Luísa Dacosta (1927-2015): “Nunca fiz uma coisa que eu não quisesse”
Professora do ensino público entre 1968 e 1997, no Porto. Luísa Dacosta assinou muitos livros para crianças e adultos e recebeu, entre outros, o Prémio Vergílio Ferreira. Será cremada nesta terça-feira às 10h, em Matosinhos
Também ali nos fez saber, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, sem cerimónias: “Sempre fui uma lutadora e nunca fiz uma coisa que eu não quisesse. Nunca quis estar sujeita a muitas coisas.”
Se não tivesse sido professora e escritora, o que seria?, perguntámos na altura, numa conversa não antes publicada: “Eu queria ser bailarina de pontas. Mas não podia ser, porque na minha terra, Vila Real de Trás-os-Montes, não havia bailado.” E lamentou, com humor e exibindo as pernas com naturalidade: “Foi pena, porque eu tenho uns pés óptimos.” Seguiu-se uma gargalhada sonora e genuína.
A prosa poética e o amor pelas histórias vieram da mãe: “Era professora primária e contava muito bem histórias de raiz popular. Mas também histórias de fadas. Eu adorava.”
Aos nove anos, ficou marcada, na escola, pelo conto A Menina dos Fósforos, de Hans Christian Andersen. “Foi um choque. É a história de uma morte. Uma criança que morre. E era um livro para crianças. Não era fantasia, era verdade. Esse livro influenciou-me muito”, contou.
Luísa Dacosta nasceu em Vila Real e publicou o primeiro livro em 1955, um conjunto de contos sob o título Província, para adultos. Mas a sua vida profissional foi sobretudo preenchida com a actividade docente, de que não abdicou mesmo quando que lhe foi vaticinada 100% de incapacidade por doença oncológica.
“Disseram-me: ‘Agora, nunca mais vai dar aulas.’” Respondeu: “Amanhã, vou para a escola e vou dar aulas, sim.” Não soube precisar ao PÚBLICO que idade tinha na altura: “Para aí quarenta e tal.” Leccionou durante mais 20 anos: “Dei aulas até depois dos 60. Pedi ao ministro, não queria deixar os alunos a meio do ano.”
Para José António Gomes, professor na Escola Superior de Educação do Porto e com tese de doutoramento sobre Luísa Dacosta (Espelhos e Sombras – Representação do Eu em Luísa Dacosta), a autora “é escritora de uma minoria de leitores na obra para adultos”. O mesmo não acontecendo nas camadas mais jovens: “Continua a ser lida e explorada pelos professores e alunos de Português do ensino básico.”
Transformar o coração do leitor
O seu traço principal, segundo o académico e também escritor, “era o de achar que o texto literário era indispensável na expressão das emoções”. Por isso valorizava “o poder da linguagem literária na transformação do coração do leitor, quando lhe falava nas alegrias e dores humanas”.
Ao PÚBLICO, a autora disse: “Eu tratei a relação humana. Os Sonhos na Palma da Mão são sobre a relação de alguém consigo próprio, se não tivermos uma boa relação connosco, não temos com os outros. Depois, a relação da amizade e a relação do amor. São muito diferentes: hoje é diferentíssimo de antes. As pessoas precisam de estar muito juntas para poderem comunicar a nível profundo. As pessoas hoje estão muito distanciadas. Uma trabalha aqui, outra ali. Deixou de haver as horas das refeições.”
Recordou ainda o tempo em que não havia rádio nem televisão. “Quando começou a rádio, ouvia-se muito a guerra de Espanha e aquelas coisas. A vida era muito diferente e as pessoas estavam muito mais próximas.”
Sempre divertida, contou o pior que lhe aconteceu na vida: “Foi a inspectora dizer-me que o director-geral me queria em Lisboa porque eu me atrevi a dar, na experiência de Veiga Simão, O Doido e a Morte, de Raul Brandão (1923), com merda e tudo.” Mas logo explicou que “Roberto Carneiro, um homem muito inteligente, intercedeu” e lá conseguiu ficar onde estava. “Não fui para Lisboa.”
“Especuladores ortográficos”
A irreverência manteve-se e até se acentuou quando o assunto foi o acordo ortográfico: “O que eles fizeram é uma peste. São parvos, não sabem a língua.” Chamou aos seus mentores “especuladores ortográficos”. E disse: “Eu agora já não escrevo, quando começarem essas coisas, já não estou cá.”
Incomoda-a pensar que, mais tarde, lhe vão adaptar os textos segundo o acordo?, perguntámos. “É mau porque se perde muita coisa. A nossa língua não é nada lógica. É uma língua muito afectiva. Nós somos a única língua do mundo, penso eu, pelo menos da Europa em que o ‘eu’ pode meter o ‘tu’ e fechar-se sobre eles. Quando eu digo ‘eu amar-te-ei’, tem o ‘amar’, o ‘tu’ e fecha com o ‘ei’. Isto é uma coisa que só a língua portuguesa faz.”
Mais: “Somos a língua onde o tempo corre mais devagar. Porque os outros só têm presente, passado e futuro. Nós temos presente, passado, mais-que-perfeito, imperfeito… e além disso posso dizer: ‘Quando eu for grande, sou médico.’ Dá o presente e dá o futuro. Somos uma língua riquíssima para dar emoções e paixões.”
Para Luísa Dacosta, a leitura era importante porque, com ela, “a pessoa não só reconhece as suas próprias emoções através de outro, como cresce, por isso mesmo”. Também acreditava que, “com um livro, ganha-se uma riqueza de vida e de experiência que não teríamos de outra forma”.
O que deixou por fazer?, foi a nossa última pergunta: “Na vida, deixam-se sempre algumas coisas por fazer. Mas não me arrependo do que fiz. Dei o máximo que tinha. Dei aos alunos a noção da literatura portuguesa e do seu valor. Deixei quatro antologias de autores portugueses, brasileiros, cabo-verdianos, Camões... Todos com introdução.” E ainda teve tempo para nos dizer: “Não consigo imaginar a minha vida sem livros.”