Foi há 20 anos. Lisboa era Capital Europeia da Cultura. Mário Soares, então Presidente da República, organizava o polémico congresso “Portugal? Que Futuro?”, enquanto o primeiro-ministro Cavaco Silva ignorava o que lá se passava, partindo numa famosa viagem familiar a um local paradísico até ali desconhecido – Pulo do Lobo, nas margens do Guadiana. Os Nirvana tocavam em Cascais. Os Underground Sound Of Lisbon lançavam So get up, com a voz do americano, então radicado em Portugal, Darin Pappas, a acender as pistas de dança do mundo. Ao mesmo tempo um músico de jazz do Porto, Pedro Abrunhosa, na companhia dos Bandemónio, propunha canções acid-jazz no álbum Viagens, tornando-se num êxito.
1994 foi também o ano da visibilidade do hip-hop em Portugal, passando das ruas dos bairros da Grande Lisboa, onde até aí estava confinado desde o final dos anos 1980, para os lares dos portugueses. General D, que nos anos anteriores fora o grande dinamizador, encetando colaborações e sendo o primeiro rapper a assinar um contrato discográfico, lançava na EMI o EP PortuKkkal É Um Erro, projectando vontades sonoras que andavam em ebulição há anos nos bairros da periferia de Lisboa. E em Outubro desse ano foi editada a compilação Rapública, primeiro documento colectivo da realidade hip-hop lusa, que reunia Boss AC, os Zona Dread de D-Mars, os Family de Melo D, os Black Company de Guto e Bambino, os Líderes da Nova Mensagem de MC Nilton ou os New Tribe de Lince.
Do mesmo ano é também a primeira aventura discográfica dos Da Weasel com o EP More Than 30 Motherf*****s e, no Porto, os Mind Da Gap davam os primeiros sinais de existência.
“Já passaram 20 anos?”, pergunta Sérgio Matsinhe, mais conhecido por General D, quando o fazemos viajar no relógio do tempo. “Parece que foi ontem”, diz. Tem hoje 42 anos.
Aquilo tinha interesse nacional
No final dos anos 1980, ele e outros cúmplices, como Maimuna Jalles, Lince ou Bambino, que se juntavam em Miratejo, na margem Sul de Lisboa, zona de Almada, arquitectou as bases da cultura hip-hop portuguesa. “Ouvíamos aquela música através de cassetes, trazidas de França, por alguns de nós”, recorda. “Na altura, estava numa fase de transição, a tentar encontrar a minha identidade, o que era normal porque na escola eu e a minha irmã éramos os únicos negros. Ao ouvir aquela música – coisas como Public Enemy ou LL Cool J – comecei a percepcionar algo com o qual me identificava. Nesse tempo não queria ser o rosto de nada, nem sequer cantar, estava apenas interessado em apoiar o movimento rap. Percebia que era uma coisa importante. Aquilo que estávamos a fazer nos bairros tinha interesse nacional.”
Durante esses anos foi o principal rosto do rap em Portugal. O dinamizador, o activista, a voz, o “pai”. Em 1990 foi um dos organizadores do primeiro festival rap em Portugal realizado na sala Incrível Almadense, em Almada, com a primeira formação dos Black Company, da qual fazia parte, ou os African Power. Em 1992 gravou com os Pop Dell’ Arte o tema Mc holly. No ano seguinte foi Norte sul, por Timor, com Tiago Lopes (Golpe de Estado, Linha Geral), com o nome The New Hard, integrando a compilação After Life, que teve direito a videoclip. E nos anos seguintes lançou um EP e dois álbuns, ganhando protagonismo. Quando se encontrava a preparar o terceiro álbum de originais, no final dos anos 1990, perdemos-lhe o rasto. Nunca mais ninguém o viu. Tornou-se um mito. Nos meios musicais, durante a última década e meia, foi-se especulando sobre o seu paradeiro. Conjecturava-se: Moçambique, Brasil, Jamaica, Inglaterra ou Alentejo. Sobre o que andaria a fazer havia histórias para todos os gostos: desde produtor na Jamaica a eremita numa vilória do Alentejo. Dizia-se que se fora para sempre, zangado com o país, com as editoras, com o meio cultural e até com a comunidade hip-hop.
