Harper Lee, a vítima do mito
Alguém que sempre fugiu ao mito é a sua principal vítima. Harper Lee, a escritora de Mataram a Cotovia, romance símbolo de uma América à procura de igualdade para a sua população, está no centro de uma polémica que a ultrapassa depois de ser anunciado um inédito seu a sair em Julho. Estará louca? A ser manipulada? Estará o livro à altura? Porquê agora? Ela promete continuar em silêncio
De avião, pode-se voar para Montgomery, Mobile, no Alabama; Pensacola, na Florida, ou Atlanta, na Georgia, e percorrer depois umas boas milhas de carro por vias secundárias. Tudo fica longe daquela cidade do interior sul dos EUA, uma terra de casas baixas de madeira, ruas largas e carvalhos centenários com cerca de seis mil e quinhentas habitantes e 28 igrejas. Baptistas, metodistas, pentecostais. Continua a pregar-se o medo e ideias conservadoras como quando a maioria da população vivia de plantar, colher e vender algodão. Agora como antes, nada de relevante parece acontecer naquele lugar do norte do Alabama, a mil e quinhentos quilómetros de Nova Iorque. Nada a não ser literatura. Todos os anos Monroeville é o destino de cerca de 65 mil pessoas. Chamam-lhes “peregrinos literários” e neste início de 2015 a romaria está mais intensa.
Vive-se o início de um novo capítulo no imenso romance que liga Monroeville a uma das suas mais ilustres habitantes. E o enredo está repleto de doses idênticas de expectativa, enigma e polémica, é rico em perguntas e troca de acusações, e à medida que se desenrola gera discussão apaixonada entre muita gente que nunca ouviu falar em Monroeville, o epicentro da acção, terra autodenominada capital literária do Alabama.
Foi em Monroeville que nasceu em 1926 Nelle Harper Lee, no número 263 da South Alabama Avenue onde agora está a geladaria Mel’s Diary Cream, e foi lá que ela conheceu e se tornou amiga, desde infância, de Truman Streckfus Persons, dois anos mais velho, um rapaz excêntrico, de ego gigante natural de Nova Orleães, no também estado sulista do Mississipi. Ele passava as férias em casa dos tios, vizinhos do lado de Nelle, a maria-rapaz filha mas nova de um advogado da terra. Seriam cúmplices na vida e na escrita. Ele assinaria com o nome de Truman Capote. Ela seria Harper Lee, ficando o primeiro nome, Nelle, apenas para os mais próximos. Já os dois a viver em Nova Iorque, ela formada em Direito, ele a perseguir a literatura, continuaram próximos. Ela acompanhou-o em várias viagens ao Kansas durante a investigação para o que seria o best-seller de Capote A Sangue Frio, e diz-se que ele terá tido mão no até agora único romance de Lee, Mataram a Cotovia.
É a primeira de muitas especulações sobre a vida pública de Harper Lee que ela escolheu gerir com silêncio, evitando jornalistas, mantendo-se tão privada quanto possível. Desse não dito nasceu uma lenda que se alimenta do acto de calar tudo o que é íntimo em Lee, e procurando na geografia que ela pisou sinais reveladores de uma identidade tão esquiva quanto sedutora. Em Yorkville, no Upper East Side de Nova Iorque onde viveu, mas sobretudo na pequena povoação do Alabama, onde nasceu e escolheu morrer. Com Harper e Truman, Monroeville, situada entre florestas de árvores de corte e campos de algodão, ganhou uma dimensão algures entre a realidade e a ficção, pouco detectável na cartografia comum, mas indelével no modo como moldou a vida e a arte dos seus mais famosos habitantes, autodenominando-se, por isso, capital literária do Alabama, com direito a destaque em roteiros e guias especializados. Foi de Monroeville que nasceu Maycomb, a cidade criada em Mataram a Cotovia, e Monroeville está no centro dos contos A Christmas Memory (1956) e The Thanksgiving Visitor (1968), de Truman Capote.
