Lady Juliet, uma aristocrata inglesa
A herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam estudou arte por causa da avó Maud, cria cavalos e é uma das maiores fortunas do Reino Unido. Mas não herdou os “diamantes pretos” que corriam debaixo da grande casa de campo, uma das melhores de Inglaterra e que trouxe riqueza mas também luta de classes
O encontro com lady Juliet está marcado para uma manhã fria de Dezembro. A casa, num bairro popular de Lisboa, tem dois pisos e duas varandas — de uma delas avista-se o Tejo, quando não está nevoeiro, como hoje, e da outra o Castelo.
O apartamento onde lady Juliet passa temporadas em Lisboa é do marido, o historiador de Arquitectura Christopher Tadgell, que queria uma casa junto ao mar mas cosmopolita, num lugar onde pudesse ir à ópera de noite e à praia de manhã. “Queria que fosse no Sul da Europa, mas não podia ser em Itália, porque em Itália há muita coisa para ver e não podemos ficar só num sítio. Lisboa é perfeita.”
A decoração do piso de baixo, que manteve o traçado quase original da casa, é tipicamente inglesa — elegância sóbria, com muitas peças em madeira. No piso de cima está o grande tapete déco com motivos de chinoiserie e as peças de mobiliário que o historiador comprou em Malaca, quando lá viveu. São antiguidades, são imponentes, são negras, vermelhas e rendilhadas. “E ficam muito melhor aqui, nestas paredes brancas e neste ambiente moderno, do que no apartamento que eu tinha em Londres”, diz Tadgell.
Faz sentido que se comece pela casa onde lady Juliet vive quando está em Lisboa porque o motivo da conversa é outra casa. Uma “casa de campo”, que é como os ingleses chamam aos solares da aristocracia, só que neste caso a definição também não revela a verdade. Wentworth Woodhouse, a casa de família de lady Ann Juliet Dorothea Maud Tadgell (Wentworth-Fitzwilliam de nascimento), é um palácio. É uma das maiores “casas de campo” do Reino Unido, com mais de 300 quartos e mil janelas. Agora está moribunda, corre o risco de morrer.
A queda de Wentworth Woodhouse está bem datada no tempo. Como explicou o historiador e crítico de Arquitectura Giles Worsley no texto “England’s great forgotten palace” (The Telegraph, 1998), a casa foi o símbolo de uma luta de classes travada no fim da II Guerra Mundial, quando “a outra metade” exigiu que fosse a sua vez, arrancando os alicerces que sustentavam a velha ordem e a sua arcaica estrutura social.
Mas quando a casa nasceu, esclarece Worsley, que era aristocrata de nascimento, foi para se tornar “o epítome da ascensão Whig ao poder, no século XVIII”.
A casa foi construída por Thomas Wentworth, que viria a tornar-se marquês de Rockingham. Demorou mais de 15 anos a ser erguida com o objectivo de representar o poder económico, social e político desta família do partido liberal (Whig), uma das duas formações que dominaram a política britânica até à I Guerra Mundial e que desapareceria com a II (os liberais-democratas reivindicam a sua herança ideológica).
Era a partir dali — explicava Worsley — que a família dominava o Yorkshire e foi a partir dali que desempenhou um papel-chave na política nacional, papel esse que teve o seu ponto alto quando o segundo marquês de Rockingham, Charles Watson-Wentworth, chegou a primeiro-ministro, por duas vezes, em 1765 e 1782.
O esplendor exterior desta casa que tem a maior fachada do Reino Unido, 180 metros de uma ponta à outra, tinha paralelo no seu interior. O mobiliário foi feito à medida para cada uma das salas, as salas foram feitas à medida de cada função — uma delas toda em mármore, de cima a baixo — e para forrar tantas paredes uma colecção de arte que ainda é uma das mais importantes entre todas as colecções privadas do Reino Unido — foi por causa dela que lady Juliet, a quem as obras pertencem hoje, veio a Lisboa; Wentworth-Fitzwilliam: Uma Colecção Inglesa, pode ser vista na Fundação Gulbenkian até 28 de Março.
A casa, escreveu outro reconhecido historiador de Arquitectura, Marcus Binney, era “inquestionavelmente a melhor casa georgiana de Inglaterra”. Dezenas de criados mantinham a máquina interior a funcionar, outras dezenas mantinham o parque e os jardins exteriores.
“Três proprietários Whig desenvolveram a propriedade criando um modelo económico integrado, com quintas, minas, fundições, uma fábrica de porcelana. No século XVIII, a propriedade era uma zona agrícola e industrial muito desenvolvida, além de a casa representar o que de melhor a aristocracia produziu através do mecenato artístico”, escreveu Giles Worsley.
