Jon Stewart agora é realizador
O popular apresentador, produtor e argumentista do Daily Show realizou um filme cuja acção decorre no Irão.
Acariciando um café gelado num quarto de hotel em Washington, onde o apresentador da Comedy Central recebeu os jornalistas que o entrevistaram sobre a sua estreia como realizador com Rosewater [que chegou às salas nos Estados Unidos a 14 de Novembro], Jon Stewart não hesita antes de responder a uma pergunta sobre quais poderão ser os seus planos depois de o seu contrato com o Daily Show terminar no próximo Outono: “Fazer uma sesta”.
Talvez precise. Reflectindo sobre a natureza imperdoável de envelhecer sob os holofotes dos media, Stewart, que faz 52 anos este mês, brinca: “Vemo-nos a morrer lentamente. Em 1995 provavelmente descreviam-me assim: cabelo preto, fuma, bebe. E agora é: curvado, já não bebe, não fuma, grisalho”.
Evitando quaisquer compromissos firmes sobre o futuro, o apresentador, produtor executivo e argumentista do popular programa de “fake news” diz que só está à espera de “um momento de pausa” para conseguir alguma clareza sobre a decisão, sem ser influenciado por factores alheios como a sua própria “exaustão”.
No ano passado, Stewart fez uma interrupção de três meses do programa para filmar Rosewater. Rodado numa prisão jordana em funcionamento, onde a temperatura ascendia rotineiramente aos 38 graus, o filme passado no Irão baseia-se nas memórias Then they came for me, do jornalista e realizador canadiano-iraniano Maziar Bahari, que foi preso quando cobria as eleições presidenciais daquele país em 2009 para a revista Newsweek.
Quando lhe pedimos para caracterizar Stewart, com quem colaborou no processo de escrita do argumento e como consultor nas filmagens, Bahari diz que a sua maior revelação não foi quão sério o comediante pode ser longe das câmaras, mas sim que é um workaholic.
“Às vezes o Jon ia ter comigo às 7h da manhã para o pequeno-almoço antes de ir para os escritórios do Daily Show às 9h ou 9h30”, diz Bahari. “Depois ia para casa à noite e escrevia o guião. Quando conhecemos o Jon e temos a oportunidade de passar tempo com ele durante uns dias, percebemos que realmente é um génio na forma como absorve informação e a consegue analisar rapidamente.”
A história por trás da colaboração dos dois é bizarra. No meio do ordálio de 118 dias de Bahari, durante o qual foi regularmente interrogado e espancado, veio a lume que o seu interrogador anónimo do governo iraniano – que recebeu a alcunha “sr. Rosewater” por causa do perfume que usava – parecia acreditar que Bahari era um espião para o Ocidente, baseando-se em parte num vídeo satírico do Daily Show em que apareceu antes de ser detido.
Como convidado do Daily Show depois de ser libertado, Bahari esclareceu que não culpava o apresentador pelo seu cativeiro. “Podia estar na Rua Sésamo e eles acusariam o Elmo de insubordinação”, brincou. Os dois homens tornaram-se amigos e uma conversa sobre se Stewart produziria uma adaptação para filme do livro de Bahari levou às habituais barreiras de Hollywood: problemas de calendário e falta de dinheiro para contratar os argumentistas ou realizadores que queriam.
“Depois de um ano e meio de basicamente não chegarmos a parte alguma”, recorda Stewart, “disse que sentia que tinha uma visão suficientemente clara do que isto podia ser no sentido narrativo para simplesmente o escrever o mais rapidamente possível, para que tivéssemos um documento a partir do qual trabalhar, para o acelerar. A partir daí, começamos a tornar-nos territoriais. À medida que o projecto se desenvolve, começamos a pensar ‘Meu Deus, não sei se quero passar isto a alguém’”.
Stewart não estava plenamente convencido de que devia – ou conseguia – realizar a coisa, mas não deixou que isso se interpusesse no seu caminho. “Ainda não estou convencido”, diz. “Se esperamos até estarmos convencidos de que conseguimos fazer alguma coisa, nunca fazemos nada. As pessoas estão sempre a perguntar-me ‘Como me torno num comediante?’ e eu digo-lhes sempre ‘Bom, acho que uma coisa que pode fazer é subir a um palco e contar piadas’.”
O processo de filmagem requereu um metabolismo mais lento do que aquele a que Stewart está habituado. “Estou acostumado a fast food”, explica. “Chegamos ao drive-through e pedimos ‘três piadas sobre o George W. Bush… e uma boca!’” Ainda assim, acredita que fazer um filme não é completamente distinto de fazer stand up, um programa de TV de meia hora ou um livro. É só uma forma diferente, diz, de decompor uma narrativa. “Não foi tão difícil quanto se Maziar tivesse dito – ‘E se fizéssemos um álbum de folk com canções de protesto iranianas em que tu serias o vocalista?’”
Para Stewart, o apelo da história de Bahari era a sua universalidade. É sobre mais do que simplesmente “um homem num regime autoritário excêntrico. Isto é algo que está a ser feito às pessoas pelo mundo e que é necessário fazer às pessoas quando as queremos combater. Se queremos bombardear pessoas, temos de tentar convencer-nos a nós mesmos de que não são pessoas”.
A perspectiva humanista estende-se também ao vilão do filme. Stewart e Bahari descrevem Rosewater, que no filme é interpretado pelo actor dinamarquês Kim Bodnia, não tanto como um monstro, mas mais um funcionário público sob pressão – alguém cujo escritório por acaso é a infame prisão Evin em Teerão e cuja carga de trabalho consiste em lidar com prisioneiros políticos. “Temos de olhar para isto num contexto que é o de que milhares de pessoas estão a ser presas”, diz Stewart, referindo-se à perseguição aos dissidentes no Irão após as eleições. “A prisão Evin é movimentada. Podemos ver as coisas como a ‘Revolução Verde’, mas estes tipos vêem-na como horas extraordinárias. É uma burocracia. É uma burocracia em que o produto que fazem é a tortura.”
