Interessa-me aproximar-me de uma raiz mitológica da adolescência
Este é o território de João Salaviza: a adolescência, as assombrações que não se conseguem nomear, o desejo, a morte. E em Montanha, estreia na longa-metragem do realizador de 31 anos, tudo isso está próximo de uma raiz mitologica.
Montanha, primeira longa-metragem de João Salaviza, retoma com outro fôlego vários elementos que já conhecíamos das suas curtas-metragens, Arena (2009, Palma de Ouro em Cannes) ou Rafa (2012, Urso de Ouro em Berlim): o olhar sobre a adolescência, mas também a sua articulação com o espaço urbano, com a descoberta da cidade, num confronto entre a imanência daquelas presenças - as humanas, como os miúdos ou a personagem da mãe - e as assombrações que naquela idade ainda não se conseguem nomear - a morte, as primeiras manifestações do desejo.
É um filme construído num balanço entre um máximo de preparação e premeditação e uma abertura ao improviso, ao acidente, à energia que nasce durante a rodagem. Durante a conversa que mantivemos com ele, Salaviza, mesmo não se declarando um "cinéfilo", trouxe diversas vezes outros filmes e outros realizadores ao contexto - como se para ele fosse dentro do cinema que se pode encontrar o que se deve fazer e o que não se deve fazer, e uma aprendizagem de realizador seja também uma aprendizagem de espectador. O que é algo que está em Montanha: na maneira como o filme "vê" e como "ouve", é obra de um realizador interessado em explorar o encontro entre o aparato do cinema e uma determinada realidade, dada ou construída. À despedida, quando o entrevistador lhe dizia esperar pelo menos não o ter obrigado a repetir as mesmas coisas das várias entrevistas que já deu, replicou: "O que eu já não suporto são perguntas sobre prémios, 'qual a sensação de ganhar um prémio em Berlim ou em Cannes, isso só é importante por causa deste sistema em que trabalhamos, mas não é para isso que faço filmes".
Até que ponto é que as suas curtas-metragens foram conscientemente um ensaio, um laboratório, para a primeira longa? Talvez não seja verdade para Arena nem para Cerro Negro (2012), mas Rafa tinha uma respiração de longa-metragem, podia ser uma sequência extraída a um filme que não existiu.
Houve qualquer coisa que mudou a partir do Rafa, de facto. Nos meus primeiros filmes penso que essencialmente explorei um prazer, muito lúdico, de fazer cinema. São filmes em que eu estava a descobrir a prática do cinema e são muito marcados por essa descoberta. Num certo sentido, são muito mais filmes sobre as minhas ideias de cinema do que sobre outra coisa qualquer. A partir do Rafa comecei, de modo muito consciente, a procurar outra coisa.
O que Montanha tem em comum com Rafa é centrar-se numa relação com a cidade, de modo que quase se diria sensual ou sensorial: os sons, as vistas, os ambientes.
Aproximei-me duma noção mais precisa daquilo que realmente me interessava fazer e explorar, e foi muito clara a vontade de me concentrar nisso. Há um filme do Abbas Kiarostami que é muito importante para mim - aliás o Kiarostami para mim é uma referência máxima. É o Mossafer [um filme de 1974 conhecido em português pelo título O Viajante], onde todo o contexto narrativo não é mais do que um pretexto para o filme se construir em torno da relação entre um miudo e a cidade. No Rafa já foi disto que me aproximei, mesmo em termos de construção do filme, que passa muito pela relação entre o Rafa ele mesmo, ou o actor que o interpreta, e os cenários da cidade, e isto tem precedência sobre a narrativa. Aliás, percebi que era possível fazer isto com muito poucos elementos narrativos, que podia despir o filme de muita ganga narrativa sem que esta situação essencial perdesse força.
E depois há o tema da adolescência, ou do fim da adolescência e da passagem à idade adulta, que até é um tema clássico das primeiras obras do cinema português...
Pois, Os Verdes Anos [1963], O Sangue [1989]...
E mais ainda, por exemplo, Joaquim Pinto, Joaquim Sapinho, Vítor Gonçalves...
O [Miguel] Gomes... Mas não sei se isto é uma coisa exclusiva do cinema português, se calhar há algo de natural no acto de fundar os primeiros filmes numa despedida da infância ou da adolescência...
Com certeza que não é, mas digamos que é um tema que tem uma incidência extraordinária quando vemos as primeiras obras do cinema português... No seu caso, é importante a autobiografia? Há elementos autobiográficos?
No sentido em que não me interessa reproduzir factos da adolescência, ou a da minha adolescência, não. Mas claro que me interessa aproximar-me de uma raiz mitológica da adolescência.
O momento em que sai de casa sozinho, por exemplo. Todos os seus filmes partem deste princípio: há alguém que está em casa...
