Lá pelas cinco da manhã da passada sexta, dia 29 de Julho, havia um moço pouco satisfeito nos bastidores do Festival de Músicas do Mundo de Sines, habitualmente repletos de alegria seja a que hora for. "Não acho que tenha corrido muito bem", dizia Pedro Lucas, o líder do projecto O Experimentar Na M'Incomoda, encostado ao umbral de PVC da porta do seu camarim, enquanto passava as mãos pelo cabelo e olhava para o chão em jeito tímido - dois gestos que, notámos, são tiques habituais nele.
É certo que tinha algumas razões para estar insatisfeito. Em anos anteriores o último concerto de sexta-feira na Avenida da Praia estaria cheio, o que não aconteceu, possivelmente porque o dinheiro aperta. O tempo, frio e húmido, com uma morrinha persistente, também não ajudou e muitos dos que tinham estado no Castelo de Sines a assistir ao concerto foram dormir. E o som, ao início, não estava propriamente perfeito.
Mas quantificadas as variáveis da equação, ele podia dar-se por satisfeito: a dada altura o som afinou, havia uma notória surpresa com aquela música feita de cantares açorianos e electrónica que ia do reggae às batidas hip-hop e o milhar ou par de milhares de gente que tinham descido até à Avenida abanaram o corpo com prazer.
"Um tipo nunca fica satisfeito", continuava, no seu jeito de rapaz atrapalhado.
No dia seguinte juntámo-nos a ele e ao resto da banda - um combo sempre em alteração e que raramente tem oportunidade de ensaiar em conjunto - para acabar a entrevista a um dos mais intrigantes projectos portugueses dos últimos anos.
Há meses, mais propriamente desde que saíra o disco de estreia, homónimo, que andávamos a tentar sentarmo-nos com Lucas. Por esta ou por aquela razão a conversa foi-se adiando. Chegámos a pensar que o rapaz - de apenas 25 anos - fosse um eremita. Mas a inacessibilidade de Lucas tem uma explicação simples: "Vivo na Dinamarca", conta. O que também explica os escassos concertos que dão: "É sempre preciso encontrar datas que permitam reunir toda a gente e ter concertos suficientes para pelo menos não perdermos dinheiro com as viagens par ao continente".
Não é do aqui e agoraAçoriano de nascença, Lucas é um melómano que diz estar longe de ser um músico como "a malta do rock". "Não sou um músico do hedonismo, não sou do aqui e agora". Afiança gostar de "estudar, experimentar, pesquisar". Em parte isso vem do seu trajecto não só pessoal como familiar. "Nasci no Faial, na ilha da Horta. O meu avô tocava numa filarmónica onde eu também toquei. Na escola primária tínhamos rancho folclórico na escola, todas as terças-feiras. Aos 10 anos entrei para as aulas de guitarra clássica no Conservatório".
Lucas diz que à medida que entrou "na adolescência" toda essa música "foi sendo esquecida". Era capaz de gostar de uns Gaiteiros de Lisboa mas não ouvia música dos Açores". Mas quando a reencontrou foi - como dizer? - paixão ao segundo ouvido.
Aos 18 anos veio para Lisboa. Trabalhou numa editora, a Transformadores - diz que não raras vezes tentou chatear-nos para promovermos discos a que invariavelmente não demos importância - e pelo meio foi estudar som para a Restart. "Ao fim de cinco anos em Lisboa fartei-me", uma confissão que demonstra a sua sanidade mental.
É quando volta aos Açores que a aventura do projecto O Experimentar Na M'Incomoda surge, por acaso. Tudo começa quando se cruzou com com o disco do Carlos Medeiros chamado "O Cantar Na M'Incomoda". (Há uns anos, quando a Brigada Victor Jara editou "Ceia Louca", o seu último disco, chamámos a atenção para a voz de Carlos Medeiros e para esse extraordinário disco impossível de encontrar excepto na net. O mundo é injusto e pôs Lucas de caras com uma cópia original desse tremendo disco - algo que nunca nos aconteceu. Aquilo fica o apelo: era bonito venderem-nos um exemplar.)
Munido tantos dos seus conhecimentos musicais como da aptidão para mexer em botões que o curso de som lhe tida dado, fez "uma espécie de remistura do tema e a partir daí surgiu o resto". Por "o tema" refere-se a "Caracol", canção que tem a propriedade curiosa de poder ser ouvida a qualquer hora do dia, em qualquer esquina dos Açores, de tal modo está disseminada. Ninguém a canta como Carlos Medeiros, claro.
"A ideia inicial era revisitar o disco do Carlos, que é um disco de recolhas", conta Lucas. "Mas mais tarde descobri outro disco fantástico, ‘Tradições Orais, Corvo, São Jorge e Terceira', recolhido por Paul Henrique Silva. Juntei mais uma do Manuel Medeiros que não é tradicional mas que se tornou uma espécie de hino dos Açores, o ‘Ilhas de Bruma'. E depois ainda juntei outras canções tradicionais ao repertório".
Pelo que a ideia de simplesmente fazer uma versão electrónica de "O Cantar Na M'Incomoda" foi sendo posta de lado. Lucas recebeu um subsídio da Direcção Geral de Cultura dos Açores e começou a trabalhar no disco, que acabou por ser terminado na Dinamarca, para onde entretanto se tinha mudado: "Parti um bocado à aventura", conta. "Fiquei a dormir num sofá durante um mês. Agora estou a estudar Estudos Artísticos na Universidade Aberta enquanto trabalho ao balcão num bar".
Podíamos imaginar que face à similitude entre o título do disco de Lucas e o de Medeiros que o primeiro se tinha limitado a colocar umas batidas por cima das canções. Mas não. Nem a instrumentação se mantém: em vez da habitual viola da terra há uma viola caipira, acrescenta-se elementos estranhos como o glockenspiel, o didgeridoo, a guitarra e o baixo eléctricos, provocando uma profusa alteração dos originais, transformando as canções dos baleeiros em música industrial ou dub.
"A partir do momento em que começo a trabalhar naquilo deixa de haver limites ao que se pode fazer. Não há uma regra. O que faço muda por completo de canção para canção. No ‘Caracol' alterou-se tudo completamente em termos harmónicos. Na ‘Ilhas de Bruma' nem a melodia principal ficou, só o balanço".
Lucas apreciaria fazer "um tomo II" de "O Experimentar Na M'Incomoda", mas não pretende ficar por aí, quer "experimentar outras coisas que [anda] a compor". Acabou recentemente uma BSO para a RTP Açores, está a fazer experiências com o dubstep e sonha "um dia fazer um disco de guitarra", uma inspiração que lhe surgiu depois de assistir a um concerto de Marc Ribot: "Fui vê-lo e mal cheguei a casa dei por mim a pegar na guitarra outra vez".
Está visto que por mais apreço que ele tenha pela tradição não é um purista. Se lhe perguntarem qual o exemplo de música que admira a resposta não é um obscuro açoriano. É David Sylvian. Não, experimentar não o incomoda.