Kenneth Frampton. A arquitectura foi sempre uma arte burguesa

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Kenneth Frampton tenta manter vivo o tempo do século XX em que o arquitecto podia ter uma resposta para tudo, da cidade ao puxador da porta, mesmo sabendo que não há hoje “projecto” capaz de sustentar tal absoluto NUNO FERREIRA SANTOS

Vê-se que a lógica da arquitectura contemporânea lhe escapa, como escapa a toda a gente. Kenneth Frampton, no entanto, não desiste de a tentar compreender e dar-lhe um sentido. Sendo o autor famoso da adaptação de “regionalismo crítico” para a arquitectura, nos idos de 1980, tenta hoje perceber o alcance da conjectura que então traçou como resposta aos avanços do pós-modernismo. Tenta manter vivo o tempo do século XX em que o arquitecto podia ter uma resposta para tudo, da cidade ao puxador da porta, mesmo sabendo que não há hoje “projecto” capaz de sustentar tal absoluto.

Frampton sabe isso ao regressar a Portugal. Veio receber o Prémio Carreira atribuído pela Trienal de Arquitectura de Lisboa/Millennium BCP, 2013 (no Centro Cultural de Belém, dia 3), depois de Vittorio Gregotti, em 2007, e Álvaro Siza, em 2010. Esteve cá como o herói que primeiro inscreveu a arquitectura de Siza no mundo anglo-saxónico.

Talvez por isso, o Porto capturou-o para uma conferência na Casa das Artes (31 de Janeiro), com a presença de Siza e de Eduardo Souto de Moura numa conversa final. O tom era de agradecimento, mas os equívocos sucedem-se como é normal nestas circunstâncias. A conversa entre críticos e arquitectos pode ser um diálogo de surdos. O objecto pode ser o mesmo, o discurso é sempre cubista de parte a parte.

A teoria do “regionalismo crítico” – a defesa de uma arquitectura em relação com os sítios, motivada pela construção e uso de materiais locais e apropriados, contra a deriva cenográfica do pós-modernismo mais literal – serviu bem como projecção da arquitectura de Siza. Mas não é simples ser acantonado como “regional” quando se visa o centro, como veremos. De qualquer modo, o agradecimento é mais do que devido. A obra de Siza era já notória em Espanha, França, e Itália, no final dos anos 1970, mas não no mundo que fala inglês. As várias edições revistas de História Crítica da Arquitectura Moderna, que se transformou num manual de grande impacto embora se trate de um livro de complexa leitura, colocaram Siza em perspectiva na história da arquitectura.

Gentilmente, Siza fala no modo como Frampton quebrou as fronteiras entre o centro e a periferia, inaugurando uma globalização de que gosta, a que se move em muitas direcções. Vê este processo no seguimento das influências africanas de Picasso, ou da arquitectura tradicional japonesa em Frank Lloyd Wright, como um “regionalismo aberto”, crítico, por não ser paroquial ou nacionalista. Mas no Porto falou também na vontade que tinha em construir em betão, de fazer coberturas planas.

Os impulsos modernistas de Siza estão em todo o lado. Parece haver aqui uma contradição com o “regionalismo”. “Sim, parece que sim”, diz Frampton. “A questão é que [Alvar] Aalto altera o conceito de modernidade. Não se trata tanto de coberturas planas ou telhados. [Na obra de Siza] há uma distorção orgânica que vem mais de Aalto do que da linha principal do período heróico, de Le Corbusier ou do Mies, antes da Segunda Grande Guerra. O que é interessante em Aalto é que há uma mediação da modernidade, que começa com a Biblioteca de Viipuri, uma obra ortogonal mas em que a organização do espaço é muito orgânica. Esse aspecto orgânico é interiorizado pelo Álvaro [Siza]. Isso não faz dele um regionalista crítico, é claro. Mas tentei dizer várias vezes que o regionalismo crítico não é um estilo. A relação de Álvaro com a topografia não está na linha central do movimento moderno”. Por isso, quando mostra a obra-prima de Siza, o Museu Iberê Camargo em Porto Alegre, enfatiza mais os aspectos da relação com a topografia do que as fortíssimas evocações do modernismo que estão evidentemente lá. “É claro que estão lá mas há mais qualquer coisa por cima disso. Os braços que vêm cá fora são uma imagem do inconsciente do Álvaro [Siza]. Têm uma função mas a sua origem é inexplicável”.

