O que acontecerá à Fundação Espírito Santo Silva depois do colapso do BES?
Durantes anos dependeu de um único mecenas: o Grupo Espírito Santo. Agora, a Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva procura alternativas, longe da família que sempre a financiou.
2015 vai ser um ano decisivo para a FRESS, que agrega o Museu de Artes Decorativas e a sua colecção, as escolas de formação e as importantes oficinas de conservação e restauro, depois de 2014 ter sido o ano horribilis. Sem apoio do Estado, a fundação perdeu no último ano o seu único mecenas, aquele que lhe garantia a sustentabilidade. O colapso do GES ditou o fim de uma época. A fundação mantém-se hoje a custo mas, nestas condições, não conseguirá fazer face às despesas por muito mais tempo.
Conceição Amaral acumula com a presidência da FRESS a direcção do Museu de Artes de Decorativas. E quando lhe perguntamos se a instituição corre o risco de acabar, hesita na resposta. Quer dizer-nos logo que não mas falta-lhe a certeza dos apoios necessários. “Uma instituição com este nome, com esta antiguidade, com o que faz, com o reconhecimento internacional que tem, não pode estar nesta fragilidade.” Esta é a sua certeza. A certeza de alguém que quer ver na crise do GES uma “oportunidade”. A certeza de quem tem a convicção de que a imagem da fundação não foi nem será afectada pela má gestão do grupo económico.
“A fundação não será nunca tocada por isso, afirmou-se na sociedade portuguesa à parte de todas as ligações que umbilicalmente tem ou tinha com a família do fundador”, defende esta responsável. Para Conceição Amaral, a FRESS, criada em 1953 quando Ricardo do Espírito Santo Silva, avô do banqueiro Ricardo Salgado, doou o Palácio Azurara (nas Portas do Sol) e parte da sua colecção privada de artes plásticas e decorativas ao Estado português, “é uma instituição que tem um nome forte no bom sentido”. “Tem uma vida própria, uma estrutura própria e um fundamento de existir que está para lá dessa ligação”, explica.
O problema, diz, foi ter estado tanto tempo apenas com um mecenas. Não voltará a acontecer, garante, até porque tem outra visão para a fundação. Para Conceição Amaral, o futuro da FRESS passa por parcerias várias. “Vejo as parcerias como uma junção de esforços e de capacidades de poder produzir e fazer projectos em conjunto”, explica a responsável. “A fundação tem uma grande capacidade e uma equipa extraordinária que pode associar-se a várias instituições em diferentes áreas”, continua, sem adiantar, porém, o que há em cima da mesa. Faz até questão de frisar várias vezes que de concreto não há nada.
Santa Casa e CML em negociações
O PÚBLICO sabe, porém, que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa estão na lista da presidente. A direcção da Santa Casa confirmou ter sido contactada nesse sentido, enquanto a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, que integra o conselho de curadores da FRESS, o principal órgão de decisão da fundação, disse ao PÚBLICO ser “prematuro adiantar detalhes”.
“O que está a fazer-se é procurar uma solução sustentável a prazo para a fundação”, diz ao PÚBLICO Francisco Murteira Nabo, que integra também o conselho de curadores. “O objectivo é, no fundo, tentar uma componente mais comercial, mais sustentável a longo prazo”, continua, explicando que a mudança de estratégia começou exactamente pela nomeação há duas semanas de Conceição Amaral para o lugar de Luís Calado, que estava à frente da FRESS desde 2005.
“O Luís Calado deu muito pela fundação, é um excelente profissional, mas foi preciso dar sangue-novo. Há aqui uma preocupação com a mudança mais do que propriamente com uma questão de penalizar alguém”, defende o economista, explicando que o conselho de curadores tem como prioridade, por agora, “encontrar soluções de financiamento a curto-prazo”.
