"Israel tem um problema de identidade: já não é David"

Uma das personalidades mais influentes do nosso tempo segundo a Time, Malcolm Gladwell escreve livros sobre excepções que não confirmam a regra. A tese do mais recente, David e Golias, é que ser mais fraco pode ser uma vantagem. E não é por coincidência que tudo começa na Palestina.

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Malcolm Gladwell continua a ser colaborador permanente da revista The New Yorker: é o que mantém ligado ao seu tempo, diz NEVILLE ELDER/CORBIS

O mais recente livro de Malcom Gladwell aparece quando Outliers, título de 2008, ainda está na memória de muitos leitores. Nele, partia do seu êxito pessoal para uma reflexão sobre os factores que estão na origem do sucesso e concluía, por exemplo, que as pessoas nascidas nos primeiros meses do ano levam vantagem sobre as outras. Governantes e gestores internacionais convidam-no para falar sobre os grandes desafios da actualidade à luz das suas pesquisas. Esteve em Portugal em 2011 a conferenciar sobre a urgência de agir. Para a comunidade científica, as suas teses são simplistas e demasiado genéricas, sustentadas por uma argumentação ligeira e tendenciosa. Ele contesta. Diz que o seu papel é apontar de forma simples as excepções às regras.

É mais uma vez isso o que propõe com David e Golias, onde usa a história bíblica enquanto metáfora. Os desfavorecidos à partida podem acabar vencedores face aos que saem com vantagem. Para o jogo ou para a guerra. Encontrando exemplos em diversas áreas, Malcolm Gladwell pretende demonstrar duas ideias-base: “A primeira é que grande parte daquilo a que atribuímos valor neste mundo resulta deste tipo de conflitos assimétricos, porque o acto de nos confrontarmos com probabilidades adversas dá origem a grandeza e beleza. A segunda é que encaramos sistematicamente estes conflitos com uma perspectiva errada. Damos-lhe uma interpretação falsa. Os gigantes não são o que pensamos que são”, escreve nas primeiras páginas deste livro em que cada capítulo se inicia com uma citação da Bíblia, como que a sustentar o título. Depois de apresentar os argumentos para justificar a vitória de David sobre o gigante na Palestina, conta a experiencia de um treinador de beisebol feminino que conseguiu fazer o impensável com a sua equipa, demonstra como a dislexia pode ser um trunfo, a perda de um pai na infância ou na adolescência talvez ajude a determinar um carácter vencedor ou que é posível contrariar um destino de pobreza. E ainda desmonta a premissa de que quanto menos alunos houver numa turma maior será o sucesso escolar – há um ponto, argumenta, a partir do qual essa equação passa a estar errada.

Para cada ideia, Malcolm Gladwell elege uma personagem exemplar. Nesse aspecto, como no modo como agarra cada excepção para desmontar uma falácia, tudo está conforme os seus livros anteriores. Falta-lhe, talvez, a síntese e a capacidade de surpreender. A mensagem torna-se perceptível logo após as duas primeiras histórias. E não havendo ciência exaustiva, resta o brilho na escrita que faz dele um bom contador de histórias escritas ou faladas, atento aos detalhes. É um livro para os admiradores que não dificilmente irá conquistar novos leitores, mas que continua a ser exemplar de um método que fez dele uma excepção no jornalismo. É assim que continua a designar-se: jornalista, colaborador permanente da revista The New Yorker, eleito pela Time uma das cem personalidades mais influentes em 2005, Gladwell cruza os métodos do jornalismo, das ciências sociais e da matemática. É um escritor e conferencista best-seller com milhões de livros vendidos em todo o mundo. Chamam-lhe uma marca. Vende e faz vender. Ele rejeita essa imagem. Diz-se alguém com uma perspectiva optimista do mundo e atribui parte do sucesso ao facto de pegar nesse lado positivo para passar as suas ideias, garante numa conversa a partir da sua casa em Manhattan, onde vive e escreve, quase sempre de manhã, muitas vezes em cafés, outras em bibliotecas, sem rotina fixa. Está num momento de pausa entre livros, a uma semana de entregar mais um artigo para a revista que, diz, o vai mantendo ligado ao seu tempo.

Qualquer assunto pode ser um bom assunto, não há nada que o aborreça?

Quer saber se consigo encontrar sempre qualquer coisa de interessante num assunto?

Sim.

Há muitas, muitas coisas sobre as quais não estou nada interessado em escrever.

Por exemplo?

Nunca escrevo sobre política. Mas esforço-me por encontrar dimensões interessantes na maioria dos assuntos. Gosto de olhar para uma coisa durante bastante tempo e ultrapassar a fronteira do que se achava o limite desse assunto.