Com isto em mente, Stewart diz que não resistiu a inserir uma piada que não estava no livro de Bahari. Quando Rosewater força Bahari a telefonar à sua mulher, Paola, tentando que ela “parasse de dizer mal” do Irão em público, o torturador passa-lhe o telefone dizendo “Tem de marcar 9 para sair”. “Quando esta piada é dita”, nota Stewart, “sinto-me sempre maravilhosamente”. (Segundo Bahari, a fala não está longe da verdade. Rosewater, diz, fazia chamadas usando um cartão pré-comprado “para sair mais barato”.)
Apesar de momentos surreais e até cómicos como estes, Rosewater não é nem uma farsa, nem uma sátira. Sendo que muito do humor do filme deriva, ironicamente, da falta de humor de Rosewater – como, por exemplo, a sua incapacidade de compreender que o clip incriminatório do Daily Show era uma brincadeira –, Stewart enfatiza que a fronteira entre a sátira e a verdade nunca deve ser deliberadamente esbatida.
“Penso que devemos saber quando algo é sátira”, diz. Stewart lamenta que certos jornalistas parecem ter perdido isso de vista, adoptando as ferramentas da sátira – a hipérbole e a caricatura – para os seus próprios fins. “O que pode parecer cirúrgico no sentido satírico pode parecer uma paulada no sentido jornalístico”, diz.
Exemplo: aqueles que Stewart chamam os “polemistas” (leia-se os comentadores da Fox News), que vendem títulos cada vez mais inflamadores. “Primeiro era ‘os liberais estão enganados’”, diz Stewart. “Depois é ‘os liberais são fascistas’. Depois é ‘os liberais querem f… os vossos avós mortos. Têm de continuar a vender isso para agarrar olhos.”
Stewart não acalenta quaisquer ilusões sobre o seu próprio papel neste processo, reconhecendo que o Daily Show é amplamente consumido não na televisão mas sob a forma de vídeos virais curtos distribuídos através de meios como o Facebook, o Huffington Post ou o Washington Post. “O animal precisa de alimento. Também fazemos parte desse ecossistema. Não estamos separados dele. O nosso animal também existe para agarrar pares de olhos.”
Não está nem “deprimido nem desmoralizado” com a proliferação de conteúdos tornados possíveis pela Internet, diz, mas atribui o facto de não estar no Twitter à crescente banalidade das conversas. Num extremo do espectro, Stewart vê “análises verdadeiramente inteligentes, interessantes e bem pensadas”. E na outra ponta? “É um link que diz: ‘Esta imagem vai mudar a forma como vê os macacos’. E clicamos e é um macaco de chapéu.”
Sobre se o Daily Show cabe nesse contínuo de informação e conversas, Stewart admite que o programa provavelmente está na intersecção dos dois extremos.
Ainda assim, não vê esses objectivos – ser engraçado e ser responsável – como sendo opostos. E cita como prova a controvérsia recente sobre um segmento do Daily Show em que vários fãs enraivecidos dos Redskins [equipa de futebol americano alvo de críticas sobre o seu nome discriminatório dos nativos americanos] dizem ter sido alvo de uma emboscada quando os produtores do programa os confrontaram com um grupo de nativos americanos enraivecidos quanto ao nome da equipa. Quando a rubrica finalmente foi para o ar em Setembro, o “correspondente” Jason Jones responsabilizou-se pela controvérsia frente às câmaras, mesmo às custas de o sketch ser menos engraçado do que teria sido.
Segundo Stewart, uma vez desencadeada a controvérsia, cabia ao programa reconhecê-la. “Uma das coisas que aprendemos no stand up é que temos de conhecer o público e o que ele está a pensar”, diz Stewart, que acredita que a ideia de responsabilidade não é anátema do humor, mas sim um seu ingrediente essencial. A comédia, defende, é mais transparente do que a maior parte do jornalismo – ou da governação.
“O que para mim é tão interessante é a preocupação que as pessoas têm com as regras do universo moral da comédia”, diz, “mas não tanta preocupação com o universo moral da governação. Nunca ouvi ninguém perguntar a um líder ‘Onde está o limite?’ E ouço muito dizerem a comediantes ‘O que é ir longe demais?’. Nunca ouvi isso com um Presidente. O que é ir longe de mais? Solitária? Prisão por três infracções por questões de droga? Bombardear civis?”
Se Stewart soa menos a comediante ultrajado – ou cineasta incendiário – e mais a político, ele é o primeiro a pôr fim a qualquer especulação sobre se a sua carreira pós-Daily Show poderia incluir uma candidatura a um cargo público.
Com tanta conversa sobre transparência e universo moral – e com um novo filme que defende a liberdade de imprensa –, muitas pessoas, ou pelo menos alguns progressistas de coração partido, não votariam nele?
“Não sei”, diz, rindo-se, “excepto se fosse da mesma forma que as pessoas votariam para que um jogador de futebol suplente substituísse o titular se estivessem frustradas com os objectivos da sua equipa. E depois, cinco minutos passados sobre a primeira parte, depois de duas bolas perdidas, ficamos ‘Que se f… aquele gajo. Tirem-no dali”.
Além disso, insiste Stewart, ele não tem o “conjunto de capacidades” certo para a tarefa. E que conjunto de capacidades seria esse que falta a este comediante tornado realizador irrequieto e responsável, muito falador e profundamente pensativo?
“Paciência”, responde.
Exclusivo Washington Post/PÚBLICO