Imagens da fragilidade
Na sua nova exposição, João Tabarra interpela o espectador sobre os efeitos do Antropoceno na condição humana
É curioso notar como na obra de João Tabarra (Lisboa, 1966) se vai notando o regresso de uma série de motivos, de imagens, de situações. É como se o artista assumisse já um “léxico”, uma forma de fazer. Como se continuasse — e de facto continua — a fazer o mesmo trabalho, há vários anos, para o espectador. Evoque-se, portanto, uma coerência naquilo que João Tabarra nos mostra, mas uma coerência suportada num olhar que é reconhecimento de uma alteridade na qual se experimenta a capacidade de pensar, falar e partilhar. O espectador é, para o artista, um sujeito imagético e falante.
Biotope, inaugurada na passada sexta-feira no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, é exemplar dessa compreensão, com um conjunto de trabalhos (fotografias e uma instalação) realizados este ano. Desenvolvidos a par de leituras da obra Le silence des bêtes, la philosophie à l’épreuve de l’animalité (1999), da filósofa francesa Elisabeth de Fontenay, apresentam-se como interpelações tímidas, não intimidatórias, da condição humana sob os efeitos do Antropoceno.
Os protagonistas, os corpos criados pelo artista, confrontam-se com outros seres, caminham noutras paisagens, projectam uma sombra, vêem-se ao espelho. João Tabarra volta a dizer-nos que não devemos ser semelhantes às imagens, são elas que ainda se assemelham a nós. Na primeira sala, a série Intégration du vivant mostra-nos o artista diante de um chimpanzé embalsamado. Na primeira fotografia, dorme sobre a mesa, mãos debaixo do rosto, sujeito ao esgar petrificado do animal. Nas seguintes, um campo e um contracampo. Vemo-lo agora de pé, de dois pontos de vista, a contemplar o que alguém objectificou. Com este movimento, João Tabarra implica-nos, não mostrando mas dando a ver, para que o espectador possa construir a sua distância. E o que pode ele ver? As interpretações desdobram-se. A angústia do homem face à sua violência? A indiferença face à instrumentalização a que sujeita os outros seres vivos? A fotografia seguinte (Question politique) afasta o abismo que rodeia estas perguntas, mas por pouco tempo. O protagonista-actor deixa-se beijar por uma foca, evocando uma miríade de imagens familiares de reconciliação, afecto, enfim, de comunhão com o mundo dos outros animais. A ambiguidade excede contudo a imagem e o que sobra é o artifício, o produto de um enquadramento, de uma ficção. E sobretudo, acima de tudo, a fragilidade do próprio homem.
Numa parede da mesma sala, essa fragilidade dá lugar ao que parece ser a necessidade de uma relação quase simbiótica com outras formas de vida. Na série Masque sous camouflage, a personagem investiga o esqueleto de um dromedário antes de se esconder por trás dos ossos do bicho. Mas resistirá aquele homem à travessia do deserto, terá ele a mesma resistência do animal? Enquanto continuar desperto e duvidar, a reposta será afirmativa, como Terroir, passage tão bem parece significar. Nas fotografias deste conjunto, o actor percorre uma paisagem desolada, envergando a pele de um gorila. Nas mãos leva a máscara do primata e porventura a memória de uma filiação, talvez em busca da gruta onde um dia criou, com as mãos, a primeira imagem.
Biotope conhece, depois, uma pequena suspensão com a presença de um vídeo, Éclipse, Elizabeth de Fontenay, reads ‘the silence of the beasts’. Vê-se um eclipse que nunca se consuma, tal é a resistência, ainda que ténue, da luz, enquanto a voz da filósofa ecoa na sala. É o momento em que a palavra (quase) substitui a imagem, oferecendo-se como pensamento sobre o lugar dos animais e a dignidade das suas vidas no mundo dos homens. Não se trata, e é importante sublinhá-lo, de um ataque ao género humano (como a autora tão bem esclarece na entrevista publicada no livro da exposição, alertando para o perigo das metáforas e das visões utilitaristas), mas do reconhecimento de que o animal humano devia ter a responsabilidade de proteger outras alteridades.
Na sequência de Peur, Désir e Confiance, o actor regressa, de novo vestido de gorila, mas agora vê-se ao espelho, numa pose melancólica, os pés nus. Há uma evolução nos seus gestos, na sua pose, que culminará em Acceptation, onde o vemos agora a ler um jornal, cigarro entre os dedos, prestes a beber um café. Contrariada pela relação com o outro (o espectador, o duplo), a metamorfose só parcialmente se materializou. Em Biotope, como noutras exposições, João Tabarra continua a confrontar-se com o deserto, com a melancolia, com a desqualificação das imagens, propondo o múltiplo e o excesso da potência ficcional (veja-se a sombra que ilumina o fundo aquático de Miroirs grotte) para exceder a morte e desafiar o poder de todas das dominações. Neste caso, a dominação de todos os seres viventes pela tragédia do homem.