Luz por fim no lado escuro dos Pink Floyd

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Os Pink Floyd eram perfeccionistas áudio: o tipo de banda em que o trabalho de estúdio é colossal JILL FURMANOVSKY

Nick Mason, o baterista dos Pink Floyd e curador da memória da banda, parece surpreendido. A pergunta era simples. Porquê agora esta épica colecção de reedições que põe a nu, como nunca antes, uma das mais populares bandas da história? Expliquemo-nos. A próxima segunda-feira, 26 de Setembro, marcará o início do maior mergulho de sempre nos arquivos dos Pink Floyd. Serão reeditados com nova remasterização todos os álbuns, que poderão ser adquiridos em separado ou numa caixa ("Discovery). Nesse mesmo dia, chegam também às lojas as edições "Experience" e "Immersion" de "Dark Side Of The Moon". A primeira, além do álbum remasterizado, inclui um CD com "Live At Wembley 1974"; a segunda, a que fará salivar os fãs mais empenhados, acrescenta um terceiro CD com uma mistura de teste realizada por Alan Parsons, mais versões alternativas em estúdio e em concerto, dois Blu-Ray com uma mistura quadrifónica de Alan Parsons e outra "surround" de James Guthrie, as imagens projectadas durante a digressão e, calma que ainda não acabou, "memorabilia" incluindo berlindes, cachecóis, livro de fotos e novos trabalhos de arte gráfica de Storm Thorgerson, autor das mais icónicas capas dos Pink Floyd.

A operação só terminará a 27 de Fevereiro de 2012, quando "The Wall" for disponibilizado com o mesmo tratamento "deluxe". Antes, a 7 de Novembro, "Wish You Were Here" passará pela mesma operação; nessa data, será também lançada uma compilação de carreira em CD único.

Num contexto em que as reedições definitivas são a norma, forma de uma indústria discográfica em crise rentabilizar os seus catálogos mais valiosos, uma operação como esta - título genérico "Why Pink Floyd?" - não seria, à primeira vista, nada de extraordinário. Acontece que falamos dos Pink Floyd. E os Pink Floyd sempre foram muito ciosos da sua obra gravada. Os álbuns que editaram eram o manifesto pretendido num determinado momento histórico e os Floyd não queriam nada a desviar a atenção do discurso laboriosamente montado. Logo, o que ficou guardado no estúdio e nos arquivos não era coisa que desejassem exposta - conta-se pelos dedos das mãos o material inédito, exterior aos álbuns oficiais, que disponibilizaram desde "Pipper At The Gates of Dawn", o primeiro álbum, de 1967.

Daí a questão, a primeira, a inevitável, lançada a Nick Mason num encontro com a imprensa em Junho. "Porquê pôr tudo isto cá fora agora?" O baterista, homem de humor tipicamente britânico, guardião empenhado do legado da banda - guarda tudo num escritório em Londres, incluindo a escultura que fez para a capa da compilação "Relics" (1971) -, é pragmático na resposta. "Why Pink Floyd?" é agora porque esta é a última oportunidade de "o fazer em formato físico": "Daqui a um par de anos faremos ‘download' de tudo e o vinil e o CD serão dirigidos a alvos muito específicos". Mas não é só isso.

Mason concede que, há 15 anos, uma proposta destas esbarraria na recusa da banda. Agora isso mudou. Não é que os Pink Floyd estejam menos protectores da sua obra - o projecto "Household Objects", música gravada sem instrumentos musicais, pensado e depois abandonado como sucessor de "Dark Side Of The Moon", não merece mais do que um par de faixas, aquelas que não os envergonham demasiado. Mas a banda, que, depois da morte de Syd Barrett em 2006 e de Richard Wright em 2008, é hoje representada por Roger Waters, David Gilmour e Nick Mason, percebeu que o seu estatuto não sairá beliscado da operação. Pelo contrário, ela servirá para reforçar o mito. "Havia necessidade de mostrar como desenvolvíamos uma ideia desde a sua forma original até à versão acabada", confessa Mason perante a plateia de jornalistas europeus. Chegou a essa conclusão em casa. "Ao ouvir os meus velhos discos de jazz, percebi que detestava os ‘best of' e que adorava as colecções completas da Verve, com os ‘sets' de Charlie Parker com quatro versões do ‘Now's the time', algumas muito curtas porque eram simplesmente falsos arranques."