O percurso de Siza é já longo. A Piscina de Leça captou inicialmente Frampton, mas depois muita tinta correu. Rafael Moneo escreveu que a arquitectura de Siza é, a partir dos anos 1980, play time, isto é, referencial, fragmentada, lúdica. “Mas as referências nunca são gratuitas, tocam sempre em cordas tradicionais, nunca são meramente decorativas”, diz Frampton. “Ok, são lúdicas, mas sofisticadas, específicas”.



Temos que parar o computador

Quero voltar atrás; em 1954, Frampton foi estudante da primeira edição do curso de Arquitectura Tropical, na Architectural Association, em Londres, e colega de uma tal Miss Lakofski, que se revelará como Denise Scott Brown.

Frampton ri-se muito. Pergunto-lhe se a sua fixação nos aspectos climatológicos, na boa construção, na apropriação dos materiais, tem a ver com essa experiência. “Sim, até um certo ponto, porque, de facto, Maxwell Fry usava um método pedagógico que era propor o projecto de uma casa num clima quente e seco e outra num clima tropical húmido. Achei esses exercícios, com essas condicionantes, muito libertadores. Infelizmente, não tenho nenhum desses trabalhos guardado”.

Entretanto, a “ecologia” e a “sustentabilidade” transformaram-se em temas centrais. Podemos dizer que o curso de Arquitectura Tropical e depois o desenvolvimento do “regionalismo crítico” são abordagens pioneiras. Aliás é interessente que a crítica de Frampton ao edifício da CCTV de Rem Koolhaas, e ao Ninho de Águias de Herzog e Meuron, é feita segundo um ponto de vista ecológico. “Ecológico e também noutro nível, porque o uso de materiais muito caros, de uma maneira totalmente irresponsável, não é só deselegante e irracional. É não-ético”.

Mas mesmo se é verdade que este tipo de materialidade ecológica é hoje muito importante, as “morfologias digitais” estão em todo o lado. Como é que Frampton lida com uma abordagem que está no oposto do que defende? “Não consigo lidar. Posso só dizer que não tenho respeito por isso e está à minha volta na escola de arquitectura em Columbia. Está a diminuir ligeiramente, por si só, talvez por aborrecimento. Temos que parar o computador senão o computador continuava, oscilando, criando morfologias sem fim. É uma romantização da ideia do edifício sem autor. Tem a ver com a ideia de que transformará a arquitectura como o betão e o aço transformou. E que produzirá uma ruptura fundamental. Mas acho que isso é simplista e demagógico”.

Abre no entanto uma excepção para o parque de Yokohama. “É verdade. Por uma razão que tem a ver com a formação de [Alejandro] Zaera-Polo em Espanha. As escolas espanholas têm uma grande disciplina do ponto de vista da estrutura e da construção. Zaera-Polo ainda tem algo dessa formação. Yokohama é como um peixe e a morfologia é sempre consequente em termos da descarga tectónica do peso”.

Os arquitectos falam de tudo, como os políticos. Faz sentido que estejamos ainda hoje a fazer perguntas aos arquitectos e aos críticos sobre os problemas em África, os problemas das grandes cidades? Parece uma ressonância do período moderno onde aparentemente os arquitectos tinham todas as respostas. “Pergunto a mim mesmo se faz sentido perguntar isso a mim mesmo”, responde, entrando no jogo. “O que é mais incrível no Álvaro [Siza] é que o seu pensamento pode ir de um nível para outro com uma muito aguda e lacónica percepção. Uma vez escrevi-lhe a dizer-lhe que devia estar feliz porque tinha muito trabalho. E ele respondeu-me que tinha muitos projectos mas não estava feliz: como podemos estar felizes quando a Europa não tem um projecto? Não me esqueci disso. É uma resposta que vem de um esquerdista, é claro. De uma pessoa muito inteligente que percebe que esta interminável proliferação de novos gadgets não tem um projecto. Trata-se só de maximizar o lucro, mesmo que haja muitas vantagens nos avanços tecnológicos e científicos. Por isso tentamos fazer um discurso crítico. Que sublinha a aporia de um progresso que não tem nenhum fim. E é claro que isso afecta a arquitectura mas também toda a sociedade. Temos que nos colocar em algum sítio, de outra forma fazemos parte do mesmo jogo sonâmbulo”.