Em Londres, onde reside há muito, e onde o fomos encontrar, Sérgio Matsinhe sorri. “Ao longo dos anos fui sabendo dessas histórias e de outras. Houve quem me tentasse contactar e entrevistar, mas nunca estive interessado. Estava no meu canto. Só queria viver a minha vida e estruturar a forma como iria regressar, mas os anos foram passando. Agora sim, sinto-me preparado”. Já depois de termos falado com ele foi confirmado que irá regressar com a sua banda, para actuar no festival Lisboa Mistura, de 18 a 28 de Junho em Lisboa.
Ainda a semana passada Boss AC, o rapper da mesma geração que construiu uma carreira de maior sucesso, e que muitas vezes é apelidado de “pai do rap português”, escrevia: se “alguém deve ter esse título, com certeza que essa pessoa é o meu amigo de longa data, General D. Ele sim, abriu o caminho para todos nós! Foi o primeiro a gravar, a primeiro a ter um videoclipe, o primeiro a ter banda, o primeiro a ter contrato, o primeiro em tantas coisas. É pena a memória das pessoas ser tão curta.”
O nosso encontro com General D começou a desenhar-se através do Facebook. Em Dezembro do ano passado, num pequeno texto, interrogava-me sobre o seu paradeiro e entre os diversos comentários produzidos surgiu o do rapper Valete que afirmou que ele estava em Londres. Sabia-o porque trocara emails com ele em 2012, convidando-o para o seu concerto de consagração, no Campo Pequeno, e ele recusara.
Desde o final dos anos 1990 remetera-se ao silêncio. Na nossa presença haveria de contar-se a si próprio pela primeira vez. O encontro não foi fácil. Meteu vários emails trocados com a ex-mulher, Aida Lomba, e já em Londres houve dois encontros desmarcados à última hora. Queria perceber as nossas intenções, estava apreensivo, não queria fotos. Quando finalmente nos conseguimos encontrar, há duas semanas, numa quinta-feira, às 19h horas, à saída da estação de metro de Leicester Square, lá surgiu, muito tranquilo. Não vestia roupas africanizadas, como nos habituáramos a vê-lo há vinte anos, mas identificámo-lo de imediato, no meio da multidão: imponente, cara de bebé, apesar dos mais de 40 anos. Ele, que nasceu em 1971 em Moçambique, e que chegou aos dois anos à margem sul de Lisboa, revelou-se um excelente aluno e desportista, sendo recordista regional dos 100m em atletismo e campeão regional de velocidade na variante 4x100m.
Não era moda, era a sério
Quando nos sentámos no restaurante vegetariano que escolhera (pratica o veganismo, faz questão de afirmar) percebe-se que não esqueceu do que se passou na sua vida há muito tempo. “No início nem sequer queria dar a cara. Mas às vezes na vida acontece isso: começamos a puxar por algo em que acreditamos e, de repente, temos mesmo que aparecer.”
Também não esqueceu quem foi essencial para a sua mediatização. Programas de TV como Lentes de Contacto e Pop Off, programas de rádio como Repto de José Mariño ou o jornal Blitz. “Foi com o Lentes de Contacto que conheci o Tiago Lopes e gravámos a primeira coisa. Foi aí que começou tudo”, recorda. “Naquela altura tentei convencer as pessoas à minha volta, que faziam parte do movimento, que aquilo que estávamos a fazer tinha um sentido. Quando entrei em contacto com as pessoas da produtora Latina Europa que faziam na TV o Pop Off, aí sim, os meus amigos de Miratejo perceberam que aquilo transcendia o bairro e que podia ser importante. Foi aí que comecei a juntar pessoas e formei aquela que viria a ser primeira das encarnações dos Black Company.”