Reunião só para Mandela

No estúdio 3 de Abbey Road, exactamente no mesmo local onde os Pink Floyd gravaram seis dos seus álbuns - um pouco mais abaixo, no estúdio 2, o dos Beatles, os Floyd registaram "Wish You Were Here" -, Nick Mason recordará o impacto da primeira entrada no edifício mítico ("Uau! Abbey Road...") e dirá que se recusa a acreditar que os Pink Floyd morreram "até receber o relatório do médico legista". Ao mesmo tempo, afastará qualquer hipótese de uma verdadeira reunião dos três sobreviventes da banda.

Meses antes, Mason fizera uma aparição-surpresa com David Gilmour e Roger Waters no concerto em que o baixista apresentou "The Wall" em Londres, corolário da digressão que passou em Março pelo Pavilhão Atlântico. Reunião dos Pink Floyd? Não mais do que em acontecimentos fugazes como aquele. Concerto a sério? Só muito excepcionalmente. "Precisaríamos de alguém como Nelson Mandela", declarou Mason à "Uncut". "E se fosse para algo como a paz no Médio Oriente, julgo que todos se sentiriam obrigados [a participar]", acrescentou.

Mesmo no final da entrevista, perguntamos o que sobreviverá dos Pink Floyd, o que ficará como marca da sua música e dos gestos ambiciosos, questionadores de coisas como "que raio fazemos neste mundo?", que inscreveram nos seus álbuns. Nick Mason responde à Nick Mason: "É muito gratificante sentir que nossa música é levada a sério, porque passei a minha vida a fazer isto - quer dizer, entre corridas de carros, andar em helicópteros, divertir-me por aí e beber demasiado, mas foram 40 anos. Se será lembrada daqui a 200? Podemos até ser esquecidos dentro de 15". A verdade é que quando afirma que os Pink Floyd só se reunirão se Nelson Mandela os chamar ou se forem necessários à paz no Médio Oriente, é óbvio que a banda se coloca no panteão dos grandes do seu tempo. Nesse sentido, "Why Pink Floyd?" será uma operação comercial de sucesso garantido, mas também, para a banda, o início da entronização definitiva: a revelação da obra completa, bastidores incluídos, que faz incidir nova luz sobre o reverenciado trabalho de uma vida. Mesmo que não esteja ao alcance de todos - a versão "Immersion" de "Dark Side Of The Moon", por exemplo, custará 125 euros.

Os tesouros do arquivo

A experiência impressiona sempre. Na mesa de controlo do estúdio 3 de Abbey Road, vemos e ouvimos excertos do material que começará a chegar às lojas na segunda-feira. Estamos imersos nos Pink Floyd mais ambiciosos: o "Dark Side Of The Moon" (1973) que os elevou de banda destacada do psicadelismo e do progressivo a banda mais popular do seu tempo, o "Wish You Were Here" (1975) que lhe deu continuidade sem quebrar o encantamento, e o "The Wall" (1979) que representa o auge da megalomania conceptual de Roger Waters, um dos maiores sucessos comerciais da pop e o ocaso da banda, minada por divergências entre os seus membros.

Eis então o que vemos. O vídeo que anunciava a entrada da banda em palco na digressão de "Dark Side...": longo "travelling" em corredor de hospital ao som de "Speak to me", entrada na sala de operações - "I've been mad for fucking years" -, o grande plano de uma pupila a recordar-nos a "Laranja Mecânica" de Stanley Kubrick, as linhas de pulsação em colorido arco-íris que desenharão uma das capa mais icónicas da pop. Eram os Pink Floyd a concretizar aquilo que já ambicionava Syd Barrett: fazer de um concerto uma experiência multimedia total.