E como é que tudo começa?

Não é sempre igual. Posso ouvir uma história, ou cruzar-me com uma teoria. Posso procurar padrões, como modos de ligar histórias ou ideias. Nem sempre o processo é comandado pela razão. Pode ser intuitivo. Não há uma linha constante que comande a “caça”. Pode ser algo que me atraia por ser invulgar.

Mas há um padrão comum a todos os seus livros: falsas ideias ou mal-entendidos em relação ao que nos rodeia.

Gosto de pensar que uma das minhas funções enquanto jornalista é educar. E educar muitas vezes não é apenas revelar qualquer coisa que não se sabia, mas contradizer, desmontar a falsa ideia feita, o que temos como certo mas não é assim tão linear. Isso é muito estimulante: uma paixão pelo rigor, por acrescentar ao que está incompleto. Os meus livros sugerem outros modos de pensar sobre alguma coisa. 

Essa intenção de educar pode parecer algo pretensiosa.

É uma das nossas funções. Educar, entretendo. E aprender como se passássemos a ter o domínio de um pequeno pedaço de algo. Esse processo pode ser incrivelmente divertido. Os meus livros têm uma intenção séria, mas não são de leitura difícil. É suposto serem divertidos. Se se conseguir ter como leitor alguém com 14 anos, é um bom teste. Os adolescentes são os clientes mais difíceis. Não fazem esforço, não vão terminar algo que achem aborrecido.

Estamos com David e Golias numa Palestina de há muitos séculos. É nesse território que os dois inimigos medem forças. É impossível não transpor a história para a actualidade, com toda a sua simbologia.

(Pausa) A história inicial do livro é sobre David e Golias na Palestina, mas é suposto ser sobre todas as batalhas entre fortes e fracos. Eles são símbolos de como estamos constantemente cercados por estes conflitos entre os poderosos e os fracos, com papéis muito específicos e distintos, e de como esses conflitos têm desfechos inesperados. A história de David e Golias é ainda mais interessante porque na Palestina da actualidade pouco mudou. Nesta batalha com o Hamas, Israel é Golias. Não é David. Acho que Israel não percebe essa identidade. Tem um problema de identidade. Tem sido difícil a Israel gerir essa transição entre o país desfavorecido que já foi e a sua actual situação. Israel pode ter sido o elo mais fraco na Guerra dos Seis Dias [1967], ou na Guerra de 48, ou na Batalha do Suez [1956]. Nesta guerra com o Hamas não é. Seria difícil para qualquer país mudar de papéis assim. Falando por exemplo dos Estados Unidos: foram Golias durante um século e não é necessariamente mau ser Golias, mas não é possível fingir que se é David para ter apoios. São papéis muito difíceis de jogar e o de Golias parece ser o de seguir em frente com o seu poder custe o que custar, sem saber quando parar. É difícil jogar quando o oponente quebra as regras. Neste caso, Golias parece nem sequer saber o que se passa na batalha. É um aspecto tão fascinante quanto pernicioso. Tem consequências devastadoras.

A tese do seu livro é que os fracos podem sair vencedores.

Não sou um perito nesses temas. Penso que a questão tem a ver com o modo como nos definimos, para sabermos as armas e os meios que devemos levar para o terreno. O Hamas tem vindo a travar uma longa batalha e há muitas formas de olhar para ela: uma batalha política, um conflito militar, uma disputa de vizinhos. Pode-se pegar em cada uma das duas definições e aplicá-la ao longo do tempo, tentando fazer uma previsão sobre quem sairá vencedor, mas é uma especulação tremenda. Acho que ninguém é capaz de prever o desfecho.


A imagem de David e Golias foi a imagem de partida para este livro?

Quando tratamos de um tópico muito complexo fica mais fácil começar com uma metáfora para haver de imediato um reconhecimento. As pessoas sabem como relacionar… Achei que era uma boa forma para começar a abordagem ao tema.

Nos seus livros socorre-se de personagens para fazer passar a mensagem. Não é muito diferente do processo de um romancista. Como chega às suas personagens que não são ficcionais?

Há pessoas que encontro, ou que escolho, porque acredito que apontam um caminho para contar uma determinada história. No capítulo sobre a Irlanda do Norte, há aquela mulher [Rosemary Lawlor, recém-casada, recém-mãe, em Belfast, no centro dos conflitos de 1969]. Levei muito tempo a encontrá-la, a encontrar alguém que materializasse o sentimento do que se passou ali naqueles anos. Alguém cuja vida tocasse na maioria dos temas que queria explorar. Procuro pessoas cujas histórias sejam significativas, que me façam entrar no assunto. De outra forma ficaria perdido. Posso ter uma história, mas se não tenho um meio de a ligar a uma audiência de forma entendível estou perdido. Demoro muito a descobrir que pessoa me pode ajudar a contar a história

Teve uma educação cristã. Afastou-se da religião, mas confessou que com estre livro se reconciliou com o seu lado cristão. Como é que isso aconteceu?