E isso faz-se através de vendas públicas de peças manufacturadas nas oficinas da fundação. “É preciso arranjar fundos para pagar questões de curto prazo, até que seja encontrada uma solução mais estável”, continua Murteira Nabo. É daqui que provém parte das receitas próprias da fundação. Nos últimos meses já aconteceram duas destas vendas, uma em Lisboa e outra no Porto, e brevemente acontecerá outra nesta última cidade, para colmatar a inexistência de uma loja – em Lisboa há loja no museu. “É nestas vendas que contactamos os nossos públicos específicos e onde podemos também explicar como é que as peças são feitas, quais os processos de fabrico”, diz Conceição Amaral, que quer aproveitar esta mudança para abrir mais as portas da instituição.
“Queremos promover o que é feito nas oficinas”, diz. Oficinas, essas – são 18 –, onde, respeitando com mestria os materiais e os métodos tradicionais, se reproduzem peças originais da colecção da fundação ou se criam modelos próprios, e onde se dedica muito trabalho também à conservação e restauro do património cultural. “Aquilo que é feito nas oficinas tem obviamente um rigor muito grande porque elas são, antes de tudo, uma escola”, defende Conceição Amaral, para quem estas “peças de luxo têm uma carga de transmissão geracional de saberes”.
Mas tudo isto só faz sentido se houver um comprador à espera. “O comprador tem de existir para que esta cadeia seja possível. Ele é o terceiro pilar desta trilogia – o mestre que ensina, alguém que aprende, alguém que compra. Nós temos conseguido muito bem as duas primeiras; a terceira, com a crise, torna-se mais difícil”, explica.
É um ciclo vicioso que se aplica também ao funcionamento da fundação: as oficinas só podem existir se houver um investimento nelas. É por isso que Murteira Nabo admite que, a seu tempo, serão necessários “ajustamentos mais profundos”.
“No dia em que tivermos uma solução mais estável, coisa que pensamos que demore um mês, dois meses, faremos uma alteração estatutária e far-se-á naturalmente a alteração do conselho de curadores”, conta. “A alteração de estatutos passa por um conjunto de condições que resultam de um conjunto de amigos novos da fundação”, explica.
Se, até agora, a fundação era financiada praticamente na totalidade pelo GES, agora é preciso encontrar um novo conjunto de pessoas ou entidades que estejam dispostas a associar-se. “Uma vez encontrados, há as exigências diferentes e é preciso adequar os estatutos."
Conceição Amaral prefere não comentar a alteração de estatutos, por não ser uma decisão que lhe compete. E, apesar de falar várias vezes de parcerias, deixa claro que “o mecenato é bem-vindo”, ainda que “não possa ser somente uma dádiva de dinheiro”. “O mecenas é alguém que, de forma desinteressada, se identifica e quer contribuir para ajudar a que a instituição funcione, actue, seja uma referência.”
Mas quem dá também recebe, diz Conceição Amaral. “A visibilidade que uma instituição como a FRESS pode dar aos mecenas é enorme”, afirma a nova presidente, destacando que “a fundação tem um nome reconhecidíssimo no mercado”.
De acordo com a informação disponibilizada no site da fundação, para uma empresa se tornar mecenas tem de investir mais de 250 mil euros. Se o investimento for superior a meio milhão, como era o caso do GES, então, torna-se mecenas institucional. Mas há outras formas de apoio previstas e que, segundo Murteira Nabo e Conceição Amaral, são também importantes. Referem-se ao grupo de amigos da FRESS, no qual um particular contribui anualmente de forma benemérita com um montante igual ou superior a 50 euros e até 250 mil euros. “Também é uma receita”, diz a presidente da FRESS, explicando haver diferentes níveis de amigos, conforme a contribuição. “O grupo de amigos tem vindo a crescer, são pessoas que de forma desinteressada contribuem para divulgar, promover e atrair à fundação clientes, não são só pessoas que contribuem financeiramente com uma quota anual mas são amigos naquilo que a palavra tem de melhor”, continua.