A descoberta
Monroeville é o lugar de sempre, mas agora há novas personagens e acontecimentos a apimentarem uma acção que parecia escrita há muito e com final previsível. Após sofrer um AVC em 2007, pouco depois de receber de George W. Bush a medalha da Liberdade, Lee vendeu o seu apartamento em Manhattan e fixou-se na terra natal onde vive num lar de idosos, cada vez mais afastada de curiosos. Dizem os poucos que a vêem que ficou condicionada a uma cadeira de rodas, está surda e praticamente cega. Nessa trama previsível, acabaria naturalmente no silêncio em que se mantinha desde o sucesso que se seguiu à publicação de
Mataram a Cotovia, em 1960, romance que lhe valeu o Pulitzer em 1961 e seria adaptado ao cinema em 1962 no filme com o mesmo nome que valeu o Óscar de melhor actor a Gregory Peck no papel de Atticus Finch, o advogado que desafiou convenções em nome da justiça e da igualdade racial num livro que se tornou um símbolo.
ganhou uma escala que rapidamente ultrapassou a da pequena mulher de cabelos brancos, franja curta, riso aberto, irónica, com um sotaque do Sul que resistiu a anos de Nova Iorque. Ela quis ficar longe desse incontrolável em nome de uma dimensão humana que sempre sublinhou nas poucas vezes em que falou publicamente da obra. Mas aos 88 anos, a mesma mulher que jurara não voltar a publicar, que garantia ter dito tudo o que tinha para dizer no único livro que escreveu e publicou há 55 anos, que geria a sua vida social de forma espartana e não dá uma entrevista desde 1964, vai ter um romance novo no mercado, um livro que, afirmou mais uma vez através de terceiros, acreditava estar perdido para sempre.
Aconteceu mais uma vez em Monroeville. A notícia dada pelo New York Times no dia 3 de Fevereiro tinha como fonte Tonja B. Carter, advogada que representa Harper Lee. Contava que em Agosto passado, quando estava a procurar documentos deparou com um manuscrito que primeiro achou ser o de Mataram a Cotovia. Os nomes das personagens eram os mesmos. Lá estavam Atticus Finch e a sua filha Scout, a narradora que os leitores conhecem aos seis anos e que lhes vai apresentado o mundo tal qual o apreende. Só que o tempo era outro. Pai e filham estavam mais velhos e nenhuma das passagens que ia lendo era familiar a Tonja. Já não se estava nos anos da Grande Depressão, mas vinte anos depois, na década de 50, tempo de profunda tensão racial. “Fiquei estupefacta”, declarou a advogada a um jornalista sobre o momento em que, depois de ter digitalizado aquelas páginas, percebeu ser outro livro, um inédito, com um título retirado do Livro de Isaías, do Novo Testamento, Go Set a Watchman. Numa entrevista publicada no dia 7, no mesmo jornal, conta a reacção de Harper Lee. Perguntou-lhe se o livro estava completo e ela respondeu: “Completo? Acho que sim. É o pai da Cotovia”. Diz ainda que Lee ficou muito contente com a descoberta e começaram desde então, em segredo, os preparativos para a publicação do livro que antecedeu Mataram a Cotovia.
Casada com um primo de Truman Capote, Tonja B. Carter passou a ser a sua representante legal desde que Alice Lee, irmã de Harper, se retirou da advocacia em 2011, quando tinha 100 anos. Até essa altura, Alice trabalhava ainda no escritório que fora do pai, ex-senador, dono do jornal local, advogado que serviu de modelo a Atticus Finch, o também advogado de Mataram a Cotovia, personagem que, desafiando a moral local da época, defendeu um negro falsamente acusado de ter violado uma branca. Alice Lee morreu em 2014, mas desde 2011 que a vida de Harper mudou e Tonja B. Carter está a desempenhar um dos principais papéis nessa nova existência, encetando em nome da cliente processos contra o que considera abuso de nome e de imagem: contra a publicação de um guia turístico que traçava o roteiro literário de Lee em Monroeville; contra o museu local por explorara a obra da escritora; contra a biografia assinada pela jornalista do Chicago Tribune Marja Mills, que se mudou para Monroeville durante 18 meses, para uma casa ao lado daquela onde viviam as irmãs Lee – gravou conversas, consultou arquivos, partilhou com elas um quotidiano que relatou em The Monkingbird Next Door, biografia autorizada que, quando foi publicada, em 2011, seria contestada pela biografada.