...e depois sai. Sim, é verdade, costumo filmar pessoas que saem do seu habitat, no momento em que o fazem. Mas interessa-me construir esse movimento, integrá-lo e encontrá-lo dentro duma estrutura de cinema, não fazer só uma reportagem, andar atrás de alguém com uma câmara ao ombro. Não procuro factos da minha adolescência, mas procuro reencontrar sensações da adolescência. Eu cresci na Avenida de Roma, num prédio habitado essencialmente por militares. Era o único miudo no prédio, e naquele bairro não havia muito mais gente da minha idade. O bairro parecia-me tão vazio como o resto da cidade me aparecia como alguma coisa perigosa e nova, entusiasmante. Havia aquilo que eu sentia como uma espécie de opressão da arquitectura sobre um corpo que ainda era frágil, e esta era uma das sensações que me interessava procurar.
Pensa muito na questão do ponto de vista? Em Montanha o olhar nunca se plasma, nunca é "o ponto de vista do adolescente", mas também não se coloca numa exterioridade absoluta.
Preocupa-me encontrar a distância certa. Que acho que não pode ser nem demasiado perto nem demasiado longe. Em termos etários, estas personagens estão a meio caminho de mim. Têm quinze anos, eu tenho trinta. Acho que é um momento certo, justo, para as filmar, e para as compreender sem lhes impôr uma perspectiva artificial. Detestaria que me acontecesse o que aconteceu ao Larry Clark. Quando vejo o Kids noto um olhar que ainda é justo sobre os adolescentes. Mas desde então parece-me que esse olhar foi sendo substituido por outra coisa, que se tornou mais a projecção duma ideia dele, mais ou menos romantizada, sobre a adolescência, sobre o que os adolescentes são. Eu penso que, nesta idade, ainda estou próximo o suficiente para captar a adolescência como um processo de transformação e não como algo estático. Quando andava na escola de cinema havia uma tendência a que eu chamava "os filmes do avozinho". As pessoas faziam o curso e depois iam fazer um filme sobre o avô. Nunca quis e nunca farei.
Porque precisa de outro tipo de fricção, de atrito?
Preciso que aquilo que filmo ofereça alguma resistência. Neste caso, no Montanha, o miúdo [David Mourato] nunca se deixava apanhar. E eu não queria aquele falso naturalismo que se vê por exemplo n' A Vida de Adèle (2013), do Kechiche, de que não gostei nada. Corta a espontaneidade toda. Por exemplo aquela cena de sexo é horrível, é falsa, parece só a materialização duma fantasia masculina, ver duas miudas na cama. A minha preocupação era encontrar a espontaneidade dentro duma estrutura definida.
É tudo muito preparado?
Muito preparado. Há uma capa ficcional trabalhada de modo relativamente clássico, que é importante para evitar cair numa simplificação extrema. Mas por baixo dessa capa há uma quantidade de energia e de tensão que tem que ser aproveitada. Havia uma tensão enorme durante a rodagem, também nas relações entre os actores, por exemplo, e o filme devia conservar, e acho que conservou, alguns ecos disso.
O tema da morte, com o avô moribundo no hospital, parece surgir sobretudo como uma espécie de mola para uma tranformação interior, o primeiro passo para a entrada na idade adulta.
Acho que não preciso, nenhum de nós precisa, de psicanálise para encontrar um momento decisivo na adolescência que marque uma passagem a partir da qual as coisas deixaram de ser como eram. Um momento em que se dá uma explosão qualquer. Quando se é muito novo pensa-se na morte como uma coisa abstracta, mas chega a altura em que se adquire uma consciência da mortalidade e a morte deixa de ser uma abstracção. Isso muda muita coisa. Claro que depois isso não gera sempre o mesmo efeito, há muitas reacções possíveis, pode ser a clausura, pode ser a violência.
Há pouco usou a palavra "clássico"...
..lembro-me de uma coisa em o Vítor Gonçalves insistia muito nas aulas na escola de cinema e que na altura talvez nenhum de nós percebesse bem, se calhar porque, de maneira até um bocadinho parva, não tínhamos muita paciência para os clássicos. Ele insistia muito na ideia de que, para perceber o que era a intensidade dramática, a maneira de a construir e de a trabalhar, estudar os clássicos era fundamental.
E hoje, sente-se mais próximo de quê? Dos clássicos ou dos modernos?
A minha tendência tem sido ir para trás, cada vez mais para trás. Em direcção aos clássicos. Nunca fui bem um cinéfilo, ou pelo menos nunca fui um rato de Cinemateca. Mas quando vejo filmes do Nicholas Ray, ou do Robert Bresson, ou do Elia Kazan... vi há pouco o Wild River [Quando o Rio se Enfurece, de 1960] que é prodigioso, percebe-se que é fundamental ter uma relação com o cinema, uma consciência do que já foi feito. Ou cai-se num virtuosismo oco, em filmes sem ponto de vista. E sobretudo aprende-se a não ter medo da mise en scène.
