1.Saí do Rio de Janeiro no último dia da Primavera, aterrei em Belgrado no primeiro dia do Inverno. É o que acontece quando atravessamos o Equador em Dezembro. Não consigo ver a distância no Google Maps, porque não dá para ir a pé, de carro ou de autocarro. Ficam só dois pontinhos no planisfério, sem ligação disponível. Procuro “distância entre cidades”, dá 9961 quilómetros. No meu telefone diz que quando esta crónica sair estarão 34 graus no Rio e nevará em Belgrado. Já são três horas mais tarde agora. Mas nem os quilómetros nem a temperatura nem a diferença horária dão conta do grande curto-circuito no tempo: toda a gente fuma nos bares, cafés e restaurantes de Belgrado. Difícil saber se isto é o passado ou o futuro.
2.Já chegaste a Sarajevo, pergunta um amigo, deves estar na Croácia, escreve uma amiga. Nada que os nacionalismos gostem de ouvir, mas a Jugoslávia ainda é uma ideia forte, penso, antes mesmo de o meu anfitrião sérvio Vladimir dizer o mesmo, à mesa de um restaurante onde nesse momento somos quatro, e três fumam.
3.Ia escrever que estive em Sarajevo e na Croácia no fim da guerra, mas aqui não dá para dizer isto assim, no singular, quando só nos anos 90 houve guerra bastante para se ter sido criança numa e adolescente noutra. Então, estive em Sarajevo e na Croácia no fim da guerra de 1995, mas nunca tinha estado em Belgrado. É a capital que mais vezes foi bombardeada no século XX, diz o meu anfitrião português André. Só entre o aeroporto e a casa dele dá para ver a ruína do ministério detonado pela NATO em 1999 e as janelas entaipadas da ex-embaixada americana. Difícil manter um vidro americano intacto, em Belgrado, no pós-1999.
4.Os subúrbios lembram todas as cidades da Europa de Leste onde estive antes da queda da URSS, mas o centro tem ecos de Atenas e Istambul. Mais otomano, ou menos eslavo, do que eu imaginava. Do céu dá para ver os rios na planura, Sava e Danúbio, que separavam o império austro-húngaro do otomano. Depois, cá em baixo, nas margens do castelo, também: o Sava em primeiro plano, a ilha de ninguém que até hoje é um pântano desabitado, o Danúbio por trás e Nova Belgrado, com as suas torres corporativas, que ao crepúsculo têm qualquer coisa da Disney. Além, os Habsburgos, aqui os turcos. Belgrado era um entre-mundos.
5.A verdade é que nem ao crepúsculo o frio estava mortal, mesmo para quem vem do Rio de Janeiro. Pelo menos para uma europeia que vem do Rio de Janeiro com uma súbita nostalgia de árvores caducas, casacos de Inverno, ocre em vez de verde, silêncio em vez de ruído. Belgrado vindo do Rio é como se alguém tivesse cortado o som. Há carros, velhos eléctricos vermelhos do tempo da Jugoslávia, é uma capital, e nos Balcãs, mas o som parece ter ficado dentro de uma fotografia, uma daquelas fotografias de quando toda a gente fumava nos cafés.
6.No centro há livrarias por toda a parte. Parte dos livros estão em cirílico, parte não. O alfabeto oficial é o cirílico, nas fachadas dos museus como nos documentos, mas depois tanto há jornais em cirílico como não, e por aí fora, cardápios, anúncios, grafitti, a opção é de cada um. Há muitos graffiti, e misteriosas instalações de arte urbana, como aquela por trás do apartamento onde estou a dormir, em que alguém todos os dias põe e dispõe objectos avulsos nos relevos e reentrâncias da parede. O meu anfitrião André já perdeu a conta aos dias, semanas, meses que isto dura, mas nunca viu o artista. Talvez seja um colectivo. Talvez haja uma câmara no topo do prédio em frente para observar a nossa reacção. São objectos desirmanados, um sapato, uma bolsa, um recorte de revista, sempre velhos, quebrados, sujos. Ainda assim, a primeira coisa que me ocorre é que no Rio de Janeiro não durariam assim, sem que ninguém lhes mexesse. Alguém já teria levado aquela bolsa, aquele pedaço de lata, tem catador para tudo. Aqui ninguém mexe, ali estão a cada manhã.
7.Também não se vê gente a dormir na rua, mas isso é porque faz demasiado frio, explica a minha anfitriã sérvia Maja. Há uns abrigos com uns colchões onde os sem-abrigo de Belgrado vão dormir. E se esta conversa começou, quando estávamos à espera do 2, que é o elétrico que dá a volta ao centro de Belgrado, foi porque veio um homem com um saco de plástico e começou a falar com a paragem do eléctrico. Falava com a paragem como se ela respondesse, fazendo pausas, antes de retomar o que estava a dizer. Depois entrou para o elétrico, que, tal como os cafés, não se sabia bem em que tempo estava. Não paguei bilhete porque a condutora disse que a máquina estava avariada. Era uma máquina contemporânea da Jugoslávia, talvez mesmo dos Não Alinhados.
8.A meio do círculo do 2 passamos por um cartaz do que será a nova zona ribeirinha de Belgrado, uma frente-de-água género Manhattan-Xangai-Dubai que não deixa de parecer mais antiquada do que os cafés retro de 2014, incluindo aquela Kafana com dois séculos, onde bebemos uma rakia de medronho. Kafana é uma taberna, e rakia é aguardente. Para quem vem do Rio de Janeiro, mais forte do que cachaça, mas o André diz que é questão de hábito.
9.Com tudo isto, mais os preços baratos, Belgrado podia ser uma Berlim, pergunto eu? Não, dizem os meus anfitriões. Porque, por exemplo, numa parada gay de 500 há 7000 polícias para evitar chacinas. Altamente improvável avistar um par gay em Belgrado, e por aí fora, no que isto implica de liberdades individuais. Os anos 90 terem sido de guerra significou também uma pausa nisto, estava toda a gente ocupada a sobreviver. Então, pode-se fumar dentro dos cafés, mas dois homens também não dão beijos na rua.
10.O Vladimir, que vai fazer 50 anos, continua a identificar-se como jugoslavo quando sai da Sérvia. Mas quando foi à Índia, a Mila, que tem 32 anos, fez o mesmo. Uma geração de diferença e a Jugoslávia continua a ser uma ideia forte. É porque não era artificial, diz o Vladimir. O que não quer dizer que seja reversível. Mesmo não-nacionalistas como eles dirão que não é reversível. Apenas, e essa é a melhor das hipóteses, que exista como ideia de parceria: uma espécie de passado para o futuro.
A crónica será interrompida nas próximas duas semanas