Num ápice transformou-se no rosto do hip-hop em Portugal. Hoje diz que possivelmente foi tudo rápido de mais: não estava preparado para o impacto que o seu discurso de consciência social e política desencadeou na sociedade portuguesa, embora também esta não tivesse suficientemente madura para o enquadrar. “Quase sem dar por isso estava na televisão, estava em todo o lado. Sinceramente não estava preparado, espiritual e estruturalmente, para o impacto”, reflecte. “A geração dos meus pais era muito mais cuidadosa com o que vestia ou com o que dizia. Não queria dar nas vistas. Não exigia grandes direitos políticos, económicos e sociais.”
Ele não. As suas letras eram virulentas, como até aí a sociedade portuguesa nunca ouvira de um negro. Portugal, que tinha uma imagem de si como país integrador da diferença, era confrontado com o desejo de visibilidade da segunda geração de portugueses com origens africanas, que se expressava através do rap. E o que tinha para dizer nem sempre era entendido. Falava claramente de racismo, de política, de direitos ou sobre o conflito entre gerações afro-portuguesas. “Por causa do conteúdo das letras também não sei se eu estava preparado para o impacto do que dizia: nas pessoas e na forma como me devolviam isso. Fui apanhado de surpresa.”
O hip-hop era afirmação cultural. Era declaração identitária através da arte. Embora o elemento “Arte” nem sempre fosse percebido. “No início era encarado como coisa de miúdos, ou então como qualquer coisa efémera. Mesmo na minha família estavam sempre a interrogar-me porque é que perdia tempo com aquilo. Para mim é uma enorme satisfação saber que 20 anos depois ainda está lá tudo, ainda não acabou.” E sem parar: “Naquele tempo era tudo novo. Era uma forma de falar e de estar nova, à qual as pessoas não estavam habituadas. Não estavam acostumadas a ver um negro chegar à TV e dizer as coisas sem falas mansas, de forma directa, mostrando o que sentia, uma realidade crua, expressada de forma artística. Não era moda. Era a sério. Ainda bem que conquistámos o respeito de muitas pessoas. Claro que havia ingenuidade a todos os níveis. Tínhamos 17 ou 18 anos, é natural que assim fosse. Mas também é verdade que as grandes revoluções começam assim – mesmo quando não existe um entendimento total da realidade e da sociedade.”
Durante esse período foi convidado, para as mais diversas sessões públicas, a debater assuntos sociais e políticos. Aproximou-se do Movimento Política XXI no contexto das eleições ao Parlamento Europeu e foi porta-voz da Associação SOS Racismo, tendo sido um dos rostos dos protestos anti-raciais que se fizeram sentir no seguimento da morte de Alcino Monteiro em 1995.
A sua voz era ouvida, mas nem sempre compreendida, com o movimento rap a ser muitas vezes associado à delinquência.
Hoje esses desencontros fazem-no sorrir. “Até pela forma como me vestia, por causa do cabelo e da roupa africana, as pessoas vinham falar comigo na rua e perguntavam-me se eu tinha algum problema. ‘Está tudo bem contigo?’. Até a minha família: ‘Não te vistas assim que as pessoas pensam que és mendigo!”
Até 1994 surgia como o elemento aglutinador da comunidade rap. Depois cada um seguiu o seu caminho. Criaram-se ramificações e divisões. Ele sempre defendeu que não valia a pena fazer a mera réplica dos modelos americanos do rap. “Não fazia sentido transportar a realidade americana para o contexto português, mas sim pegar numa realidade que me era próxima, como a música africana, que os meus pais tocavam, e com a qual cresci. Tinha que misturar essas duas realidades.”
A postura criou adeptos e hostilidades. “Foi como criar uma revolução dentro da revolução”, ri-se. “Teria sido mais fácil agradar a quem ouvia rap francês ou americano, mas mesmo para as pessoas que tinham curiosidade em relação ao hip-hop, o que eu trazia não era exactamente o que elas queriam ouvir. Mas entendia que era essencial começar por aí. Os Fugees ou os Public Enemy também foram buscar elementos do seu passado, como o reggae e a soul. Nós tínhamos que ir buscar também coisas do nosso passado como a música africana.”