Sei que não vai gostar mas digo-lhe que Rem Koolhaas é talvez o mais próximo do zeitgeist de que se pode estar. Afinal, Frampton gostou da Casa da Música. “Sim, mas será aquele um edifício humano? Com aquelas escadas loucas que são difíceis para velhos e para novos. É o seu melhor edifício porque os portugueses o construíram. Ele é um tipo perverso, a muitos níveis. E muito apropriado para o momento, a sua perversidade encaixa bem no momento. Ele acha-se um dos últimos radicais mas basicamente é um cínico e um perverso. Não o consegue evitar.”

Uma ilha de beleza

Voltemos então para o “regionalismo crítico”. Frampton mostrou vários exemplos de arquitecturas contemporâneas em África e na Índia, de Richard Murphy, Mikko Heikkinen e Markku Komonen, ou Bijoy Jain. Exemplos subtis, introvertidos, fora do mundo brutal das cidades. Será que o destino do “regionalismo crítico” é criar uma ilha de beleza introvertida, a derradeira arquitectura de resistência? Nem sequer falando com o mundo?

Frampton parece emocionado. “Sim. Do projecto moderno de Habermas já muito foi fechado pela sociedade do espectáculo. No qual Rem [Koolhaas] está completamente integrado. Não há muitos lugares onde as pessoas sensíveis possam intervir. Mas, por outro lado, apesar da maximização do espectáculo, há muitas culturas arquitectónicas interessantes em todo o lado. As imagens dessas arquitecturas tem o seu próprio pathos porque são limitadas e preciosas. Admito que essas belas casas, por exemplo as de Bijoy Jain, são construídas para gente muito rica. E isso é um limite real. Mas a arquitectura foi sempre uma arte burguesa. Não a desculpa claro, mas não devemos fingir que tem uma história que está livre da classe burguesa. Mesmo que haja este momento heróico do movimento moderno em que é suposto que haja um novo cliente. A Guerra Civil Espanhola pôs um fim a tudo isso e depois a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, o projecto moderno já não é o mesmo. Mas acho que devo continuar a apoiar ou a identificar, ou seja lá o que eu faço, estas figuras. O espectáculo tenta dominar tudo e todos e há outro nível de sensibilidade, elegância, beleza e poesia que deve ser cultivada. Do melhor modo que podemos”.

Por falar em sensibilidade, as referências miesianas de Souto de Moura excluem-no do “regionalismo crítico”, mesmo com o uso da pedra... “Nas primeiras casas, embora use uma sintaxe miesiana, o tipo de espaço que produz é diferente. A ideia do regionalismo fá-lo sentir desconfortável. O modo de adjectivar regionalismo como crítico é problemático. Quando foi primeiro cunhado por Tzonis, ele deixou claro que se tratava de superar o regionalismo demagógico ligado ao fascismo e ao nacionalismo. Nessa discussão no Porto, o Álvaro disse esta coisa muito bela acerca do regionalismo crítico como uma globalização multi-direccional. A interacção híbrida da entre tradição e inovação deve ser estimada e sempre foi. Até etimologicamente, trade, tradition, translation estão ligados, até betrayal.”

Talvez Frampton esteja preso no velho debate que nasceu entre John Ruskin e William Morris contra a “máquina” e a arquitectura do ferro e do vidro: a Red House contra o Palácio de Cristal. Frampton adere à provocação: “Temos que dar mérito ao legado do Palácio de Cristal. Norman Foster alcançou coisas incríveis. De todos os high tech, Norman é o mais refinado. O Hong KonK Shangai Bank é incrível. No caso de Norman Foster, a Red House contra o Palácio de Cristal não faz sentido. O trabalho de Norman é muito mais inteligente que o Centro Pompidou de Richard Rogers. A Red House está cheia de ideias românticas. Mas não posso ser o modernista que comecei por ser e dizer que quero regressar no tempo. Mediar a tecnologia; é isso que é profundo. Mediar a tecnologia e não maximizar a tecnologia.

Kenneth Frampton está cansado e satisfeito, visivelmente. Portugal tratou-o bem, merecidamente. 

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