Carlos do Carmo foi - é - a voz masculina mais importante do fado depois de Marceneiro e antes de Camané, com um coeficiente de reconhecimento e popularidade que sempre faltou a talentos seus contemporâneos como Carlos Zel, Carlos Guedes de Amorim ou Manuel de Almeida. Foi também alguém que procurou trazer novos caminhos ao fado durante um período em que o género era coisa mal vista, fazendo a ponte entre os tempos da “outra senhora” e o “novo fado” que começou a impor-se nos anos 1990 - e se há coisa que os 16 álbuns agora (re)lançados em CD em elegantes edições económicas (mas sem notas contextuais e, infelizmente, guardando apenas as frentes das edições originais) permitem é mesmo desenhar esse percurso ao longo de 43 anos de gravações, com os pontos altos numa notável trilogia publicada entre 1976 e 1978.
Carlos do Carmo 50 Anos não é, e está longe de ser, a integral que ainda está por fazer do fadista, e só em parte duplica material da colecção 100 Canções, Uma Vida publicada em 2010 com o PÚBLICO. A nova série concentrase nos álbuns de estúdio, formato que só na década de 1970 se tornou mais regular; fica assim de fora grande parte das gravações dos anos 1960, publicadas em singles e EP ou lançadas noutras editoras, bem como todos os discos ao vivo e temas lançados em single pós-1970, mas incluem-se o material Philips de 1969 e todos os álbuns de originais pós-1970 (Tecla, Movieplay, Trova, Philips e EMI), agora consolidados na Universal.
Musicalmente, a sequência de álbuns permite traçar a evolução do cantor, que, ciente da riqueza aveludada da sua voz, estava aberto a experimentar diferentes possibilidades para se espraiar e encontrar outros caminhos que não se limitassem ao fado. Essa é a grande consistência ao longo destes 16 discos; mais tradicionalmente clássicos ou mais próximos do fado-canção ou da canção ligeira, incorporando fados tradicionais ou veteranos como Frederico de Brito, bem como compositores ou letristas alheios ao fado (de António Lobo Antunes ou Vasco Graça Moura a Ivan Lins ou Rui Veloso), são álbuns que procuram sempre fazer justiça à voz e à postura do intérprete, embora também revelem que os melhores discos são sempre aqueles mais próximos do fado tradicional (como esse injustamente esquecido Mais do que Amor é Amar, de 1986).
Os primeiros discos confirmam-no desde logo. Fado Lisboa (1969 e não 1974), noite de fados com a mãe Lucília do Carmo, e os momentos à guitarra e à viola de Por Morrer uma Andorinha (1969 e não 1973) e Canoas do Tejo (1972) mostram um enorme à-vontade afadistado, menos visível nas gravações da mesma altura de fado-canção orquestrado, apesar de êxitos como Canoas do Tejo. Os mais recentes revelam uma voz já marcada pela usura do tempo, com o fadista a resguardar-se. Mas Nove Fados e uma Canção de Amor (2002) e À Noite (2007) são álbuns exemplares de fado clássico, mais conseguidos do que as colaborações com Bernardo Sassetti (2010) e Maria João Pires (2012), que valem mais pela experiência do que pelo resultado.
É, contudo, na década de 1970 que estão as obras-primas, com o desejo de Carlos do Carmo de desbravar novos caminhos a encontrar cúmplices ideais naqueles que renovaram a música ligeira da altura, curiosamente vindos eles próprios de outras áreas da pop e da canção de intervenção: Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, José Luís Tinoco e, sobretudo, o poeta Ary dos Santos. Uma Canção para a Europa (1976, dez canções ligeiras e fados-canção concorrentes ao Festival RTP da Canção) é um dos mais perfeitos discos de música popular portuguesa da sempre. Um Homem na Cidade (1977, álbum conceptual de 12 fados-canção com letras de Ary à volta de Lisboa) é uma das obras-primas absolutas do género (tornando a sua sequela tardia de 1983, Um Homem no País, um disco intrigante mas algo supérfluo). E Dez Fados Vividos (1978) é um clássico esquecido, espécie de best-of regravado, reinterpretando com rigor e virtuosismo como fados tradicionais dez dos seus êxitos da década.
Ficam dois lamentos. Primeiro, que Carlos do Carmo não tenha gravado mais regularmente (estes 16 álbuns representam 43 anos de edições). Segundo, que esta ainda não seja a integral rigorosa e comissariada que o artista já merecia, sobretudo devido aos equívocos de datação e organização do material pré-1976 (em nada ajudados pelas já proverbiais dificuldades em obter informação sobre a indústria musical pré-25 de Abril). Mas já não é nada mau que possamos ter esta colecção.