É verdade. Grande parte do livro tem a ver com a fé religiosa. Não podia passar tanto tempo a pensar como é que certas decisões da vida das pessoas mudaram por causa da fé e não ficar tocado, não ter um melhor entendimento sobre mim mesmo. E entender-me melhor passou também por perceber que sou de facto uma pessoa religiosa e que sou cristão.

Com a Bíblia citada em cada capítulo.

É a mais famosa das histórias. É uma inspiração universal. Pela influência que tem na cultura ocidental, como narrativa fundadora. Quantas histórias, quantos clássicos não são versões da bíblia?

Nos seus livros há quase sempre uma mensagem positiva. Neste é dito que os desfavorecidos podem ter esperança. Isso tem a ver com a sua identidade cristã?

Sim, os meus livros são todos optimistas. Uma das minhas intenções é dizer que ser diferente pode trazer-nos benefícios. Talvez este livro seja o mais optimista de todos, tentado falar da diversidade do poder ser. Mas sou uma pessoa fundamentalmente optimista e isso é uma coisa boa se queremos escrever livros e viver disso. É muito difícil tocar as pessoas se tudo o que temos para dizer for negativo. Eu leio e escrevo porque acredito que é possível viver uma vida melhor.

O seu primeiro livro é de 2000. Passaram 14 anos e cinco livros. Cada um parece ser uma reacção a um tempo.

Acho que é verdade. Os meus livros têm de ser entendidos em relação ao tempo em que foram escritos. Gosto da ideia de estar a escrever em resposta ao que está a acontecer no mundo. A Chave do Sucesso foi escrito no fim de uma era em que a ideia de epidemia estava muito em voga, depois de uma experiencia extraordinária com o HIV. Eu tinha escrito sobre esse assunto, estávamos também a emergir de uma epidemia de crime, especialmente nos EUA. Esse livro veio dessa percepção de comportamentos contagiantes, de fenómenos de contágio. Hoje há outras obsessões. Estes livros são criaturas do espaço e do tempo em que foram concebidos.

Outliers é o seu livro mais conhecido. É o mais pessoal?

É muito pessoal. É sobre o sucesso e escrevi-o quando conquistei algum sucesso. Não quero parecer psicanalítico ao dizer que foi escrito para eu tentar perceber o que estava a acontecer comigo. O facto é que eu já não era um jornalista anónimo e estava muito confuso. Comecei a pensar nesse livro a partir dessa bizarria que estava a acontecer com a minha vida. E tem a história da minha própria família. Não fiz isso em nenhum outro livro.

A partir dele, começou a ser convidado para muitas conferências. Chamaram-lhe uma marca pela capacidade de vender, de convencer. Como é que se vê nesse duplo papel de orador, escritor, best-seller

As pessoas adoram usar esses chavões. Não sei o que significam. Sou jornalista e tive algum sucesso. Não sou uma caixa de chocolates. Quanto a contar histórias no papel ou perante uma plateia, o princípio é o mesmo. Não faço distinção entre falar e escrever. A minha voz falada é muito semelhante à minha voz escrita. Eu penso da mesma forma de pé a falar ou sentado a teclar. Muitas vezes, quando estou a escrever ou a preparar-me para escrever, dar uma conferência sobre o tema ajuda. Apresentar uma ideia em público ajuda-me a encontrar um modo de escrita.

Como reage aos críticos que o acusam de ser demasiado simplista nas suas conclusões?

Quando as críticas são a esse nível, ignoro-as. No que diz respeito a este livro, acho que muitas vezes esquecem que ao apresentar argumentos sublinho que a maioria das pessoas que passa por essas experiências sofre, mas o que me interessa é que essa fraqueza pode ser um ponto a favor; o que me interessa são as excepções. Uma discussão à volta das dificuldades à partida, dos vários resultados do trauma. Há um resultado positivo e um resultado negativo de partir com desvantagens, e o erro é achar que existe apenas um resultado negativo. Muitos dos meus críticos esquecem isso e dizem que eu aponto apenas os resultados positivos. Não é verdade. Digo sempre que há dois resultados e que exploro o que mais raro e difícil, porque para mim esse é o mais interessante. Quando sou acusado de ser simplista é porque as pessoas não prestam atenção aos meus livros ou andam apenas à procura de defeitos. É o preço que se paga por ser popular.

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