Já tocou em orquestras e com várias referências do rock (Arcade Fire, Kurt Wile, Sharon Van Etten, Jarvis Cocker, Thurston Moore ou Steve Gunn) mas do que a americana Mary Lattimore gosta mesmo é de improvisar com a sua harpa. “Gosto de me surpreender e de espantar as pessoas, pondo a harpa em contextos inesperados e improvisando com ela”, diz-nos. Este sábado, na Sé de Viseu, no contexto do evento Jardins Efémeros, que acontece de 1 a 10 de Julho, vai ser possível vê-la.

Nas duas últimas edições do acontecimento, naquele espaço, apresentaram-se o alemão Nils Frahm e o ucraniano Lubomyr Melnyr para duas sessões encantatórias ao piano. Não custa acreditar que a americana poderá produzir o mesmo efeito. Curiosamente o seu primeiro instrumento foi o piano, mas será com a harpa que tentará conquistar quem se dispuser a ouvi-la.

Tem dois álbuns a solo – o último At The Dam acabado de lançar na editora Ghostly Internacional, mais conhecida pelas electrónicas de Matthew Dear ou Gold Panda – e um registo em colaboração com o guitarrista Jeff Zeigler, intitulado Slant Of Light (2014), com quem também musicou o filme mudo Le Revelateur (1968) do francês Phillipe Garrel. Isto para além de compor também para cinema ou documentários como Marina Abramovic: The Artist is Present, ou para eventos especiais como aconteceu no centenário da Estação Central de Nova Iorque com Nick Cave.

“Colaborar com outras pessoas é uma forma de as conhecer mais profundamente o que me agrada sobremaneira. A maior parte dessas colaborações e projectos aconteceram a partir de relações de amizade, por isso é uma forma de continuar a falar com os meus amigos e de vislumbrar como trabalham musicalmente.”

Na maneira como comunica percebe-se que os afectos são essenciais. É a partir deles que tudo se processa. “Tenho amigos muito generosos”, diz, rindo-se. O facto de não ter barreiras musicais também a ajudou a enquadrar a harpa nas mais diversas situações.  “Sempre ouvi muitos diferentes tipos de música”, afirma ela, adiantando que também trabalhou em lojas de discos e foi DJ em estações de rádio, tendo acesso às mais diversas sonoridades. “Por isso queria que o meu instrumento preferido se ajustasse à música que gostava de ouvir. Foi um desafio compor a partir da harpa para se adaptar à vibração de algumas canções.”

Fez o conservatório, estudou música clássica, mas sempre se sentiu próxima do rock. Há uns anos conheceu membros dos Arcade Fire que a desafiaram a tocar com eles. Foi a primeira vez que tocou com uma banda rock. “A mãe de Will e Win Butler é uma conhecida harpista e foi ela que compôs para o álbum Funeral”, diz. “Estar com eles em palco foi muito gratificante.”

Quem também toca profissionalmente harpa é a sua mãe o que teve um grande impacto nela. “Cresci no meio de harpas, com a minha mãe a tocar em orquestras e a dar aulas lá em casa a miúdos da minha idade. Talvez por isso, por resistência, aos 11 anos, quando comecei não tivesse gostado muito. Mas a minha mãe foi insistindo comigo e agora a harpa é como uma irmã.”

Quando lhe perguntamos que harpistas a inspiram evoca de imediato o nome de Alice Coltrane – “as suas composições espirituais são excepcionais”, afirma – mas não fica por aí. “Zeena Parkins é especial, em particular ao vivo. Há um grande harpista de jazz em Nova Iorque chamado Brandee Younger. A minha amiga Shelley Burgon é uma brilhante artista sonora e compositora, o mesmo acontecendo com Rhodrie Davies. A Carol Robbins é outra excelente harpista de jazz de Los Angeles. A Joanna Newsom tem feito coisas maravilhosas pela harpa e é talentosa. Enfim, há muita gente por aí a fazer coisas interessantes com este antigo instrumento de tantas possibilidades. Continuo a pensar sem dúvida que é possível experimentar a partir dele.”

De tal forma assim pensa que, há dois anos, quando recebeu uma importante bolsa para artistas residentes em Filadélfia, resolveu de imediato que o dinheiro recebido iria ser canalizado para um projecto do qual haveria de resultar um disco. Foi esse o embrião de At The Dam, uma colecção de temas improvisados, que decorreram de gravações efectuadas em várias locais. “Queria criar qualquer coisa de especial que traduzisse um período da minha vida e resolvi viajar. Comecei pela quinta dos meus pais, na Carolina do Norte, e fui parando em Nova Orleães, Marfa, Texas, Austin, Phoenix, Arizona, Joshua Tree, Califórnia e, finalmente, Los Angeles. Acabei por gravar em Marfa, Joshua Tree e L.A.”

Os temas instrumentais do disco acabam por funcionar como “impressões de lugares” que “captam um momento particular”, afirma ela, acrescentando que tudo nasceu a partir da improvisação. “O improviso é o primeiro passo para a composição. Quando componho para um disco ou um projecto de filme, é a partir daí que tudo nasce. Sou muito intuitiva. Se algo me agrada acabo por ajustá-lo na parte mais sólida da canção. Aos temas incluídos nesse disco foram tocados uma ou duas vezes e depois editados. São como canções para mim porque foram polidos, mas acima de tudo são impressões sonoras da viagem.”

O tema de abertura Otis walks into the woods centra o ambiente, uma meditação matinal circular com a harpa, e efeitos digitais, como interlocutores, camadas de sons repetindo-se gentilmente perdendo-se na paisagem. São temas instrumentais com qualquer coisa de nostálgico, que parecem captar momentos liminares, notas mínimas que se vão adicionando e dando origem a uma imensa tranquilidade ao nível da pele, das texturas, das emoções.

São temas que evocam isolamento, embora ela diga que “a harpa é uma companheira para toda a vida”, quase como se estivesse a falar de um familiar. “A experiência de viajar, praticar e tocar pode ser solitária” diz, o mesmo acontecendo quando se apresenta só em palco, que é para ela uma experiência relativamente recente e algo que nem sempre a deixa à vontade. “Já tive medo de tocar sozinha, mas agora não. É uma situação de grande vulnerabilidade transferir as emoções para a música em frente de toda a gente, mas o que daí advêm é também enriquecedor.”

Dos relatos dos seus espectáculos ao vivo fica a ideia que será uma comunicadora capaz de tocar as audiências com palavras, mas ela ri-se da alusão. “Nem pensar! Não sou muito articulada a falar por isso é agradável poder comunicar de uma forma elegante sem palavras através da música”, diz, concluindo: “do que gosto mesmo é do silêncio e de uma audiência disponível para poder partilhar comigo momentos quietos. Faz-nos sentir humanos.”