A mise en scène, que é esse conceito que a geração dos anos 50 franceses elevou ao máximo estatuto. E que era tudo, não era só o trabalho específico com a posição da câmara e os movimentos dos actores. O Truffaut dizia que mesmo a escolha dos actores, o casting, já era mise en scène. Identifica-se com esta ideia de totalidade?
Plenamente, sim. Gosto de pensar no cinema como craft, como uma coisa que se fabrica, que se constroi, que produz objectos. Os clássicos tinham esta noção de modo perfeito. Estive a ler aquele livro do Nicholas Ray, I Was Interrupted, que reune textos e conversas daquele período final em que esteve a dar aulas, e fez aquele filme [We Can't Go Home Again, 1973] com os estudantes. E uma coisa que impressiona é ele falar dos filmes como se fosse objectos feitos à mão, assim como um sapateiro falaria dos sapatos que faz.
E no Ray também há, como persistência temática, a questão da adolescência ou do fim dela...
Isto dito assim pode parecer risível, mas eu acho que no David há qualquer coisa de James Dean, acho que pertencem à mesma classe de presenças. Que eu definiria como actores que dizem sempre a verdade mesmo quando estão a mentir. Que há sempre qualquer de real, de verdadeiro, de genuíno, que transmitem mesmo numa situação de pura representação, de pura mentira.
Puxou muito por ele durante a rodagem?
De certa maneira os limites foram estabelecidos por ele, era ele que impunha, ou sugeria, até onde se podia ir. Mas precisava muito de ser dirigido. Eu falo muito durante cada take...
...ah, como se fazia no tempo do mudo...
Sim, limpar a minha voz na pós-produção do som depois é uma das tarefas principais. Mas assim ajuda a que cada plano tenha uma vida própria e se decida conforme o que está a acontecer nele. E sobretudo na relação com os actores. Há aquela cena em que ele está deitado e tem que se levantar, mas estava estafado e deixou-se ficar deitado mais tempo do que eu estava à espera, e então gritei-lhe "levanta-te quando quiseres".
O trabalho sobre o tempo interno de cada plano é bastante singular.
Eu acredito em cenas e em planos que "ressuscitam". Parece que estão a esmorecer, que não vai acontecer nada, e então passa-se qualquer coisa que volta a arrebitar. Gosto de trabalhar isto, gosto de parêntesis dentro dos filmes, gosto de cenas que contêm outras cenas dentro delas.
O som em Montanha, aquele rumor da cidade, também é um som cheio de mise en scène...
O som é fundamental, até porque eu não sei usar música, não ponho música nos filmes a não ser que seja música diegética, nem sou muito melómano.
Mas é um som muito "construído", é daqueles cineastas que tira e acrescenta e não se limita ao som registado durante a rodagem de cada plano?
Eu não acho que o som directo seja necessariamente mais verdadeiro. Trabalhei com o tipo que faz as misturas de som para os filme do Garrel e perguntei-lhe por uma coisa que me intrigou muito no último filme dele, La Jalousie (Ciúme), de que gostei muito. Aquele momento em que, sem nenhuma relação directa com a acção ou com a narrativa, a banda de som é tomada pelo barulho de uma ambulância que passa na rua. E ele respondeu-me que com o Garrel "o que lá está é o que fica". Eu não sou assim, não me importo de tirar coisas que lá estavam e acrescentar outras que não estavam. Nas cenas dentro de casa ouve-se frequentemente o som de cães a latir lá fora. Esses cães não estavam necessariamente lá.
E como é que lida com os acidentes? Há uma bela fórmula do Jean-Claude Biette que divide os cineastas em dois grupos. Os que gritam "corta" se uma borboleta entrar inesperadamente dentro do enquadramento e os que continuam a filmar. Em qual dos dois grupos se incluiria?
No segundo, claramente. Eu quero é que apareçam mil borboletas... O Arena está cheio de acidentes desses - a velhota que aparece no fim da cena com a bicicleta e fica a olhar, por exemplo. E no fim aquela pomba que levanta voo. É curioso que eu tinha pensado usar muitas pombas, tinha tudo acertado com uma sociedade columbófila e pensava num plano cheio de pombas. Depois achei de mais e no entanto, inesperadamente, ficou uma pomba. Muito melhor do que eu imaginava. Temos que resistir à tentação de pôr muito "sal e pimenta" nos filmes. A maior parte das vezes, se estivermos atentos e disponíveis, aparece exactamente aquilo que é preciso.