando Alvim, o músico que ajudava os outros a brilhar

O violista, que acompanhou durante mais de 25 anos Carlos Paredes, tinha 80 anos.

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Nos últimos anos voltou a falar-se muito dele, especialmente depois de em 2011 ter sido lançado o duplo CD O Fado e as Canções do Alvim Gonçalo Santos

O músico que Amália Rodrigues convidou, em 1969, para gravar o tema Formiga bossa nossa, de Alexandre O'Neil e Alain Oulman, encontrava-se hospitalizado.

Nos últimos anos voltou a falar-se muito dele, especialmente depois de em 2011 ter sido lançado o duplo CD O Fado e as Canções do Alvim, constituído exclusivamente por composições suas interpretadas, entre outros, por Camané, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, Cristina Branco, Rui Veloso, Fafá de Belém, Vitorino e Carlos do Carmo.

Fernando Alvim acompanhou e gravou, ao longo dos anos, com António Chainho, Pedro Jóia, Mísia, Adriano Correia de Oliveira, Filipa Pais, Isabel de Noronha, Vicente da Câmara, José Afonso ou Manuel Freire (é dele a guitarra que se ouve em Pedra filosofal), entre muitos outros.

Há três anos recebeu a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores, que referiu na ocasião que era uma "forma de reconhecimento pelo trabalho de décadas ao serviço da dignificação da música portuguesa".

Durante mais de 50 anos o músico ajudou a que outros brilhassem. No meio da música era, aliás, conhecido como “o sombra”, pelo facto de acompanhar discretamente grandes vultos da música portuguesa, com destaque para Carlos Paredes. Em 2011 dizia ao PÚBLICO, em entrevista: "Nunca fui muito pretensioso, procurei sempre um certo recato, acompanhar sem grandes malabarismos.”

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Fernando Alvim em 2005 no Palácio Fronteira Gonçalo Santos

Fernando Gui San Payo de Sousa Alvim nasceu em Cascais, a 6 de Novembro de 1934. A mãe tocava piano e habituou-o, desde pequeno, a assistir a concertos, enquanto o pai queria que seguisse um curso superior.

Iniciou-se na música através do violoncelo e, já na  juventude, dedicou-se ao estudo de guitarra clássica na Escola de Guitarra do Prof. Duarte Costa em Lisboa, tendo posteriormente frequentado no Conservatório Nacional cursos de Guitarra Clássica. Aos 21 anos inicia a carreira, tocando como acompanhante em casas de fado amador.

Embora seja uma referência dentro da linha instrumental do fado, o seu interesse estende-se a outros géneros como o jazz e a bossa nova. Ainda jovem torna-se frequentador do Hot Club e divulgador, em primeira mão, da bossa nova através do programa Nova Onda emitido quinzenalmente na Emissora Nacional na década de 1960.

Em 1959 inicia então a parceria com Carlos Paredes, com quem pisou palcos em todo o mundo e com quem gravou discos, participando em todo o trabalho criativo, colaborando na criação de harmonias e acompanhamentos rítmicos.

No acompanhamento a Carlos Paredes contabilizam-se também inúmeras participações no teatro e cinema, com destaque para as obras teatrais Bodas de Sangue e A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca, e, sob a direcção do realizador Paulo Rocha, os filmes Os Verdes Anos (1962) e Mudar de Vida (1966), entre outros.

Ao longo desses anos, desenvolveu outras actividades. Tocou com músicos do Hot Club, fez parte do grupo de músicos do popular programa televisivo Zip-Zip, fundou o Conjunto de Guitarras de Fernando Alvim (1969), com Pedro Caldeira Cabral, António Luís Gomes e Edmundo Silva, e gravou um disco com João Maria Tudela.

Vivia para iluminar a música dos outros – particularmente a de Carlos Paredes. Em quase toda a discografia de Paredes, aliás, quando lhe ouvimos o génio a espraiar-se pelas cordas da guitarra portuguesa, é quase sempre a viola de Fernando Alvim que lhe dá o chão. E lhe adivinha os caminhos.