Em 1995 lançou o primeiro álbum, Pé Na Tchôn, Karapinha Na Céu, com os Karapinhas. O tema Black magic woman, numa toada soul, acabou por obter sucesso, embora o álbum tenha uma multiplicidade de influências, com assento nas africanas, participando nele Boss AC, Marta Dias e Sam. Nessa fase, colaborações era com ele, participando em discos dos Ithaka ou dos Cool Hipnoise, ao mesmo tempo que ia sendo convidado para actuar em Inglaterra, França ou Espanha.
No Verão desse ano, no contexto da defesa das gravuras rupestres de Foz Côa, o país cantou o refrão da canção Nadar dos Black Company, incluída em Rapública. Um tema lúdico, seguindo os vectores sonoros do rap americanizado, que acabou por se tornar no primeiro grande êxito hip-hop dessa época.
“Não fiquei nada chateado”, diz General D. “Sempre lhes desejei o melhor. Só me preocupei em me demarcar desse estilo porque estava a procurar fazer uma coisa diferente, mas respeitando outros modelos que poderiam aparecer. Na altura surgiram algumas trocas de palavras entre nós, tiradas do contexto, que poderiam indiciar que estaríamos em conflito, mas isso nunca aconteceu. Conhecíamo-nos bem. Limitei-me a insistir na minha forma de ver o hip-hop e continuar. Sentia que havia espaço para mim. Ainda sinto que existe espaço para mim.”
Em palco tinha uma presença intensa, magnetizante até. Era um líder. Quando lhe recordamos o palco, comove-se. “Disso, sim, tenho saudades. Muitas, mesmo. Quando penso em voltar, começo a escrever e vejo-me em palco. Faz-me muita falta. Ainda farei algumas performances, pela certa.”
A chamada “música negra” nunca teve grande projecção em Portugal entre as décadas de 1970 e 1990. A cultura rock prevaleceu sempre. Talvez por isso as grandes editoras tinham dificuldade em enquadrar os projectos hip-hop, apesar da projecção internacional do género desde os anos 1980. Essa é pelo menos a opinião de General D. “As editoras tinham vontade. Queriam fazer coisas. Mas não sabiam como. Em países como os EUA, Inglaterra e França existiam pequenas editoras, dirigidas pelos rappers, que detinham o conhecimento da cultura e do contexto social que envolvia a música. Dessa forma, quando as grandes editoras contratavam alguém, lidavam com as pequenas, a nível comercial. Quando um executivo de uma grande editora tem de lidar, de repente, com um jovem negro, revoltado, cheio de coisas para dizer, é natural que não o entenda. Não sabe interpretar isso. Esse era um dos problemas em Portugal. Se estivesse noutro país existiria um diálogo negocial entre editoras. Não seria eu a comunicar directamente com pessoas que estavam habituadas a lidar com fado ou rock, ou seja, com realidades distintas.”
O segundo álbum, Kanimambo, de 1997, acaba por ter menos impacto que o anterior, mas General D não tem duvidas que é o seu melhor registo. “Não havia um single que se destacasse como no anterior, porque a ideia era ter um álbum coeso. Tinha consciência que, independentemente dos resultados comerciais, era o melhor. E mais representativo do que queria fazer. Infelizmente as coisas foram numa direcção diferente quando estava a preparar o terceiro álbum. Parece-me que iria ser ainda mais maduro, dentro do mesmo estilo.”
Sobre a preparação desse terceiro disco reina o mistério. Houve notícias dando conta de que existia o propósito de gravar com a dupla jamaicana Sly & Robbie, então no auge da fama, conhecidos pela obra em nome próprio e também por terem produzido ou tocado com grandes nomes (Grace Jones, Bob Dylan, Rolling Stones, Santana, Ben Harper, U2 ou Sting). Há registos de que se teria deslocado à Jamaica para trabalhar com a dupla, mas nunca se ficou a saber se daí resultou algo. “Sim, fui à Jamaica, estive lá, colaborámos, criámos uma música com diversas versões, onde entra também o cantor Anthony B, e fizemos também um videoclip em conjunto”, esclarece pela primeira vez. “Esse trabalho nunca chegou a ver a luz do dia porque na altura não tive apoios financeiros para o fazer.” Dizemos-lhe que deveria dar a conhecer esse trabalho hoje. “Pois é, tenho que ver onde isso está.”
