Ficções de uma civilização petrificada
Em Mercúrio, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, António Júlio devolve-nos um conjunto de espelhos do qual a vida humana se esconde ou exclui. São fotografias que chegam de Macau, mas pertencem ao mundo todo.
O espectador sabe que as imagens foram realizadas na região de Macau, em discotecas, casinos, hotéis, saunas e bares de karaoke. E pouco mais. Quando tenta identificar exactamente o que vê, as dúvidas, trazidas pelas escalas, pelos enquadramentos, pelos objectos e as cenas capturadas, instalam-se.
Mercúrio é o nome da exposição de António Júlio Duarte (Lisboa, 1965) que a Galeria Zé dos Bois apresenta até 19 de Setembro numa parceria com a Galeria Pedro Alfacinha. Revele-se a sua ainda curta história. Nasceu de um trabalho intensivo, iniciado em finais de Abril, e obrigou à transformação de um dos pisos do espaço da Rua da Barroca numa labiríntica camara escura. No interior, só os focos de luz guiam os vistantes até às imagens, isoladas, separadas umas das outras. Natxo Checa, o curador e produtor, resume o conceito expositivo: “Há muitos curadores e artistas que propõem uma relação sequencial entre as peças, construindo uma narrativa. O António [Júlio Duarte] não quis isso. É o espectador, à medida que vai percorrendo o espaço, nos intervalos entre as obras, que tem de construir a sua narrativa. Aqui a fotografia não vai ao espectador, mas o inverso. É ele que tem adaptar o corpo às fotografias, procurando ver.”
António Júlio Duarte anui e acrescenta: “Houve o desejo de escapar ao modelo tradicional da exposição no cubo branco, à montagem linear. Há uma fragmentação. Quisemos construir uma exposição em que o espectador não pudesse ver, em simultâneo, mais do que uma ou duas imagens. Não existe uma ligação formal entre as fotografias, não se procurou documentar um lugar”. Com efeito, as imagens não sugerem, entre si, parentescos evidentes. Desvelam-se enquanto planos distintos de recantos, de paredes, de salas, de detalhes arquitectónicos, mas furtam-se a uma descrição definitiva. É nessa intermitência que se joga a relação do artista com o documental.
“Continuo a achar que aquilo que faço deriva da fotografia documental, pois continuo a trabalhar sobre o que vejo, sobre o real. Sempre me interessei pela fotografia de rua, pelo espaço urbano. Mas aceito sempre o que me é dado, as minhas imagens não são o que habitualmente se espera da fotografia documental. A neutralidade e objectividade, que são procuradas através do um certo controlo de luz ou de uma aproximação específica, não me interessam. A partir do momento em que se faz uma selecção, desaparecem. Procuro outra coisa”.
Regresso a um mundo em mutação
Em Mercúrio, o que António Júlio Duarte procura e constrói é uma ficção visual que deixa o espectador perplexo e melancólico. Perplexo porque não tem a certeza do que vê, melancólico porque reconhece, ainda que de forma difusa, o que vê. O que faz o enorme diamante azul sobre a fonte? O que guardam as misteriosas e ameaçadoras portas de ferro? A que espaço pertencem as sinistras paredes espelhadas? “Fazem parte de espaços públicos com uma função específica, ligados ao lazer, à indústria do entretenimento e do prazer”, responde o artista.
No projecto anterior, o livro White Noise, os “assuntos” ou motivos eram semelhantes. Entradas, corredores, balcões, objectos fotografados em casinos, hotéis, discotecas de Macau. No entanto, na exposição pressente-se um afastamento discreto, assinalado por imagens que eliminam contextos e referentes. “Não considero que haja uma corte ou ruptura entre os dois trabalhos. Há uma ligação, uma continuidade entre os dois corpos de imagens. Mas no livro havia a preocupação com um percurso pelo espaço e com a localização. Agora considero que essa ancoragem desapareceu. Há imagens que podiam ter sido feitas noutro lugar. Fazem parte de um mundo globalizado.”
