Quando, no início dos anos 50 do século passado, J. Rentes de Carvalho resolveu abandonar Portugal por motivos políticos, as cidades onde foi vivendo eram urbes de horizontes largos: Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, São Paulo. Por causa de uma história de cafés desembarcou em Amesterdão. Corria o ano de 1956 e da Holanda só conhecia "Rembrandt, Van Gogh, o queijo, e os turistas barulhentos que os autocarros despejavam na Côte D'Azur. "No departamento comercial da embaixada brasileira onde escrevia relatórios, a descrição que os colegas faziam dos autóctones era sumária, básica e confirmava ideias feitas. As holandesas dividiam-se em duas categorias: as mulheres com quem se tinha ido para a cama e as mulheres com quem se estava para ir; os holandeses numa categoria só: a dos bananas. O país, uma maçada. A comida, um nojo." Mas a verdade é que quando Rentes de Carvalho assim recorda estas impressões holandesas em 1972, já tinham passado 15 largos anos, e ele continuava a viver na mesma cidade onde entretanto casara e onde ensinava literatura portuguesa na universidade onde também se formara.
É que às ideias feitas e às decepções já se juntara uma sincera admiração pela tenacidade dos holandeses: "Vi um prédio em ruínas, e, como na Alemanha ainda havia vestígios da guerra, perguntei se o local tinha sido bombardeado. Não. Tinha sido apenas um acidente. Em 56, na Holanda, já não havia ruínas da Segunda Guerra." Escreveu um livro sobre esse país, "Com os Holandeses" (que este ano teve finalmente edição em Portugal, na Quetzal), por causa de uma zanga: "Estava a viver o fim da minha adolescência holandesa e estava na hora de perder a teimosia portuguesa e de aceitar um certo ordenamento e um certo rigor. Vinha de um país autoritário e ainda não tinha percebido que ali não precisava de me defender da autoridade nem da sociedade porque fazia parte dela. O livro ajudou-me a virar a página. Na Holanda, por questões de educação mas também por inexistência física, é impossível atirar um calhau a alguém. Imagine o que isso representa para uma pessoa de ascendência transmontana", sublinha.
O livro lá saiu: a capa retratava um homem com o dedo espetado e talvez por isso o primeiro sítio em que Rentes de Carvalho viu o seu livro à venda foi uma sex-shop. "Com os Holandeses" tem descrições intemporais, como o elegante e equilibrado bailado que permite manter uma população inteira em cima de uma bicicleta, mas outras foram sendo actualizadas por causa da evolução da sociedade: "Hoje em dia a Holanda vive o dilema de ser um país que não sabe como integrar as grandes comunidades imigrantes (os turcos e os marroquinos são juntos, já um milhão) no seu exíguo território. O ensino oficial está a ser nivelado por baixo sem que isso se reflicta no aumento dos níveis de integração. A tolerância foi durante muitos anos um álibi para a indiferença. Agora essa indiferença está a chegar ao fim arrastando consigo a mistificada tolerância".
Testamento biográfico
Conversamos no 20.º andar de um hotel em que o horizonte de Lisboa se expande em água. Um território neutro, entre a Holanda e Estevais, a aldeia no de Mogadouro onde, já neste século, o autor decidiu que casa onde o seu avô materno nasceu poderia ter um futuro alternativo à ruína. Corresponde à paisagem transmontana que encontramos em "Ernestina", romance que percorre a biografia dos seus primeiros 15 anos de vida e que também salva da erosão do tempo as três primeiras décadas do século XX: " A minha avó era uma contadora de histórias inata. Foi uma grande escritora sem o saber." A vida dura de avós e pais e de uma mãe chamada Ernestina enchem as páginas do livro a que chamou testamento biográfico. Na Holanda já vai na sétima edição. Os holandeses renderam-se à música desta aguarela de gentes, costumes e tradições das paisagens da aldeia, da vida no Porto ou em Gaia: "Passava um homem a vender água, outro a apregoar grelhas. O amolador anunciava-se como uma flauta. Havia bêbedos e pedintes, guardas, mulheres a fazer compras, velhos que andavam por ali às voltas porque não tinham outras distracções, gente vergada sob o peso que levava às costas ou às cabeças." Pedaços de memórias iniciáticas: "Em 'Ernestina' cabem os meus primeiros 15 anos, porque a partir daí achei que ninguém tinha nada que ver com a minha vida". Outra vez uma catarse, mais uma crise de adolescência que chega ao fim: "Quem me conhece melhor encontrará nesta leitura traços que ainda hoje, quase com 80 anos, se mantêm no meu carácter."
Os holandeses que se continuem a entreter com o pitoresco, porque o que "Ernestina" nos oferece é bem mais profundo: é a biografia dos nossos avós, com o seu cheiro a terra.
"Sou um homem de duas pátrias, com uma vida cheia de acasos extraordinários. E assim continuará. Enquanto puder, vou manter este trânsito entre as minhas duas pátrias. Não deixa de ser irónico que seja um velho casal a trazer nova vida a Estevais. Mas é assim. É uma esperança, numa terra onde as searas abandonadas pela emigração cederam lugar aos eucaliptos que, agora arrancados, deixam de novo a paisagem despida."
Em "Ernestina" não existe nem espaço para a saudade, nem espaço para um libelo contra a pobreza. É uma evocação "poética, mas sincera, com os pés na terra": "A memória de um território que possa substituir no imaginário dos outros a mulher com bigode de xaile negro pelos ombros".
Graças ao empenho da Quetzal, abre-se agora um tempo em que Portugal pode começar a descobrir a obra de J. Rentes de Carvalho.
Abandonamos a torre de vidro onde conversámos. Cá fora, ainda antes de se fazer à estrada que o levará em quatro horas a Estevais, talvez J. Rentes de Carvalho ainda se cruze com algum holandês com um "Portugal, um guia para amigos" debaixo do braço. Não seria a primeira vez. Com mais de 20 anos, o livro ainda se vende como pão quente a qualquer viajante holandês.
Mas o que esperamos é que, na próxima visita de Rentes de Carvalho, "Ernestina" já passeie na rua com os lisboetas.