Gravar com Sly & Robbie não significava apenas trabalhar com uma dupla que era uma mais-valia artística. Era também um potencial cartão-de-visita para se apresentar noutros mercados. “Era essa a intenção, até porque mercados como o francês tinham mostrado interesse pelo meu projecto.” O contacto inicial foi da EMI, “mas a resposta deles foi um orçamento ridículo, de tão caro.”
Algum tempo depois, em Inglaterra, conheceu um cantor jamaicano, cúmplice do duo, e acabou “por conseguir um preço de amigo.” Nessa altura já a editora estava reticente e ele decidiu avançar com os seus próprios meios. “Foi um investimento meu”, conta. Quando regressou da Jamaica, já com a gravação na mão, as coisas não correram bem. “Não havia acordo com a editora, com os agentes, com os músicos. Simplesmente não havia ambiente.” Sentiu-se isolado e sem apoio. “Fazia tudo sozinho e sem estrutura.” Sentiu enorme pressão e resolveu fazer uma pausa. Tinha que se repensar enquanto pessoa e enquanto artista. Mas quando hoje olha para trás não guarda ressentimentos. “Estava sentido nessa altura. Agora meto-me no lugar de editores e agentes e imagino que, provavelmente, perderam dinheiro com o meu segundo álbum e recearam investir no terceiro. Não ponho culpas em ninguém. Agora só quero fazer a minha vida.” Agora, diz, gostava de ter a oportunidade de gravar mais um disco, completar qualquer coisa que ficou lá atrás. E regressar ao palco. “Mas quero estar preparado. Espiritualmente, também.”
Dimensão espiritual
A dimensão espiritual, como lhe chama, é algo que percorre toda a conversa, embora não seja praticante de nenhuma religião. “Faço a minha mistura. Acredito em Deus, sempre acreditei, mas não tenho uma religião em particular.”
No final dos anos 1990, estava frustrado por perceber que a sua estratégia, o seu projecto, como o delineara, não eram acolhidos. E sentia que tinha de dar uma pausa a si próprio. “Tinha que me reencontrar com a minha própria revolução.” Disse à editora que iria à sua vida, apesar do contrato “para mais um disco ou dois.” E resolveu viajar, sem objectivo em mente. Partir, apenas. “Fui para África, Moçambique, Angola, Nigéria e depois Brasil. Fez-me bem encontrar uma outra África, fora do espaço da língua portuguesa, na Nigéria. Tive uma perspectiva mais global.”
Mas como ganhava a vida?, tendo em atenção que gastara o que tinha na operação Sly & Robbie. “Fiz de tudo”, conta de forma tranquila. “Trabalhei em limpeza, até lavar sanitas, por exemplo. No Rio de Janeiro cheguei a dar o meu passaporte para poder ficar mais uma noite ou duas até conseguir dinheiro para pagar no local onde estava. Lembro-me de ter sido alimentado a cachorros quentes durante uns dias por uma pessoa que os vendia na rua e que confiou que eu os iria pagar mal tivesse dinheiro para o fazer. Foi assim. Foi duro estar sozinho.”
No Brasil esteve cerca de um ano. Aí a música ainda estava presente. “Fiz capoeira, estive em contacto com outros movimentos de música e não só, e ainda mantenho essas ligações. Foi duro, mas muito importante. Aproveitei para escrever. Conheci muita gente. Vi concertos, como os Racionais MCs. Havia até uma possibilidade de voltar e fazer uma colaboração com eles, mas não aconteceu.”
