Fotografia e fantasma
Sério, ambicioso e esforçado, Pai Nosso, de Clara Ferreira Alves, é, no entanto, um romance talvez excessivamente devedor da intenção de contextualizar e documentar historicamente (jornalisticamente?).
Há dois fantasmas em Pai Nosso. Mas o romance de estreia de Clara Ferreira Alves não é um livro fantástico. É um livro realista. É um romance sobre o terror nosso de cada dia, esse que parece estar em toda a parte e em lado nenhum, e que se vai tornando a radiação de fundo da nossa obsolescente contemporaneidade.
O primeiro fantasma chama-se Maria. É uma fotógrafa veterana dos “conflitos” (o eufemismo é o primeiro recurso do cinismo e da mentira) no Iraque e no Afeganistão. Nada e criada na tediosa melancolia pequeno-burguesa de Campolide e de Benfica (“Uma rua que reencontrei na Roménia ou na Bósnia. Na Síria. Na Líbia. As ruas suburbanas são todas iguais. Grades ferrugentas, caliça, tintas comidas do sol. Sombras onde nem o bolor faz ninho”, p. 155), Maria tornou-se uma empedernida e profana peregrina d’aquém e d’além Médio Oriente.
Parece decidida a dar corpos e rostos concretos a um medo e a uma tragédia que, de tão massivos e omnipresentes, ameaçam transformar-se em abstrações impossíveis de enquadrar. “Fotografar a ignomínia”, eis a sua missão. Na abertura do livro, duas frases bastam para calibrar a personagem: “Uma mulher de certa idade que fuma cigarros até meio. Apaga-os com ressentimento.” Quem o diz é a narradora primeira da história, e a sua primeira Beatriz (porque haverá outra), outra portuguesa entediada, “especialista de Estudos do Médio Oriente” num universidade inglesa, que parte para Jerusalém em busca de uma compatriota famosa por ter publicado na capa da Time uma certa fotografia. Daquelas que precisam, quase sempre, de legenda. Para serem domesticadas pela razão. A secura epigramática com a qual Beatriz debuxa Maria alastra para a narração que esta lhe fará, num hotel de Bagdade, das suas vastas e romanescas andanças amorosas e guerreiras, mas sobretudo guerreiras. E tornar-se-á um elemento estrutural do ritmo sacudido e combativo desta prosa. Inumeráveis seriam os exemplos: “A guerra é a estação dos saldos”, “Não tenho o luxo do altruísmo. Tento não interferir. Tento ser neutral”, etc.
O segundo fantasma chama-se Tariq e, ainda que excessivamente elusivo, é um fantasma que se revelará (mas não fotograficamente) proteiforme, podendo ler-se nesta qualidade a ameaçadora omnipotência do terrorismo global de hoje. Porque, tal como a divindade, o mal tem muitos nomes e máscaras e são inumeráveis os caminhos do terror, Tariq, o terrorista aprazado, e muito poupado pela narrativa, inclina-se e cresce para o lado oposto ao de Maria, para o lado do poder abstracto do símbolo e da alegoria. Não admira que terminemos o romance na ignorância do paradeiro de ambos.
As formulações mais ou menos aforísticas que sustentam, em Pai Nosso, uma prosa denodada e escandida quase sempre com vigor, e algumas vezes com graça (“O calor sobe da terra e embacia a paisagem”, p. 345), derrapam frequentemente para trocadilhos ou lugares-comuns literatos: “Estamos para aqui à espera de Godot” (p. 21); “Nunca andei a passear o Proust, como um colega que insistia em procurar o tempo perdido.” (p. 37); “Todos os dias me pergunto por que é que ela me escolheu para companhia neste inferno. Não sou nenhum Dante.” (p. 59); “Estou sem olhos em Gaza.” (p. 94); “Cresce-se depressa em cativeiro. Ninguém tem direito a um quarto que seja seu” (p. 126); “Jerusalém não é Casablanca, não temos um café com piano para o Sam tocar.” (p. 250); “Faz lembrar Matt, o turista acidental.” (p.382); etc.
Eu gostaria de ter gostado mais deste romance. Sério, ambicioso e esforçado, Pai Nosso é, no entanto, um romance que, talvez excessivamente devedor da intenção de contextualizar e documentar historicamente (jornalisticamente?) o quadro espácio-temporal que acolhe a narração, acaba sendo como que atraiçoado justamente quando parece querer legitimar-se enquanto romance através de peripécia redundantemente romanesca.