No século XVIII, um fabuloso golpe de sorte aumentou exponencialmente a fortuna da família. A revolução industrial avançava movida a carvão e, debaixo das vastas terras dos Wentworth-Fitzwilliam, estava umas das maiores reservas do país.
O crescimento da casa e da família pareciam imparáveis. As festas sucediam-se, juntando os políticos mais influentes, a aristocracia mais importante, os convidados mais apetecíveis. Um visitante do século XIX, o barão Von Liebig, químico alemão que escreveu numa memória a grandeza de todo este cenário, conta que se lembrou de espalhar migalhas de bolacha no chão para conseguir encontrar o caminho de volta ao seu quarto, depois de a noite acabar. Por causa dele e da sua ideia, a cada convidado passou a ser dado uma taça de prata com confetti coloridos para não se perderem nos oito quilómetros de corredores do casarão; os 400 criados “de dentro” que a casa tinha na época, segundo a revista Tatler, tratavam da limpar rapidamente os papelinhos.
Lady Juliet, que tem 80 anos, viveu na casa. “Quando o meu pai, que era do Exército, esteve na II Guerra, eu fiquei lá com a minha avó.” Diz que tem poucas memórias sobre o funcionamento de uma casa tão complexa. Era muito pequena, explica, “tinha nove ou dez anos”. A avó de lady Juliet, Maud, é a senhora de vestido azul na exposição na Gulbenkian, retratada por Philip de Laszlo. “A minha avó gostava muito de arte e ensinou-me muito”, diz a herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam, que estudou arte e cria cavalos.
Lady Juliet não se importa de responder a perguntas sobre a família. Mas é parca nas respostas. O século XX, aquele que testemunhou, não foi bom para os Wentworth-Fitzwilliam, e a segunda visita real à família em 200 anos (a primeira foi em 1789) foi eco desses tempos conturbados.
Em 1912, Jorge V e a rainha Mary ficaram na casa e 76 quartos foram atribuídos ao séquito real. A visita durou quatro dias. Os mineiros fizeram um desfile nocturno com as tochas acesas, houve um programa musical e fogo-de-artifício. No pórtico barroco da casa, o rei fez um pequeno discurso para as 25 mil pessoas que o foram ver.
Ninguém sabia, mas o desastre aproximava-se dos Wentworth-Fitzwilliam, escreve Catherine Baileu no livro Black diamonds — the dawnfall of an aristocratic dynasty and the fifty years that changed England.
A visita real, habitualmente expressão da amizade especial entre a monarquia e a família visitada, foi motivada desta vez pela agitação social que começava a abalar o Reino Unido. O establishment estava nervoso. Nesse ano, realizara-se a primeira greve de mineiros, que exigiam salários mínimos e melhores condições de trabalho. A greve afectou a indústria, os transportes, originou atrasos no abastecimento de bens e escassez dos mesmos em algumas zonas.
A visita aos Fitzwilliams foi, para Jorge V, uma bem planeada operação de marketing, produzindo fotografias, publicadas em todos os jornais, do rei a visitar as minas e ao lado dos mineiros. Até a rainha foi fotografada em cima de um trolley de transporte de carvão.
O rei escolheu um lugar amigável. Lady Juliet recorda que o seu avô, William (Billy), era um homem respeitado pelos mineiros — gostava mesmo de descer à mina —, o que é consensual entre os especialistas que frisam que ali os mineiros eram mais bem tratados do que noutras explorações.
A I Guerra produziu mudanças na dinâmica social tradicional, nomeadamente na estrutura produtiva ligada à grande aristocracia e muitas das grandes casas senhoriais começaram a definhar. Wentworth Woodhouse foi-se mantendo forte, graças à riqueza dos “diamantes pretos”.
Mas o carvão, o símbolo do poder dos Wentworth-Fitzwilliam, acabaria com eles. “Aconteceu um ataque à família por causa da antipatia que um ministro tinha à velha ordem. Ele quis fazer desta família um exemplo”, diz Christopher Tadgell, que é o terceiro marido de lady Juliet — foi casada com Victor Frederick Cochrane Hervey, 6.º marquês de Bristol, 20 anos mais velho; a seguir ao divórcio casou com o político e poeta Somerset de Chair, com quem começou a reconstruir a colecção de arte, a preencher as lacunas; finalmente, em 1997, depois de enviuvar, casou com o historiador Tadgell.
A história da queda desta família é complexa e obriga à introdução de uma personagem estranha à família: Emanuel “Manny” Shinwell, filho de um vendedor de roupa judeu de Londres e de uma judia nascida na Holanda. Manny, que começa a trabalhar numa fábrica de tecidos, torna-se depressa sindicalista e adere ao jovem Partido Trabalhista, fundado em 1900 e que na década de 1920 já era a principal força de oposição aos conservadores.