Lee obrigava a autora a recuar na promoção, desmentindo que aquela fosse uma obra feita com o seu apoio. A declaração de intenções estava assinada por Lee e foi enviada por Tonja B. Carter. Nessa biografia, Mills falava da relação entre as duas irmãos, contava a determinação de Harper Lee de se manter tão reservada quanto possível, e contava a ruptura entre ela e Capote dizendo que Harper o achava um psicopata. Nada que visse alterar a história, mas acrescentava pormenores sobre uma mulher para quem todos os holofotes apontavam mas que sempre escolhera a sombra, como quem diz: tenho muito pouco a ver com o que me aconteceu, só escrevi um livro e isso é tudo.
Mas não escreveu só um e essa é a novidade. Houve um ensaio para a obra-prima. “Eu era muito nova e o editor pediu-me para escrever um livro na perspectiva de Scout enquanto criança”, terá dito Lee para justificar o abandono de Go Set a Watchman e passar à escrita do que seria um dos maiores fenómenos literários de sempre. Desde que foi publicado, Mataram a Cotovia vendeu 40 milhões de exemplares, continua a vender em média um milhão por ano, a render milhões em direitos de autor. É uma arca muito rentável, mas Lee não mostra sinais dessa riqueza. Nada ou pouco se sabe dos efeitos do livro na sua vida privada. E mais uma vez é através de Tonja Carter que chegam as novidades. Go Set a Watchman será publicado em Julho de 2015 pela HarperCollins, a editora que tem os direitos de Harper Lee, numa edição de 304 paginas sem uma única revisão e uma tiragem de dois milhões de exemplares.
A controvérsia estalou, tão veloz quanto a corrida ao livro. Com história da descoberta a ser reproduzida a cada dia com pormenores actualizados em jornais e suplementos de todo o mundo. Porquê só agora?, tem sido das perguntas mais repetidas, formulada com base em informações de que a autora estará com as suas faculdades físicas e mentais diminuídas e pouco capaz de tomar decisões como a que transforma o seu livro único durante 55 anos, símbolo da luta contra a segregação racial e pela defesa dos direitos humanos na América, afinal no primeiro volume de uma sequela. Ou melhor: no segundo, já que Go Set a Watchman foi escrito antes de Mataram a Cotovia. Pouco importa a sequência quando estamos no campo das paixões. Logo que houve o anúncio de um novo livro a reacção dos leitores foi imediata. O título saltou para o primeiro lugar de vendas da Amazon, seis meses antes de estar disponível, numa edição em papel e digital. Os mais acérrimos defensores da reputação de Lee desconfiam da capacidade de decisão da escritora e do quanto esta decisão está a ser tomada à sua revelia: ela sempre defendeu o papel e sempre foi muito crítica das novas tecnologias aplicadas à literatura.
Vamos à personagem de que se fala, peça central neste capítulo: Tonja B. Carter. Escusando-se a falar aos jornalistas que têm viajado para Monroeville, manda cartas e mails às redacções. O New York Times volta a ser o meio escolhido para dizer que Harper Lee está triste e a sentir-se humilhada com as acusações que a dão como pouco capaz. Insiste que estamos perante uma mulher independente, de personalidade forte e muito sábia, que está satisfeita com a descoberta do seu romance perdido. Ela queria estar a celebrar o facto em vez de ter de se estar a defender acerca da “sua capacidade de tomar decisões”.
Nada que cale as perguntas. Lee mandou dizer que não falará, que não fará nada para promover o livro. Escreveu-o. O argumento é o mesmo de sempre. Há a mulher e a autora. Ela quer libertar-se da segunda.
Abre-se o livro, o único que se conhece de Lee, a assertiva, a irónica: “Maycomb era uma cidade velha, mas quando a conheci era uma cidade velha e cansada”, uma cidade de pessoas “sem qualquer passado”. A voz é a de Scout, a rapariga de seis anos, amiga de Dill, o rapaz acerca do qual Capote afirmou: “Dill sou eu, claro”. Harper Lee vive por ali. Entre Maycomb, terra da ficção, e Monroeville. Quem a quiser conhecer ouça Scout, ela está em Maycomb, o lugar que todos procuram quando visitam Monroeville no Alabama. Há perguntas? Claro. Lee nunca dará respostas, daí que o mito seja indestrutível, como afirmou um jornalista do Guardian, o mesmo que defendeu que talvez este livro seja uma forma de Lee recuperar a sua humanidade. Agora ela pode falhar.