O aquário fotografado com uma ligeira desfocagem, que sugere um efeito de tridimensionalidade, ou as fotografias de outras imagens e superfícies, invocando a capacidade de olhar e ver, são os trabalhos que melhor ilustram essa descontextualização encantatória. “O desafio à percepção, as imagens dentro de imagens já estavam presentes nas minhas obras, mas talvez não de modo tão evidente. Há um aprofundamento desses aspectos. São mecanismos visuais que vou apurando, testando”.
A par de um aprofundamento, verifica-se também um regresso. Em Mercúrio, António Júlio Duarte voltou a Macau, revisitando espaços que já conhecia e descobrindo outros. “Desta vez, o processo de trabalho foi mais rápido e intensivo. Habitualmente dedico mais tempo a conceptualizar, a editar. O meu ritmo de trabalho é mais lento. Por exemplo, para o White Noise, fiz várias viagens. E neste projecto, ao fim de 19 dias, saímos de Macau com um corpo de trabalhos”. Inalterável permaneceu o fascínio pessoal pela transformação constante que o território chinês continua a sofrer. “Sobretudo os casinos estão sempre em mutação. Reparo nisso sempre que lá volto. Nada do que as pessoas vêem nestas fotografias foi feito ao acaso pelos responsáveis dos espaços de lazer. Há uma necessidade de distrair as pessoas, de as envolver num espectáculo, numa cenografia”.
Em Mercúrio há imagens de um telemóvel à escala humana, de chamas gigantescas que emergem de uma fonte, de uma estranha escultura banhada a ouro. Documentam menos Macau do que a imparável globalização do capitalismo por meio das técnicas da comunicação e da indústria do entretenimento. É esse fenómeno que também interpela António Júlio Duarte. “Nomeadamente na China, onde tenho ido com regularidade. Interessa-me trabalhar sobre uma realidade na qual a alienação e o consumo estão exacerbadas. Nesse país, mais do que no mundo ocidental, isso é vivido de uma forma de muito clara, muito assumida. Não há qualquer tendência para a dissimulação”.
Ilusões tóxicas
Curiosamente não há em Mercúrio uma exuberância visual, a maioria das imagens não brilha. Os lugares surgem mudos apagados, desabitados, votados a um abandono que só espectadores podem consolar. Evoque-se então um escritor, o inglês J. G. Ballard, autor de livros como O Mundo de Cristal (1966), O Império do Sol (1984) ou Super-Cannes (1996). Até que ponto não se escuta um diálogo com o imaginário que nos deixou? “O Ballard não foi uma influência directa ou consciente, mas está lá. Eu li-o, e se se falar em representação, penso que estas fotografias podem representar uma petrificação de coisas, de artefactos de uma civilização prestes a conhecer o seu fim. Há essa petrificação, esse congelamento e, sim, nesse sentido, lembrei-me de algumas passagens do O Mundo de Cristal”. Sublinhe-se que em Mercúrio, as pessoas estão ausentes das fotografias. “Fotografei pessoas em Macau, mas a possibilidade de as mostrar não se colocou. Seria completamente supérfluo, redundante. Existem vestígios suficientes da presença e da acção humana. Não há ali nada de natural tudo, é completamente construído”.
Um mundo fabricado e perigoso, como sugere o título, Mercúrio, que se foi impondo à medida que o projeto foi avançando. “Remete para algo tóxico. É um metal líquido que de certa forma vem reforçar esse lado ficcional que me interessa. Traz uma ameaça. Mas não se pretende fazer um juízo de valor. Na minha pesquisa, também encontrei um derivado do mercúrio, o cinábrio, que remete para a alquimia, para as ideias de vida eterna, de quimera e de ilusão. Creio que esses significados também passam pela exposição”.
Toxicidade, entretenimento, diversão, declínio, abandono. A exposição devolve-nos um conjunto de espelhos do qual a vida humana se esconde ou exclui. Haverá pontos de fugas nesta claustrofobia que a montagem vem enfatizar? Duas imagens escaparão, porventura, à petrificação de uma civilização (a nossa) de que António Júlio Duarte fala. Aquela em que as persianas deixam ver o exterior das luzes de um edifício habitado, e aqueloutra que, sob um vidro embaciado, revela uma forma de vida. Ficções.