“Ele não tocava todos os dias da mesma maneira, mas a partir de certa altura comecei a não ter dificuldade em adivinhar a respiração dele”, contou ao PÚBLICO em 2011. E essa, sempre discreta, foi uma das suas mais notáveis qualidades: a de intuir e amparar Paredes, antecipar as fugas e as variações para onde as mãos do guitarrista eram chamadas no momento da execução, em palco ou em estúdio, quando trocava as voltas àquilo que estava previamente ensaiado.

“A maneira de tocar, os acordes, mudava tudo”, comentou o histórico engenheiro de som da Valentim de Carvalho Hugo Ribeiro no livro Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa, acrescentando que “o Paredes entusiasmava-se e o Alvim era genial a adivinhar aquilo que ele fazia”.

A capacidade de reagir na hora e de não deixar que a guitarra de Paredes avançasse solitária por fraseados virtuosísticos provinha, na verdade, de uma largueza de linguagens que Fernando Alvim sempre dominou na perfeição e que eram de rara conjugação.

Foi isso que encantou Carlos Paredes, quando, em 1960, ouviu o músico actuar no programa Nova Onda da Emissora Nacional e se surpreendeu com a facilidade com que saltava entre registos de fado, bossa nova, jazz e canção ligeira, abordando todos com uma inequívoca autoridade e um conhecimento profundo de cada género (quando, anos depois, Paredes foi chamado a gravar com o contrabaixista de jazz Charlie Haden, Alvim, que fora frequentador do Hot Clube de Portugal, seria, mais uma vez, o acompanhador inevitável).

Pouco depois, já Paredes lhe telefonava a desafiá-lo para juntos acompanharem ao vivo a exibição do documentário sobre filigrana Rendas de Metais Preciosos, de Cândido Costa Pinto, no Cinema Império.

Seguiu-se aquilo que se sabe: álbuns que farão sempre parte da História maior da música portuguesa. É dele o espantoso acompanhamento que se ouve nos discos Guitarra Portuguesa, Movimento Perpétuo, Concerto em Frankfurt, Espelho de Sons, Na Corrente e Asas sobre o Mundo, de Paredes, habitualmente nascido de longas conversas telefónicas com o guitarrista. Mas a sua marca encontra-se igualmente em álbuns de Pedro Caldeira Cabral, António Chainho, Janita Salomé e até mais espantosamente nalguns temas de aproximação fadista na discografia do grupo folk-pop Sitiados.

Deixou escassa obra em nome próprio. Na década de 1970, o seu Conjunto de Guitarras de Fernando Alvim registou dois EP e um álbum, mas só a edição de Os Fados e as Canções do Alvim, lançado em 2011, revelou a excelência da sua composição plasmada em 35 autorias. Um dos guitarristas chamado a participar no disco seria Ricardo Parreira, que em 2007 assinara a sua própria homenagem ao violista com o álbum Nas Veias de Uma Guitarra – Tributo a Fernando Alvim. Mais recentemente, em 2013, também a jornalista Margarida Mercês de Mello deixaria o registo da sua admiração pelo músico com a autoria do documentário para a RTP Azul Alvim.

Talvez a postura discreta de Fernando Alvim seja especialmente bem exemplificada no episódio, em 1964, em que no regresso de uma actuação em Grândola, no banco de trás de um carro em que seguia também Carlos Paredes, assistiu a José Afonso a trautear pela primeira vez uma melodia que se havia de chamar Grândola, Vila Morena.

Em muitos momentos definidores da música portuguesa, Fernando Alvim esteve lá com uma mestria ímpar, sem buscar o protagonismo e sem reclamar uma atenção amplamente merecida. Mas já era altura de todos o sabermos e não deixarmos o seu nome na sombra.

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