Mais um salto no tempo e Manny Shinwell está no Parlamento, chegando ao Governo quando, como diz Christopher Tadgell, “a outra metade do espectro social decidiu que chegara o seu momento, a sua oportunidade”. O Labour venceu as eleições do pós-II Guerra. “Eles queriam ter uma palavra a dizer sobre o rumo do país e conseguiram-no. As pessoas consideraram que o Labour faria melhor trabalho na reconstrução do país depois da guerra.”
Nos anos depois da guerra, o Reino Unido passou por uma grave escassez de carvão durante invernos especialmente gelados. Debaixo de duras críticas por não ter sabido gerir as reservas, o ministro Shinwell — responsável pelo Petróleo e as Energias primeiro, depois pela pasta da Guerra (da reconstrução) e finalmente pela Defesa — dá um salto em frente e nacionaliza as minas de carvão.
Na brilhante carreira do ministro, que só acabou quando já era barão e estava sentado na Câmara dos Lordes de Westminster, existe este episódio excessivo chamado Wentworth Woodhouse. Shinwell, reconhecem os historiadores, terá ido longe demais na sua guerra contra a velha ordem, contra os velhos senhores da terra e das matérias-primas. O azar da família, reconhece lady Juliet, foi ter debaixo das suas terras, da sua floresta de árvores centenárias, dos seus jardins desenhados pelos melhores arquitectos paisagistas e da sua esplendorosa casa, tanto carvão, a maior reserva do Yorkshire.
O ministro mandou expandir a mina — para baixo, para os lados, para cima. Wentworth tornou-se uma gigantesca mina a céu aberto. À época, Peter, o pai de lady Juliet, já era o senhor de Wentworth, o 9.º conde, e residia na casa. “Nesse período eu vivia lá com o meu pai e o carvão ia mesmo até à porta”, lembra a herdeira Fitzwilliam.
Em Abril de 1946, uma coluna de camiões e de maquinaria pesada chegou a Wentworth, que se tornou a maior mina a céu aberto do Reino Unido. Produziram-se 132 mil toneladas de carvão. Que qualidade tinha esse carvão? O tema foi polémico. Peter Wentworth-Fitzwilliam encomendou um estudo científico à Universidade de Sheffield, que concluiu que o carvão de superfície era “de muito pobre qualidade” e que “não valia a pena tentar obtê-lo”. Shinwell, por seu lado, insistiu que era “de qualidade excepcional”.
Na sua ânsia de destruir os ricos e privilegiados, dizem os historiadores, o ministro nem quis ouvir os argumentos dos próprios operários, dos mineiros, que deram razão ao conde e disseram que o carvão não prestava. Joe Hall, da união dos mineiros do Yorkshire, escreveu ao primeiro-ministro, Clement Attlee: “Os mineiros desta região farão qualquer coisa para não verem Wentworth Woodhouse destruída. Para muitas comunidades mineiras, esta terra é sagrada.”
Foi acusado de estar a soldo do conde, e Manny Sheffield mandou deitar todo o entulho da mina em frente ao pórtico barroco da casa-palácio dos Fitzwiliam — uma pilha negra com 15 metros de altura.
“Repare que a família não era contra a mudança, que era necessária, mas a forma como foi feita foi vingativa. Foi um acto vingativo”, diz o historiador Tadgell, que auxilia a mulher em algumas explicações. “Não fez qualquer sentido tirar carvão que não prestava e, no processo, provocar a destruição de uma propriedade, de uma casa, de uma família.”
A mina a céu aberto funcionou até meados de 1950. Quando fechou, os jardins não foram replantados, a floresta não foi reposta e a casa começou a morrer, ferida nos seus alicerces pela movimentação do solo — um episódio da série da BBC The Country House Revealed mostra bem o que era e no que se tornou o palácio dos Fitzwilliam.
Lady Juliet diz que o centro da casa assenta no vértice de uma pirâmide de carvão, toda a restante estrutura está sobre o vazio. Há rachas profundas nos tectos e paredes.
A luta de classes que se travou naquele campo de batalha e ao fim do rendimento do carvão juntou-se a tragédia familiar. No prazo de seis anos, morreram dois condes e a família pagou dois pesados impostos sucessórios. Billy morreu em 1942, Peter em 1948, num acidente de avião que provocou um escândalo na época — o conde viajava para o Sul de França quando o pequeno aparelho em que seguia se despenhou; com ele estava Kathleen Kennedy Cavendish (irmã de John, que viria a ser Presidente dos Estados Unidos), viúva do marquês de Hartington.
“A história não se passou exactamente como é contada” em Black Diamonds, refere lady Juliet, que diz ser uma pena que o livro seja dois terços bom e um terço “fofocas”.
