Linguagem e teologia
Os ensaios de Walter Benjamin sobre a linguagem, a tradução e a crítica, reunidos neste volume, ocupam uma posição central no edifício conceptual e no percurso do filósofo
É o quinto volume das Obras Escolhidas de Walter Benjamin e tem um título descritivo: Linguagem / Tradução / Literatura (Filosofia, Teoria e Crítica). Para este volume, o responsável pela edição e tradutor, João Barrento, seleccionou os textos mais importantes do filósofo alemão sobre filosofia da linguagem, tradução e teoria e crítica literárias. Dois ensaios fundamentais — duas estações obrigatórias no percurso benjaminiano — constituem o centro nervoso, digamos assim, desta selecção: Sobre a Linguagem em Geral e Sobre a Linguagem Humana (1916) e A Tarefa do Tradutor (1923). É neles que nos vamos aqui deter, deixando no entanto um aviso necessário: o volume compreende muitos mais textos, entre os quais os que tratam de crítica literária.
Walter Benjamin considerava-se, em primeiro lugar, como o comprovam alguns escritos autobiográficos, um “filósofo da linguagem”. É a partir desse texto de 1916, projectado e prolongado no ensaio sobre a tradução, que se pode compreender todo o seu pensamento, já que aí se operam as escolhas filosófico-conceptuais que determinam o conjunto da sua obra. Este “primeiro” Benjamin, da filosofia da linguagem, impregnado de concepções teológicas, parece mais esotérico do que um “segundo” Benjamin, onde a teologia deu lugar a um muito idiossincrático “materialismo dialéctico”. Mas sem essa primeira produção não é possível compreender o Benjamin dos anos 30, geralmente considerado mais político e sociológico. É a partir da sua filosofia da linguagem que podemos compreender os seus textos sobre arte e sobre a filosofia da História (Giorgio Agamben mostrou de maneira magistral como se dava em Benjamin a coincidência de categorias linguísticas e categorias históricas), de tal modo que as teses Sobre o Conceito de História e todos os materiais preparatórios para a escrita desse seu último texto retomam os seus escritos de juventude e, muito especialmente, aqueles sobre a linguagem. Para uma reconstituição da estrutura do edifício benjaminiano, é preciso ter em conta um texto que não aparece neste volume (os critérios temáticos justificam essa ausência), escrito em 1917, portanto quase contemporâneo daquele sobre “a linguagem em geral”, intitulado Sobre o Programa da Filosofia Que Vem, onde Benjamin formulou o projecto paradoxal de um pensamento fundado numa concepção mística da linguagem (como aquela que ele tinha desenvolvido no ensaio sobre a linguagem, do ano anterior) que, no entanto, estabelecia uma relação com o sistema kantiano.
Benjamin desenvolve uma concepção “mágica” e não instrumental da linguagem — contra uma “concepção burguesa da linguagem” — que exclui a função de comunicação. É preciso compreender, antes de mais, que a linguagem, tal como Benjamin a entende, não é uma particularidade do homem. Tudo é linguagem e a criação divina actualiza-se na acção linguística do homem, na função de nomeação. Por conseguinte, nesse ensaio de 1916 Benjamin transpõe a sua filosofia da linguagem para o horizonte da exegese bíblica, o que o leva a definir uma “linguagem dos nomes”, ou uma “pura língua”. Essa linguagem dos nomes, adâmica, liberta dos constrangimentos da comunicação, não conhece “nenhum meio, nenhum objecto, nenhum destinatário”. O nome, “a mais íntima essência da linguagem”, é o elemento através do qual a linguagem se comunica a si mesma e, perfeitamente transparente para si mesma, comunica a pura e simples comunicabilidade. Estamos aqui bem no centro desse “elemento incomunicativo” que Adorno identificou nos primeiros escritos de Benjamin. E estamos longe de uma linguística científica que, ao mesmo tempo, estava a ser elaborada por Saussure.
Numa nota preparatória das suas teses Sobre o Conceito de História, Benjamin escreveu que a única história universal é a humanidade redimida e que ela pressupõe uma língua universal que põe fim à confusão babélica. A forma desta língua da humanidade redimida, à qual Benjamin chega através de uma descrição teológica, em que o ser e o saber supremo se unem, constitui o modelo teológico da sua teoria da tradução. No seu ensaio sobre A Tarefa do Tradutor, Benjamin define a tradução como “uma forma”. O que é que isto significa? Significa que ele considera a tradução como uma dimensão que atinge a essência da obra. Como forma, a tradução tem uma autonomia e essa autonomia que funda o ser da tradução só pode ser apreendida numa relação específica com o original que Benjamin explica nestes termos: o original é já em si um “ser-a-traduzir”, define-se por uma tradutibilidade. A tarefa do tradutor consiste então em fazer despertar o eco desse original. Mas esse eco não é a restituição do conteúdo do original, de que o tradutor deve, pelo contrário, abdicar. E eis como Benjamin chega a uma concepção não comunicacional da tradução e à sua condição de “forma”. Começa assim o ensaio: “Em caso algum a preocupação com o destinatário se revela fecunda para o conhecimento de uma obra de arte ou de uma forma artística. E é assim não apenas porque toda a relação com um público determinado ou com os seus representantes corresponde a um desvio, mas também porque até o conceito de destinatário ‘ideal’ é nefasto em toda a reflexão mo âmbito da teoria da arte [...]. De facto, nenhum poema se destina ao leitor, nenhum quadro ao observador, nenhuma sinfonia aos ouvintes.” E, a seguir, Benjamin pergunta: o que diz uma obra literária? O que é que ela comunica? E a sua resposta é: muito pouco a quem a compreende, porque o que ela tem de essencial não é a comunicação, não é a mensagem. Daí que uma tradução que procure transmitir o que a obra “comunica”, a sua mensagem, seja sempre uma má tradução. Má tradução, diz Benjamin, é aquela que quer conformar-se ao sentido do original.
A pura língua que se esconde nas nuances mais subtis de toda a tradução torna-se então, na medida em que se subtrai a toda a tarefa cognitiva, a língua da verdade, da qual se alimenta a nostalgia do filósofo. Mas Benjamin também coloca em paralelo a poesia e a tradução, remetendo para o momento paradigmático da “reflexão” romântica, para a concepção da “poesia da poesia”. Mas, ao contrário do poeta, o tradutor não tem uma musa de invocação: não há uma musa da tradução, diz Benjamin, tal como não há uma musa da filosofia.