Há um histriónico na sala: Fabrice Luchini
Intérprete, em L’Hermine, filme de Christian Vincent, da personagem de um juiz que dirige uma sala de tribunal como um metteur en scène num palco, o actor francês trouxe o seu teatro a Veneza.
Houve um tempo no Festival de Cannes para Lars von Trier, mas isso era no registo do provocador deprimido a fazer a sua psicanálise em público. O Festival de Veneza teve direito ao verdadeiro histriónico, feliz e culto a fazer o seu teatro, só aparentemente descontrolado porque sabendo bem por onde se perder.
Ou seja, encenador do seu espectáculo e até ditador esclarecido a impor as ficções aos outros — como em relação à jornalista que saiu às tantas da conferência de imprensa, “ah, ela vai-se embora, tem os seus afazeres, se calhar tem um romance...”.
Na verdade, Fabrice Luchini, 64 anos — é o histriónico de que se fala —, fez com uma sala de conferências de imprensa o que a personagem que interpreta em L’Hermine, de Christian Vincent (competição), um juiz, faz com a sala de audiências: encenou a peça, dirigiu os actores, atribuiu-lhes lugares na história e até convidou o público a saber o que se passa nos bastidores.
Isto, em termos daquilo que aconteceu na sala, significa passar em pouco tempo de Zola e Cocteau a François Hollande (os impostos que ele cobra...), do teatro, onde Luchini diz ser responsável por tudo, pelos grandes planos e pelos planos gerais, ao cinema, onde se submete ao realizador (Rohmer, Vincent, Bruno Dumont ou Ozon) e, por isso, onde a ferocidade histriónica é derrotada pela vontade de cumprir ordens, e ainda passar da França, onde há um Norte deprimido, “abandonado pela República” (Luchini agora filma aí, com Dumont) a Itália, onde no Norte as pessoas são ricas. Tudo acabou com o “L’Italie, L’Italie! La Francia a finito!” atirado, como um descer do pano, por um francês filho de emigrante italiano.
No filme, L’Hermine, Christian Vincent coloca o espectador perante várias possibilidades também, e a felicidade do filme é não fazer uma hierarquia. Isso faz o prazer do espectador. Que não sabe qual é a história pela qual o filme se interessa — ou se está a contar uma como um jogo de ilusão porque na verdade quer contar outra - mas sente que está a ser convidado para aceder a um espaço onde elas se multiplicam: a sala de audiências de um tribunal, filmada como um teatro.
O juiz, que se chama Racine (Luchini), é o metteur en scène, homem de uma ironia fria, sem família (sabe-se que saiu de casa e vive num hotel), mas... e aqui vai uma das histórias, a mandar mensagens por telemóvel a uma das juradas enquanto (aqui vai outra...) interroga um homem acusado de ter morto a pontapé a filha e, nos intervalos, a dar lições aos jurados sobre a Verdade.
História de amor com floreado social em fundo (tintada a metafisica) ou filme social adocicado pela hipótese que é dada ao amor entre duas personagens na idade madura?
L’Hermine é um filme mediano e nunca se convence de outra coisa. Ao contrário de A Bigger Splash, de Luca Guadagnino (concurso), que começa por ser um remake de A Piscina, de Jacques Deray (cineasta e cinema que Guadagnino, aliás, arruma com: “é cinéma de papa”), e acabou num arrogante exercício de vazio que foi mesmo à água (vaias no final da projecção de imprensa).
O quarteto que se confronta no filme, até a coisa acabar no fundo da piscina - no original eram Alain Delon, Romy Schneider, Maurice Ronet e Jane Birkin —, é formado por Matthias Schoenaerts, Tilda Swinton (não funciona como rock star, mas o guarda roupa é óptimo...), Ralph Fiennes e Dakota Johnson.
Guadagnino enche a banda sonora de Rolling Stones versão Emotional Rescue (e declarações sobre David Hockney, que cita no título). Mas para além da superficial figuração de um glamour ácido, com tiques de câmara e enquadramentos a condizer, não há nada a acrescentar à versão original e só navega no vazio da pretensão. Depois de Sou o Amor (2009), o italiano confirma-se como cineasta karaoke, a “cantar” e a esbracejar por cima das canções dos outros.
Há uma evolução do cinema do argentino Pablo Trapero em direcção a uma musculação que o torna eficaz mas às custas de uma expressividade, que fica diluída no maquinismo. Um filme assim pode parecer várias coisas, El Clan (concurso) pode parecer-se... com um Scorsese, por exemplo.
Bateu todos os recordes que poderia bater no mercado argentino. É a história do clã Puccio, família aparentemente normal, de classe média de Buenos Aires, que nos anos 1980 se dedicava ao rapto (e assassinato) de pessoas, extorquindo resgates aos familiares. A história apaixonou Trapero, então na sua adolescência, e toda a Argentina à medida que iam sendo feitas descobertas sobre a forma como pai, mãe e filhos estavam implicados nesses actos.
Eram os anos do final da ditadura, começava a democracia, mas os Puccio eram ainda um sintoma, o rosto do vazio moral e da crueldade que um regime totalitário inocula, como o serial killer Tony Manero no filme do mesmo nome do chileno Pablo Larrain — filme mais singular, aliás, que estrebuchava dentro do seu silêncio pós-traumático, quando El Clan nivela a sua “conversa” em todos os lados.