Depois do Brasil, foi para os Estados Unidos, onde esteve dois anos, em Boston. “Inicialmente estive com um grupo de brasileiros, mas depois acabei por não ficar muito com eles, apesar de não conhecer ninguém. Acabei por encontrar trabalho, inicialmente no Kentucky Fried Chicken e depois na limpeza, inclusive a limpar ruas, e fiquei por lá. Foi importante do ponto de vista espiritual, passava muito tempo comigo próprio. E trabalhava imenso, tentando juntar algum dinheiro para enviar, de acordo com as minhas responsabilidades.”
Em Londres viviam a ex-mulher e os dois filhos. E esse facto viria revelar-se determinante. “Pesava-me muito estar longe deles”, afiança. Queria vê-los crescer e acabou por se mudar para Londres na primeira metade dos anos 2000. O ritual repetiu-se: vários empregos precários, como controlador de trânsito, por exemplo, passando multas a carros mal estacionados. “É possivelmente o pior emprego que existe neste país. As pessoas chateiam-se. Chamam-te nomes. Tentam humilhar-te. É do piorio. Fiz isso durante dois anos.” Depois começou a fazer cursos de administração e manutenção de propriedades, aprendendo também a comprar casas, algo que o pai fazia em Portugal, o que o leva a lançar uma gargalhada. “Dei tantas voltas e acabei a fazer o mesmo que o meu pai, que era algo que não queria.” Depois dos cursos, lançou-se à prática, ao mesmo tempo que trabalhava na cozinha e fazia cursos de chefe de cozinha. “Tudo ao mesmo tempo”, declara.
“Até que comecei a ganhar dinheiro na administração de propriedades,larguei os trabalhos todos e comecei a trabalhar para mim próprio. Há seis anos que trabalho nisso. Antes da crise no acesso ao crédito, negociava com os bancos, os promotores imobiliários e as pessoas, tentando arranjar descontos e comprar boas casas em nome de 20 ou 30 pessoas. Depois da crise no acesso ao crédito acabou tudo isso. Hoje estou mais focado na gestão e manutenção de propriedades.”
Ao mesmo tempo que a sua vida, do ponto de vista material, se ia equilibrando, foi-se “aperfeiçoando também interiormente”, expõe. “Comecei a fazer artes marciais, tornei-me vegan, especializei-me em cozinha vegan e sou chefe nessa área. Não como carne, nem peixe, não bebo leite, nem nada do que é derivado dos animais e há muitos anos que também deixei de beber álcool.”
No último ano lançou-se num novo projecto: dirigir um centro de culturas africanas, em Londres, chamado Mella Center (com página no Facebook e sítio oficial na internet), que se encontra em fase de transição. Até há pouco situava-se na movimentada Oxford Street, mas o imóvel vai ser remodelado e existiu necessidade de mudar, situando-se agora em West Kensigton. Era qualquer coisa que marinava no seu pensamento há três anos. A concretização deu-se há ano e meio. “Como trabalho em propriedades e ao mesmo tempo como chefe de cozinha e a cultura é a minha paixão, queria ter um espaço onde pudesse conciliar isso tudo.” Na equação acabou por entrar a medicina tradicional, depois de ter visitado centros japoneses. “Vi a forma como trabalham, fazendo todo o tipo de curas, com muitos remédios que vêm de África e procurei um edifício onde pudéssemos ter música, artes, comida como forma de desintoxicar o corpo e a componente medicinal.”
Fechar o círculo
Às tantas dizemos-lhe que está a fechar um círculo, iniciado há mais de vinte anos, quando se propôs dar visibilidade às novas culturas afro-portuguesas. Os seus olhos brilham. “É mesmo isso. Trata-se de, mais uma vez, promover a cultura africana, e da diáspora também, com cinema, comida, roupa, arte, tudo o que tem a ver com a cultura africana – da tradicional à mais urbana.”
Quando o Centro estava em Oxford Street pensou em convidar rappers de Portugal ou cantores como Sara Tavares ou Tito Paris, mas o novo lugar é mais pequeno e deseja criar uma programação com calma até porque os apoios são inexistentes. “Tem saído do meu bolso, mas acredito no colectivo cada vez mais.” Completa: “principalmente com a crise, temos de contar uns com os outros e encontrar formas de auto-sustentabilidade e de entreajuda, para lá dos governos e das políticas. Temos de encontrar bases económicas essenciais. Todas essas coisas que sabíamos fazer e que por causa deste estilo de vida perdemos.”