Quando o pai morreu, lady Juliet, a única filha de Peter, não pôde herdar o título e as propriedades a ele agarradas. A lei britânica mantém que a maior parte dos títulos de nobreza passem apenas de pai para filho. Para quem segue a série britânica Downton Abbey, que acompanha ao longo dos anos uma família de ficção com semelhanças à de lady Juliet, sabe que o drama começa porque lorde Grantham só tem filhas. O herdeiro, um primo chegado, morre no desastre do Titanic e o título acaba nas mãos de um primo distante e desconhecido, que ainda por cima trabalha, é advogado.
As mulheres da aristocracia britânica tentaram, com o êxito da série, relançar uma campanha pela mudança da legislação, mas a aprovação da chamada “Lei de Downton” não parece estar próxima.
Como aconteceu várias vezes ao longo da história desta família, o título passou para outro ramo da família, e William Thomas Wentworth-Fitzwilliam tornou-se o 10.º conde — seria o último.
Com falta de liquidez e obrigada a fazer partilhas, a família começou a leiloar os móveis, os tapetes, os quadros. Foram feitas três vendas, em 1948, 1986 e 1998. Na venda de 1948, na Christie’s, o quadro Rinaldo Conquista o Amor de Arminda, de Anthony van Dyck, que está hoje na National Gallery de Londres, conseguiu o preço impressionante de 4600 guinéus (o equivalente a 156 mil libras, actualmente 214.838 euros). Outras obras famosas vendidas acabaram também em museus nacionais: Whistlejacket, de George Stubbs, está igualmente na National Gallery; Sansão e os Filisteus, de Foggini, no Victoria & Albert.
A casa, onde chegou a ser criada uma escola para raparigas, foi finalmente vendida em 1986 (o edifício, não as propriedades que se mantiveram nas mãos de vários herdeiros). Está novamente à venda, fala-se em oito milhões de libras, o que não é muito — em Londres há bairros com apartamentos mais caros —, mas não há quem lhe pegue por causa dos 40 milhões de libras que custa a recuperação.
Os quadros mais pessoais, como os cavalos da família e os retratos dos antepassados — pintados por Stubbs, Mytens, Ticiano, Van Dyck —, esses ficaram com lady Juliet, que quando o décimo conde morreu — antes fez uma ferida irreparável no espólio familiar, mandando queimar todo o arquivo do século doloroso dos Fitzwilliams, o XX —, sem descendência, em 1979, acabaria por herdar a colecção de arte que tem tentado completar.
“Vendemos uma propriedade na Irlanda e investimos na colecção, pois havia grandes lacunas. Os pintores holandeses seriam comuns numa colecção como esta, os flamengos seriam mais raros e era o que queríamos. Tentámos reconstruir o que seria uma colecção. Alguns dos quadros que adquirimos, há 20 anos, não os poderíamos comprar hoje, devido aos preços. Tivemos muita sorte por termos comprado na altura certa”, explica o casal Tadgell, que vive numa propriedade em Kent e, com eles, a colecção exposta na Gulbenkian.
Lady Juliet faz parte da direcção de um fundo (um Trust) que tem como objectivo comprar, recuperar, mobilar e abrir ao público uma das mais belas e importantes casas rurais inglesas. O Trust, diz lady Juliet, não tem esse dinheiro; decorre em tribunal uma acção contra a Coal Authority, a quem é exigida uma indemnização pelos estragos, mas só os custos do processo legal são elevadíssimos. Em 1999, a casa foi comprada por Clifford Newbold, um arquitecto que investiu nela e chegou a abrir as portas ao público, organizando visitas. Mas o arquitecto morreu, em Abril, e os filhos voltaram a pôr a casa no mercado. Recentemente, dizem os jornais britânicos, surgiu um comprador — as versões variam, uns dizem que era chinês, outros que era russo —, mas o negócio falhou.
Os historiadores de Arquitectura que escrevem de vez em quando sobre Wentworth House dizem que é criminoso que uma das mais belas casas inglesas esteja como está e que a sua existência seja desconhecida da maior parte das pessoas. Podia ser como Highclere, a casa rural que serve de cenário natural a Downton Abbey e que viu o fluxo de visitantes aumentar com a série. A BBC quer fazer uma série a partir de Black Diamonds. Talvez seja o que é preciso para motivar os mecenas e o Estado a investirem em Wentworth. Será, contudo, uma história diferente de Downton, que fala na mudança da malha social e económica na Inglaterra do princípio do século XX, mas é antes de mais uma memória da elegância de uma época.
Wentworth House, que alguns estudiosos da literatura dizem que serviu de inspiração para Jane Austen criar Pemberly em Orgulho e Preconceito — e o 4.º conde terá sido o modelo para Mr. Fitzwilliam Darcy — tem todo o charme da aristocracia rural, mas ali não houve finais felizes.