Essa componente visual será um dos grandes motivos de curiosidade das edições, mesmo se algum material, como a animação de Gerald Scarfe para os concertos de "Wish You Were Here", com vaginas monstruosas e corpos de areia esvoaçando em tempestade, surja tremendamente datada. Musicalmente, as verdadeiras surpresas encontram-se nos extras incluídos nas edições "Immersion", e são muitos. Os de "The Wall" (1980), por exemplo, dariam para montar três versões do disco. "É uma peça tão narrativa que a dado ponto estava montada, mas não necessariamente acabada", explica Andy Jackson, engenheiro de som dos Pink Floyd há três décadas, que acompanha Mason na entrevista.

Todos conhecem "Another brick in the wall" e o seu ritmo disco-sound de quem não liga peva ao disco-sound. Pois bem, esse foi o ponto de chegada. Inicialmente, a canção era uma guitarra acústica dedilhada num ambiente de folk apocalíptica - ouvimos Waters a praguejar com o público: "we don't need your adulation / we don't need your stary gaze".

O próprio Mason, mergulhado no trabalho de passar em revista 100 caixas de fita - "um quarto cheio" -, deu por si a surpreender-se. Quando ouviu a versão embrionária de "Another brick in the wall", ou quando reencontrou a de "Wish you were here" com o violinista Stephane Grapelli, questionou-se. "Porque não utilizámos isto?" Para concretizar a visão definida para cada um dos álbuns, havia que deitar por terra momentos interessantes em favor da coerência estética. Agora, ei-los que se reerguem, disponíveis para os fãs com poder de compra. Nick Mason é o primeiro a reconhecê-lo. "Há muito material que atrairá novos fãs, mas não lhes sugeriria que começassem pelas cinco versões de ‘Dark Side...'. Estas edições deviam ter um autocolante a avisar ‘não compre a menos que tenha altifalantes na sala que só possam ser erguidos por dois homens'". Os Pink Floyd, perfeccionistas áudio - basta ouvir uma edição original de "Dark Side Of The Moon" para o comprovar -, sabem que houve dezenas de técnicos a trabalhar anos em prol do melhor som possível e, como tal, sentem-se algo angustiados ao imaginarem as suas obras passeando de iPod roufenho em iPod roufenho. Dito isto, Mason é magnânime: "Cada um ouvirá música como quiser. Se houver procura suficiente, podemos produzir edições em 78 rotações".

A caixa de Pandora

Em 1966, os Pink Floyd entraram pela primeira vez em Abbey Road. Eram os reis do psicadelismo da "swinging London", músicos de 20 e poucos anos liderados por um génio, Syd Barrett, que desapareceria precocemente. Quando ali entraram, tinham por perto engenheiros de som brilhantes, técnicos muito austeros de bata castanha que não os deixavam tocar em material nenhum - e eles, curiosos e experimentalistas, bem gostariam de lhe pôr a mão em cima -, os Beatles, a banda das bandas, a gravar na sala ao lado "Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band". Seis anos depois, tudo se transformara. Os Beatles já não existiam, Barrett, substituído por David Gilmour, era um fantasma que tanto os assombrava como inspirava, e Abbey Road estava por conta deles para experimentarem tudo o que quisessem. Começavam a preparar "Dark Side Of The Moon" e estavam a caminho de ser lendários.

Em 2011, o legado ressurge, expandido: "Dark Side...", "Wish You Were Here" e "The Wall", escolhidos não por serem os mais eloquentes, mas por serem "os mais populares", deixarão de encerrar segredos. Tudo o que arquivistas e caçadores de "bootlegs" tinham para descobrir estará agora disponível. Quanto ao futuro... "Se o público gostar, podemos fazer o mesmo com o ‘Pipper At The Gates Of Dawn' e o ‘Saucerful Of Secrets', e também com ‘A Momentary Lapse Of Reason' e ‘The Division Bell'", dizia Nick Mason em Junho. Na "Uncut", o baterista apontava para o Verão de 2012 a edição "Immersion" dos dois primeiros álbuns.

Os Pink Floyd podem não ter qualquer futuro para construir, mas o passado continua a encerrar coisas por revelar. Depois de décadas de resistência, entregaram-nos as portas do cofre. "Why Pink Floyd?" Resposta mais lá para a frente. Isto, senhoras e senhores, é só o início de uma velha história.

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