Para Murteira Nabo, esta é uma forma alternativa de encontrar financiamento. “Não é possível arranjar um mecenas ao nível do que tínhamos, é preciso então encontrar uma outra forma.” Segundo Conceição Amaral, estes amigos não participam em processos de decisão. Mas o economista admite contar com a ajuda de alguns.
Família Espírito Santo sai
Um desses amigos é Michael de Mello, presidente da Queijo Saloio e primo de Ricardo Salgado. Ao PÚBLICO, Michael de Mello não disse com quanto contribuí anualmente, mas disse ser amigo da FRESS desde os anos 1990. Preocupado com a situação que a fundação hoje enfrenta, Michael de Mello é “uma das pessoas que anda a pensar como encontrar uma forma de financiar, apoiar e dar sustentabilidade à colecção num período em que ela não se auto-sustenta”, diz Murteira Nabo. “A FRESS precisa muito de sucesso comercial”, explica ao PÚBLICO, via email, o presidente da Queijo Saloio, manifestando-se a favor de uma alteração de estatutos.
Michael de Mello não quer fazer parte do conselho de fundadores, e também não quer a sua restante família esteja representada nesse orgão. Diz que é preciso que os seus familiares, sobretudo os da sua geração, “deixem de ter assento no conselho de curadores”, presidido por José Manuel Pinheiro Espírito Santo Silva e com representantes dos vários ramos da família fundadora: José Maria Espírito Santo Silva Ricciardi, Nuno Espírito Santo Leite de Faria, Maria João Bustorff (antiga ministra da Cultura) e Maria Salgado Pope Almeida de Carvalho. Completam este conselho João Marques Pinto e Luís Patrício. O PÚBLICO contactou Maria João Bustorff mas esta não esteve disponível para falar.
“Lamentavelmente, é impensável que alguém que tenha sido do GES ou da minha geração da família Espírito Santo tenha assento. Vejo-me impedido de assumir qualquer cargo ou posição na FRESS, mas, como amigo da fundação, tentarei ajudá-la no que puder”, conclui.
A saída da família Espírito Santo ainda não está, no entanto, a ser pensada. “O conselho de curadores não foi alterado por enquanto, mas pode acontecer que de facto os actuais mecenas ligados ao GES saiam para dar lugar aos mecenas novos”, explica Murteira Nabo.
Conceição Amaral prefere não falar sobre o que ainda não está decidido mas há um parceiro que lhe parece “óbvio”: o Estado. “A fundação esteve sempre ligada ao Estado, sempre com representantes no conselho directivo, desde o dia que foi criada até 2013 com a alteração dos estatutos, quando o Estado se retirou. Mas nunca entendemos, nem eu entendo agora, que o Estado deixe de estar ligado a esta instituição”, defende a presidente da FRESS, que já pediu uma reunião ao secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier.
Questionado pelo PÚBLICO, Barreto Xavier diz que esse encontro deverá acontecer “em breve”. O SEC reconhece a “importância da Fundação Ricardo Espírito Silva no que diz respeito às Artes Decorativas e à conservação e restauro de obras, nomeadamente através do seu Museu de Artes Decorativas Portuguesas, das escolas e oficinas e através do seu departamento de conservação e restauro”. Barreto Xavier lembra ainda que está em curso “o procedimento relativo à classificação das obras da fundação promovido pela Direcção-Geral do Património Cultural”.
“Entendo que deve haver uma ligação muito forte, não é uma ligação normal, com aquilo que são os projectos nacionais”, diz Conceição Amaral, defendendo que a FRESS “é uma instituição cultural única no país e, por isso, deve ser assegurada a sua continuidade”. “Deve haver uma preocupação não só nossa, de quem está aqui todos os dias, mas de quem está acima de nós.”
Mas Conceição Amaral não se quer precipitar nem dar por garantido o que ainda não aconteceu. Cada coisa a seu tempo. “Trabalho, trabalho, trabalho.” É esse o seu compromisso. Murteira Nabo, por outro lado, compromete-se a garantir que a missão cultural da fundação não será afectada por mais voltas que esta dê.