Ao falar de Sara Tavares e Tito Paris perguntamos-lhe se está a par da realidade musical portuguesa. Diz que não. “Mas a indústria da música mudou radicalmente na última década.” Ele acha que para melhor, falando de uma maior abertura às diferentes músicas. “Mesmo em relação à língua portuguesa, a Cesária Evora, os Madredeus ou Mariza foram abrindo portas. Agora é mais fácil atravessar mercados desde que aquilo que se tenha para propor seja excelente e com identidade. Não vale a pena fazer o que toda a gente faz. Aí continuo a pensar o mesmo.”
No dia seguinte voltámos a encontrar-nos. Por fim concordara que lhe tirássemos fotos. Quando lhe apontamos a câmara toma consciência que já não se recorda das poses que fazia há vinte anos e sorri. “Bem, agora só me resta ser eu próprio”. Estamos num centro comercial longe da zona mais central de Londres, distribui sorrisos por algumas pessoas, fala com outras. Connosco fala português correctamente, mas com imensas expressões inglesas pelo meio, sinal de integração em Londres, imaginamos. Mas ele recusa a ideia. “Não sinto grandes afinidades com este país. O único motivo que me trouxe, e me manteve, foram os filhos. Quando crescerem, vou-me.” O mais velho, Shaka, tem 16 anos, e como o pai é rapper. Também através dele vai-se mantendo a par da actualidade hip-hop, mas hoje está cada vez mais virado para a soul, blues ou músicas africanas. Quando lhe perguntamos pelo último concerto que o marcou, pensa, e diz: “sem dúvida, Erykah Badu.”
Principalmente no último ano algo mudou. Surgiu cada vez mais gente a perguntar por ele. A tentar perceber onde está e o que faz. E a reafirmar que deixou um legado, junto de rappers com consciência social e política (Valete, Chullage ou Bob da Rage Sense) e pela forma como imaginou mesclar sons urbanos com inspirações africanas, algo visível em gerações ligadas ao rap (de Sagas a Melo D ou Conjunto Ngonguenha) ou até fora desse contexto, como tem acontecido nos últimos anos com uma nova geração de activistas das linguagens urbanas (Buraka Som Sistema, Batida, Nigga Fox, Marfox ou Octapush). Emociona-se. Diz que até há um ano não queria ouvir falar de Portugal. Mas Valete contactou-o e algo foi mudando. “Não tenho tido contacto com ninguém em Portugal há anos. A única pessoa com quem tive contacto, há três anos, foi Prince Wadada, com o qual troquei emails. E o Valete, o ano passado. Gosto muito da música dele. Antes não tinha essa consciência de que existia quem se interessasse pelo que fiz, principalmente porque ainda tinha aquela ideia que as pessoas não me queriam”, afirma.
Para já, propõe-se ficar mais algum tempo em Londres, vendo os filhos crescer, depois tem claro o seu destino. “África, claro.” Moçambique, Angola, Quénia ou Uganda, o país da segunda mulher. “Tenho esse apelo forte dentro de mim. Continuo a amar a cultura africana e tudo o que tem a ver com África. É a minha vida.” Mas antes gostava de cumprir um sonho. “Fazer um último álbum, que reúna as experiências destes anos, porque nunca parei de escrever, e revisitar coisas do passado. Quem sabe.”
A música nunca o deixou. Por mais voltas que tenha dado ao mundo, ela esteve sempre lá. Mesmo quando esteve envolvido com coisas que nada tinham a ver com música, encontrava sempre alguém que estava ligado a ela e que o desafiava. “A sacana nunca me deixou”, ri-se. “Há sempre algo que me puxa para a música. Há qualquer coisa inacabada na minha alma. Sinto que ainda temos um encontro marcado, ela e eu.”
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